“MENORIDADE PENAL”: MITOS E VERDADES[1]
Diariamente, ao se abrir uma página de jornal ou através de um noticiário de televisão, atos de violência e barbárie são noticiados. Sequestros, estupros e homicídios são reiteradamente divulgados pela mídia e de forma assustadora se “instalam” no cotidiano da sociedade brasileira.
Curioso, contudo, é que quando tais atos são praticados por menores de idade, acende-se, muitas vezes de forma acalorada, a discussão acerca da redução da menoridade penal no Brasil, sendo, não raro, apontada como possível solução para parte da descontrolada violência na qual se encontra imersa a maioria da população.
Tal situação é agravada quando menores de idade acabam por assumir a culpa pela prática de crimes violentos, a fim de deixar impune comparsas adultos, e nestes casos muitas vezes os jornais e a mídia televisiva aproveitam para veicular noticias sensacionalistas.
Um exemplo de crime que envolveu indivíduo menor e ganhou notoriedade nos meios de comunicação, foi o caso “Eliza Samúdio”, julgado pelo Tribunal do Júri de Minas Gerais.
Neste caso Jorge Rosa, primo do ex-goleiro do Flamengo Bruno, foi liberado da medida socioeducativa que cumpria por participar de atos infracionais análogos a homicídio qualificado e sequestro em cárcere privado (o mesmo fora posto em liberdade em setembro de 2012, pois em agosto de 2010 o adolescente tinha completado 17 anos de idade), o que gerou grande revolta na sociedade.
Certo é que o assunto está em pauta e gera acaloradas discussões. E quem estaria com a razão?
Alguns dizem que a redução da maioridade penal não solucionaria o combate às infrações eventualmente cometidas pelos menores, enquanto outros tratam o tema como violação aos direitos humanos, pois pelo critério biológico, inexistiria discernimento suficiente para que seja imputado um crime a um indivíduo menor de dezoito anos.
Sobre esta questão Mirabete (2002, p. 216) assevera que o critério bio-psicológico foi o utilizado pelo primeiro Código Penal brasileiro de 1830 para fixar a idade de imputabilidade plena em quatorze anos, prevendo a punição de crianças entre sete e quatorze anos. Sendo que, somente com o Código Penal de 1940 foi fixado o limite da inimputabilidade aos menores de dezoito anos, adotando-se o critério puramente biológico no que concerne à inimputabilidade em face da idade. Portanto, quando um menor praticava um fato descrito como crime ou contravenção, o Código Penal de 1940 adotava uma absoluta presunção de ausência de discernimento para o menor de dezoito anos.
A partir de então a imputabilidade penal passou a evoluir através das legislações infraconstitucionais até culminar na atual redação dada pelo artigo 228 da Constituição Federal de 1988, onde prevê a inimputabilidade penal aos menores de dezoito anos:
“Art. 228 – São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”
Redação que se repete no art. 27 do Código Penal:
“Art. 27 – Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.”
Para se entender melhor o conceito de imputabilidade, basta consultar a obra de Bittencourt (BITTENCOURT, 2000, p. 300), o qual cita o grande mestre Carrara: “A imputabilidade é o juízo que fazemos de um fato futuro, previsto como meramente possível; a imputação é um juízo de um fato ocorrido. A primeira é a contemplação de uma idéia; a segunda é o exame de um fato concreto. Lá estamos diante de um conceito puro; aqui estamos na presença de uma realidade.”
Para Fragoso (FRAGOSO, 1995, p.197), “imputabilidade é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar segundo esse entendimento“.
Segundo Damásio de Jesus (JESUS, 1999, p. 467), “imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível”.
Ou seja, a imputabilidade penal requer uma aptidão necessária a fim de que o indivíduo possa reconhecer a real ilicitude do fato e assim se posicionar consoante tal entendimento. Nessa senda, o mestre Mirabete nos apresenta uma bela síntese (MIRABETE, 2000, p. 210): “Há imputabilidade quando o sujeito é capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e agir de acordo com esse entendimento. Só é reprovável a conduta se o sujeito tem certo grau de capacidade psíquica que lhe permita compreender a antijuridicidade do fato e também de adequar essa conduta a sua consciência. Quem não tem essa capacidade de entendimento e de determinação é inimputável, eliminando-se a culpabilidade.”
Em suma, o legislador entendeu, com amparo em farta doutrina, que no sistema jurídico penal brasileiro o menor de dezoito anos é inimputável, em razão do seu peculiar estado de desenvolvimento incompleto (conferido pelo critério biológico) e, que, numa eventual conduta ilícita, o mesmo não estará sujeito às sansões capituladas no Código Penal Brasileiro, e sim às elencadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), contempladas no artigo 112 da referida legislação:
“Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
Ocorre que, consoante Pereira (2002, p. 16), diversas entidades e organizações vêem, cada vez mais, somando forças para reduzir a idade penal, sob o argumento da excessiva elevação do número de crimes praticados por menores na faixa etária dos quatorze aos dezoito anos de idade.
Também Cavallieri defende ardentemente a redução da maioridade penal (CAVALLIERI, 1997, p. 54-56): “[…] A manutenção da idade de 18 anos para o afastamento do menor, criança e adolescente, do Código Penal é uma bandeira de todos, menoristas e estatutistas. […]. Quando lutamos pela conservação dessa idade, é comum ouvir-se, até de pessoas cultas, a afirmação de que ela é absurda, ´porque, mesmo com muito menos de 18 anos eles [sic] sabem o que fazem.´ Não lhes ocorre que o conhecimento está ligado à imputabilidade e que, quando os doutos afirmam que os menores de 18 são inimputáveis, querem dizer que se trata de presunção [sic] de inimputabilidade. Mas, porque falar-se em presunção, se temos a realidade? É obvio que a partir de tenra idade, eles sabem o que fazem. […]. Toda esta dúvida tem sua origem na Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, quando o Ministro Francisco Campos escreveu que os menores ficavam fora daquela lei, porque eram imaturos [sic]. […]. Segundo ele, todos os menores de 18 anos no Brasil eram imaturos. Absurdo completo. E nós contaminamos toda a nação com esta insólita concepção. Espero que a importância prática de uma conceituação adequada tenha sido demonstrada. Os estatutistas merecem todos os encômios pela elevação à Lei Magna de uma aspiração comum, mas poderiam ter aproveitado para destruir um mito prejudicial. Eles [sic] sabem o que fazem, mas não vão para a cadeia, pois temos solução melhor para seus crimes.”
Todavia, na contramão desse argumento, Murillo José Digliácomo (2009) traz estatísticas de que os adolescentes, na verdade, são responsáveis por menos de 10% (dez por cento) das infrações registradas, sendo que deste percentual, 73,8% (setenta e três virgula oito por cento) são infrações contra o patrimônio, das quais mais de 50% (cinqüenta por cento) são meros furtos (sem, portanto, o emprego de violência ou ameaça à pessoa), geralmente de alimentos e coisas de pequeno valor, que para o Direito Penal se enquadrariam nos conceitos de “furto famélico” e “crime de bagatela”, impedindo qualquer sanção a adultos. Apenas 8,46% (oito virgula quarenta e seis por cento) das infrações praticadas por adolescentes atentam contra a vida (perfazendo cerca de 1,09% (um virgula nove por cento) do total de infrações violentas registradas no País, sendo que, historicamente, crianças e adolescentes são muito mais vítimas que autores de homicídios (na proporção de 01 homicídio praticado para cada 10 crianças ou adolescentes mortas por adultos).
Ocorre que, como dito anteriormente, as infrações praticadas por adolescentes ganham grande visibilidade e repercussão na mídia, e esta, nos últimos anos, além de desinformar a população sobre a verdade relacionada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, deflagrou verdadeira campanha a favor da redução da idade penal, elegendo de forma absolutamente injusta adolescentes como “bodes expiatórios” da violência no País, para qual comprovadamente os jovens contribuem muito pouco.
Importante citar que dentre os juristas que mantém posicionamento contrário à redução da menoridade penal se encontram Alberto Silva Franco, Amaral e Silva, Hélio Bicudo e Evandro Lins e Silva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O arcabouço jurídico vigente é, sem sombra de dúvidas, suficiente para responsabilizar o menor infrator, pois prevê em seu bojo diversas medidas protetivas capazes de assegurar sua ressocialização. O grande problema reside na não aplicação de tais medidas, pois as mesmas, por diversas razões, deixam de ter o efeito pedagógico arquitetado pelo legislador.
Infelizmente a sociedade desinformada e constantemente agredida opta por discutir e rediscutir fórmulas mágicas para o fim da criminalidade, dentre elas, a redução da menoridade penal. A mesma, em verdade, deveria mobilizar-se no sentido de propiciar aos menores infratores o adequado tratamento, aumentando as chances de resgatá-los à verdadeira cidadania.
O que precisa ser internalizado e realmente entendido é que o problema não reside apenas na seara penal, mas principalmente na esfera social. Cabe ao Estado, juntamente com outros setores da sociedade, subsidiar a estruturação social, comunitária e familiar, nas quais os jovens estão imersos. Instituições fortes e presentes serão as grandes responsáveis pelo distanciamento das crianças e adolescentes da pratica de crimes.
Por fim, transcrevo uma frase de Henri Lacordaire: “A sociedade não é mais que o desenvolvimento da família, se o homem sai corrupto da família, corrupto estará para a sociedade.”[2]
BIBLIOGRAFIA
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2000.
CAVALLIERI, Alyrio. Falhas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
DIGLIÁCOMO, Murillo José. Redução da idade penal: solução ou ilusão? Mitos e verdades sobre o tema. In: Ministério Público do Estado do Paraná, julho 2009. Disponível em:
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal. Parte Geral. 3. ed. Rio de Janeiro. Forense. 1995.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: Parte Geral. 22. ed. São Paulo. Saraiva. 1999.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Comentado. São Paulo: Atlas, 2002. Manual de Direito Penal. 19 ed. São Paulo. Atlas. 2003.
ROCHA, Sidnei Bonfim da. A redução da maioridade penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 112, maio 2013. Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13332&revista_caderno=12>. Acesso em out 2014.
REALE Junior, Miguel, Instituições de Direito Penal, 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p.212.
[1] Viviane Bacelar Morais Sarmento Rios é bacharel em Direito e especialista em Direito do Estado.
[2] Henri Lacordaire foi um religioso dominicano, nascido em 2 de maio de 1802 em Recey-sur-Ource, e falecido a 21 de novembro de 1861. Foi padre, jornalista, educador, deputado e acadêmico, sendo considerado como um precursor do catolicismo moderno.