ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Pausa para reflexão (16): Lições para a vida toda

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes - Pausa para reflexão (16): Lições para a vida toda
Recordando:Era uma tarde de domingo ensolarada na cidade de Oklahoma. Bobby Lewis aproveitou para levar seus dois filhos para jogar mini-golf”. Acompanhado pelos meninos dirigiu-se à bilheteria e perguntou: – Quanto custa a entrada? O bilheteiro respondeu prontamente: – São três dólares para o senhor e para qualquer criança maior de seis anos. – A entrada é grátis se eles tiverem seis anos ou menos. Quantos anos eles têm? Bobby informou que o menor tinha três anos e o maior, sete. O rapaz da bilheteria falou com ares de esperteza: – O senhor acabou de ganhar na loteria, ou algo assim? Se tivesse me dito que o mais velho tinha seis anos eu não saberia reconhecer a diferença. Poderia ter economizado três dólares. O pai, sem perturbar-se, disse: – “Sim, você talvez não notasse a diferença, mas as crianças saberiam que não é essa a verdade”. Comentários: A ética (e a moral, consequentemente) não é um código ou um conjunto de leis que devemos aprender e seguir para que nos consideremos bons e despreocupados (Savater). A ética e a moral nos conduzem a uma prática contínua, diária, porque todos os nossos atos relacionais (atos que envolvem e afetam nós e o mundo que nos circunda) nos compelem a refletir sobre o que é certo ou errado, sobre o que vamos fazer (ou não) e os motivos pelos quais vamos fazer. Numa época tão carente de valores positivos para a vida natural, não podemos deixar nunca de, sem cair em moralismos, mostrar exemplos saudáveis de ética, que possam ser copiados, especialmente pelas crianças com quem convivemos. A economia de qualquer importância jamais pode constituir razão suficiente para esquecer o tesouro do ensinamento ou do exemplo daquilo que é moralmente correto. Para ler mais artigos de Pausa para Reflexão, do Prof. Luiz Flavio Gomes, clique aqui: http://goo.gl/mDNVIn

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Parasitismo e neoescravagismo no aeroporto de Guarulhos

Certa vez um professor estrangeiro disse para Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo) que “invejava os historiadores brasileiros porque eles podem assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado”. Eis um exemplo: trabalho escravo (ou análogo) em pleno século XXI no aeroporto de Guarulhos (Estadão 26/9/13, p. B7). Construímos dois Brasis: o avançado e o atrasado. O que deu certo e o que deu errado. Pessoas aliciadas no Nordeste (111, sendo 6 indígenas) foram cooptadas (pela OAS e GRU Airport) para trabalhos em condições insalubres. Já pagaram multas, indenizações e dizem que vão colaborar com as investigações, inclusive criminais. Outras grandes obras podem estar fazendo a mesma coisa (diz o representante do governo). R$ 15 milhões de bens de cada empresa foram bloqueados. Em pleno século XXI vemos as mesmas barbáries do século XVI. Depois de 513 anos de história, continua firme o parasitismo social (classes dominantes sugando as classes dominadas). Foi assim que os senhores de engenho e fazendeiros da colônia e do Império se enriqueceram. Até 1888 (ano da Abolição) falava-se em escravagismo (o nosso foi o mais longo de todos os tempos). Depois de três séculos após o Iluminismo, a prática prossegue, sob formas novas (neoescravagismo). O historiador brasileiro é mesmo um privilegiado: consegue ver em 2013 o que se passava no princípio no Brasil colonial. Perecer ou modificar-se, esse era o dilema brasileiro na data da sua independência (1822). O Brasil se renovou, cresceu, se interiorizou, se urbanizou, mas de forma desorganizada e discriminatória. São muitas as vicissitudes e também os defeitos. Há males de origem que não se apagaram: parasitismo social (exploração de uma classe por outra), selvagerismo (violência) e ignorantismo (exploração da ignorância). Três povos se mesclaram: portugueses, índios e negros. Nasceu um tercius. Criou-se algo novo (um povo mestiço, hoje preponderantemente pardo). O território semideserto foi povoado (Caio Prado Júnior). Mas o processo ainda não acabou. Não passamos do grande meio-dia de Nietzsche. O passado colonial ainda está presente. Diz o historiador citado: “Observando-se o Brasil de hoje (dizia isso em 1942, mas continua atual), o que salta à vista é um organismo em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em linhas definidas: que não tomou forma” (Formação do Brasil contemporâneo). O trabalho escravo ou neoescravagista é uma realidade muito antiga (já no princípio do século XV os portugueses foram buscar os primeiros escravos negros na África), que marcou o parasitismo do tempo colonial, mas nunca desapareceu dos nossos costumes. Ainda não podemos dizer (depois de 513 anos) que o trabalho livre e digno já se tornou uma realidade em todo país. Pelo menos não no coração de uma das regiões mais desenvolvidas, aeroporto de Guarulhos. É de se imaginar o que anda se passando pelos sertões. O Brasil ainda conserva traços vivos da era escravagista. Não foi por acaso que aqui a escravidão durou mais tempo. Não está concluída a evolução da economia colonial para a economia moderna. O Brasil ainda tem seu lado muito atrasado: no campo econômico, no social e no moral. A ética não autoriza a exploração de seres humanos. Nem sequer o tratamento indigno. Reminiscências anacrônicas de um passado que se recusa a morrer retiram nosso país do concerto das nações prósperas e evoluídas plenamente. Continua pendente nossa regeneração política. Dificultada pela degeneração ética. Desse mister não pode escapar nenhum cidadão que cultive a moral. Em 1823, na Assembleia Constituinte (depois abortada por D. Pedro II), José Bonifácio de Andrada e Silva (Patriarca da Independência), dizia (Projetos para o Brasil): “Proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos. E de promover a sua progressiva emancipação (…) é preciso que cessem de uma vez por todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território (…) Para evitar revoluções, e melhorar progressivamente os governos, cumpre que as diversas classes da nação se instruam e se moralizem em razão inversa desde a nobreza até a plebe”. A escravatura não acabou, a Constituinte foi dissolvida, seis deputados (dentre eles J. Bonifácio) foram presos e depois deportados e a Constituição foi outorgada (1824) depois do golpe de Estado de Pedro I. Assim começou o Brasil. Mas não podemos perder a esperança de que termine bem.

ARTIGO – Prof Luiz Flávio Gomes – Macarrão seria o culpado de tudo?

A relação de amor e ódio entre Macarrão e Bruno tem tudo para se transformar no centro dos debates orais que acontecerão após concluída a fase instrutória (probatória). No julgamento anterior, Macarrão, sentindo-se visivelmente isolado e desprotegido, confessou o crime e delatou Bruno, que não estava presente para fazer o contraditório. Seu interrogatório, portanto, será totalmente decisivo: pode se calar ou confessar ou tentar desconstruir a delação precedente, protestando pela inocência. Hoje, em vários momentos, sobretudo no depoimento de Célia (prima de Bruno), a culpa foi descarregada em Macarrão. O jogo de empurra ficou bem desenhado. Vamos ver qual das partes (acusação ou defesa) levará mais convencimento aos jurados, com base nas provas produzidas. Se no primeiro dia do julgamento tudo se mostrava morno, apático e pouco conflitivo, sobretudo depois que a defesa desistiu da oitiva de todas as suas testemunhas, o segundo conta com cenário bem diferente. Para o plenário vieram a reconstituição do crime, contradições, incriminações recíprocas e confirmações de alguns indícios de autoria. Com os vídeos, o julgamento ganhou vibração e muita emoção, que chegou a provocar lágrimas nos acusados, na mãe de Eliza e na namorada de Bruno. Em vários momentos o salão do júri foi preenchido exclusivamente pelo silêncio profundo, sobretudo dos jovens jurados (de 22 a 30 anos), que observavam tudo muito atentamente.

ARTIGO: Por que sou CONTRA a PEC 37 (conhecida como PEC da impunidade – o próprio “apelido” já sugere)

Quero atuar num Ministério Público efetivamente autônomo e independente, um órgão em condições de defender a sociedade contra a criminalidade e a violação da lei. Como titular privativo da ação penal pública, exerço, como Promotor de Justiça, parcela de soberania, e nada mais coerente que eu possa investigar para bem cumprir a minha missão. Não se pode esquecer que uma das finalidades da investigação é evitar acusações infundadas, acusação esta a ser protagonizada pelo Ministério Público. Vale lembrar, aqui, a teoria dos poderes implícitos: quando uma Constituição atribui funções a seus órgãos, são igualmente atribuídos os meios e instrumentos necessários para o cumprimento do que fora determinado constitucionalmente. O Ministério Público quer continuar podendo investigar (jamais assumir a presidência do inquérito policial ou sobrepor-se às polícias civil e federal). Investigar nada mais é do que ouvir pessoas, juntar documentos, proceder a realização de perícias e outras diligências. O Ministério Público, autor da ação, não pode fazer isso? Será que falta aos Promotores de Justiça capacidade para tanto? Dizem que não pode porque a atividade de investigação é exclusiva da polícia (art. 144, § 1 , da CF/88). O art. 144, § 1 , IV, da CF não anuncia a exclusividade da investigação criminal para as polícias. O referido artigo utiliza a expressão “exclusividade” com a finalidade de retirar das polícias estaduais a função de polícia judiciária da União. A própria CF/88 prevê que a investigação pode ser conduzida por outros órgãos (dentre eles, a própria Polícia Militar). Se vários órgãos investigam (Comissão de Valores Mobiliários, Agência Brasileira de Inteligência, COAF, Tribunal de Contas, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – criado pela Lei 4.319/64), por que só o Ministério Público, titular da ação penal, deve ser impedido? Como se nota, o inquérito policial é exclusivo, mas não a investigação (por isso, a redação do artigo 4 parágrafo unico do CPP)! A tese da exclusividade de investigação pela polícia há anos vem sendo afastada no cenário internacional, inclusive por Tratados Internacionais já pactuados pelo Brasil, sempre com a preocupação de proteção de direitos humanos (cf. Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e Estatuto de Roma). Aliás, faz bem lembrar que já foi recomendação da ONU durante visita ao Brasil que “Os promotores de justiça devem, rotineiramente, conduzir as suas próprias investigações sobre a legalidade das mortes por policiais”. Dizem que o sistema acusatório impede a investigação do Ministério Público. Ora, quem anuncia essa tese não conhece o citado sistema. Por meio do sistema acusatório triparte-se a função dentro da persecução penal em três: acusar (em regra, exercida pelo Ministério Público), defender (exercida por Advogado Público ou não) e julgar (exclusiva do magistrado). Em que momento foi entregue para personagem específico a tarefa de investigar? Dizem que a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público carece de previsão legal. Essa tese ignora o art. 129, I, VI, VIII e IX da CF/88, os arts. 7 , 8 e 38 da Lei Complementar n 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), art. 26 da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), todos conferindo ao Ministério Público a autorização para a condução de procedimentos investigatórios. Temos, ainda, o art. 29 da Lei 7.492/86 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), que dispõe: “O órgão do Ministério Público, sempre que julgar necessário,poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência, relativa à prova dos crimes previstos nesta lei”. O Código Eleitoral (Lei n 4.737/65) não possui previsão de inquérito policial para investigações de crimes eleitorais, alertando seu art. 356, § 2 , que a investigação será feita pelo Ministério Público. A Lei de Abuso de Autoridade prevê a atuação do Ministério Público na apuração dos crimes de abuso de poder (art. 2 ). A mesma atribuição é conferida ao Ministério Público pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 201, VII) e Estatuto de Idoso (art. 74). Por fim, a resolução n 13 do CNMP (com força normativa) disciplinou o procedimento investigatório criminal conduzido pelo Promotor de Justiça/Procurador da República. Conclusão: tanto a CF quanto a Lei autorizam a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público! Dizem que o Ministério Público investigando perde a imparcialidade. Contudo, no cível, o Ministério Público preside o inquérito civil e, apesar de ter lido muitos artigos sobre o tema, não vi um sequer argumentando que o Promotor de Justiça perde a imparcialidade. Ora, se preserva a imparcialidade na investigação extrapenal, porque a perde na criminal? Dizem que a investigação ministerial provocará o desequilíbrio do sistema processual penal (quebra de paridade de armas). Paridade de armas? A experiência demonstra que o desequilíbrio é em favor do autor do crime, sempre em vantagem em relação ao Estado que o investiga, pois o criminoso conhece o fato praticado, já o Estado não. Outro dia ouvi um jurista bradando que a sociedade perde com um Ministério Público com tanto poder!!!! A sociedade perde? Como? Será que essa PEC passa pelo crivo da sociedade, do povo, aquele que a CF/88 diz ser o real detentor do poder? Será que a sociedade ratificaria essa PEC num plebiscito ou referendo? São estas as minhas impressões, escritas com o devido respeito que merecem as polícias civil e federal, órgãos tão importantes quanto o Ministério Público no combate ao crime (em especial, o organizado, que hoje aparece como um expectador torcendo pela aprovação da PEC). Rogério Sanches Cunha Promotor de Justiça em São Paulo Professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do Mato Grosso e de Santa Catarina Cidadão brasileiro

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – 59% dos brasileiros, em maio, admitiam futuro promissor para o Brasil

Na presidência da República o serviço de inteligência não antecipou absolutamente nada sobre as manifestações populares de junho de 2013. O serviço de inteligência não funcionou (O Estado de S. Paulo de 23.06.13, p. A4). A Revolução J-13 (junho de 2013) tampouco foi prevista pelos meios de comunicação, partidos, instituições governamentais ou privadas. Ninguém imaginou a revolta popular mais contundente e eletrizante, depois da redemocratização (1985). Por quê? Porque os órgãos de pesquisa encarregados de fazer flutuar o modelo econômico-financeiro injusto e desigual, que tomou conta do mundo inteiro, mostravam, à primeira vista, um cenário favorável para os países emergentes. Pesquisa divulgada no dia 23.05.13, pela Pew Researcher Center, que é um instituto de pesquisa americano especializado em temas políticos, econômicos e sociais, apontava o seguinte: a maioria dos países centrais (com algo grau de desenvolvimento) estava insatisfeita com a sua economia; já os países emergentes se mostravam satisfeitos com os rumos que as suas economias vinham tomando. Foram aplicados questionários em 39 países, separados por três diferentes categorias – economias avançadas, mercados emergentes e países em desenvolvimento econômico, baseado nos grupos de renda do Banco Mundial, tipo de economia e classificação de especialistas. Em maio de 2013 a pesquisa dizia que, em média, 53% dos países com mercados emergentes diziam que suas economias iam bem, em comparação com 33% dos países pouco desenvolvidos e 24% de países com economia avançada. Estão particularmente negativas (as economias) em países Europeus como a França (9% de satisfação positiva), Espanha (4%), Itália (3%) e Grécia (1%). Participantes em mercados emergentes como China (88%) e Malásia (85%) disseram que a economia vai especialmente bem. No Brasil, 59% dos participantes da pesquisa se disseram satisfeitos com o país em termos econômicos. Quando perguntados como eles acreditam que a economia estaria daqui a 12 meses, 79% disseram acreditar que a economia iria melhora, 15% acreditavam que permaneceria igual e outros 6% julgaram que estaria pior. China chegou a 80% de otimismo e Malásia 64%. A maioria dos países europeus não esteve tão otimista. Nos EUA, 33% dos entrevistados disseram acreditar numa piora da economia, na Espanha chegou a 47%, na França 61% e Grécia 64%. Apesar de se mostrarem satisfeitos com as possibilidades de melhora da economia, a maioria dos países se dizia insatisfeita com os rumos que o país vinha tomando. Entre os participantes da pesquisa no Brasil, 55% disseram não estar satisfeitos com a direção que o país vinha mostrando. Dos países de mercado emergente, China e Malásia foram os países que mais demonstraram ter boa perspectiva sobre o futuro do país, com mais de 80% dos entrevistados satisfeitos. Já Grécia, Itália e Espanha foram os mais desacreditados por 2%, 3% e 5% da população insatisfeita, respectivamente. Seguindo o mesmo passo, a maioria dos países acredita que a economia está atualmente ruim. Em metade dos países de mercado emergente, ao contrário, a população acredita que a economia está boa, apresentando em média 70%. No Brasil, esse índice chegou a 59% de satisfação, enquanto China e Malásia apresentaram cerca de 80% e a Argentina 39% de satisfação. Países da Europa como Grécia, Itália e Espanha apontaram, em média, 97% de insatisfação. O que faltou em relação ao Brasil? Perceber que os brasileiros se mostravam satisfeitos com a economia (59% em maio de 2013), mas não escondiam preocupações sérias: 55% disseram não estar satisfeitos com a direção que o país vinha mostrando. De outro lado (como informou o Valor Econômico): Principal problema – Ao apontar o principal problema que o governo deve enfrentar, 46% dos brasileiros ouvidos na pesquisa apontaram a falta de oportunidades de emprego, ainda que a taxa de desocupação esteja hoje nas mínimas históricas. É uma fatia bem superior aos 24% que pedem mais atenção aos preços em alta, mesmo num cenário em que a inflação segue perto do teto da meta, de 6,5%. Desigualdade – Apesar da redução da desigualdade de renda apontada por indicadores socioeconômicos nos últimos anos, 75% dos entrevistados no Brasil dizem que esse ainda é um grande problema, com 50% dizendo que a distância entre ricos e pobres tem aumentado. É essa injustiça brutal e secular relacionada com a desigualdade (Casa Grande e Senzala) que foi parar nas ruas de todo país. Ocorre que essa injustiça, como vem de 1.500, é ignorada por todo mundo dominante. Ela foi naturalizada (internalizada) no nosso processo de socialização. Mas o ser humano não suporta a injustiça eternamente. Um dia tinha que se rebelar. E se rebelou! *Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bahia: o 3 estado menos encarcerador do país

LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)* Com base nos dados mais recentes do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), de junho de 2012, o Instituto Avante Brasil constatou que, com uma taxa de 80,11 presos por 100 mil habitantes, o Maranhão é o estado menos encarcerador do Brasil. E em seguida, vêm o Piauí (taxa de 105,87 presos/100 mil hab.) e a Bahia (taxa de 107,61 presos/100 hab.), respectivamente, o segundo e o terceiro estados menos encarceradores do país. No que toca à Bahia, no entanto, apesar de ser o terceiro estado menos encarcerador, o estado baiano possui a 9ª maior população carcerária das 27 unidades federativas do país (26 estados + o Distrito Federal), um total de 15.088 presos! Assim como os demais estados brasileiros, a Bahia padece de muitas mazelas em seu sistema prisional, já que, no último Mutirão Carcerário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou-se que a maior penitenciária do estado foi construída na década de 50 e está superlotada, sendo que muitos presos dormem no chão, debaixo da cama dos demais. Ela também é insegura e carece de atendimento médico. Em outra unidade, localizada em Salvador, a água fica disponível apenas por 15 minutos ao dia (Veja: Bahia: prisões inseguras e falta assistência médica). Ante tanta desumanidade e descaso não só na Bahia como nos estabelecimentos prisionais de todo o país, acreditar que a pena privativa de liberdade seja a solução para prevenir a maioria dos delitos tipificados no Código Penal e na Legislação Penal Brasileira e também para recuperar os detentos que ali se encontram já deixou de ser uma ilusão, e se tornou uma verdadeira hipocrisia. *LFG – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.professorlfg.com.br. **Colaborou: Mariana Cury Bunduky – Advogada, Pós Graduanda em Direito Penal e Processual Penal e Pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Brasil constrói presídios; Coréia do Sul expande educação

O debate sobre a redução da maioridade penal, que tanto emociona o senso comum do rebanho bovino (esta última locução é de Nietzsche) e de seus pastores (legislativos, políticos, judiciais, religiosos, midiáticos etc.), nos leva, naturalmente, a comparar o Brasil com a Coréia do Sul. Em 2014 o Brasil sediará a Copa do Mundo de Futebol e vai mostrar para o mundo todo o quanto é precária nossa infraestrutura. Estádios, aeroportos, transportes, estradas, hotéis, comunicações etc., tudo pode nos envergonhar. No mesmo ano a Coréia do Sul vai abolir os livros de papel em todas as suas escolas: 100% dos alunos sul-coreanos usarão tablets eletrônicos. Um programa de 2 bilhões de dólares conectará todos os alunos da escola primária na internet. Em 2015 será a vez dos alunos da escola secundária. Na América Latina, neste item, destaque é o Uruguai, que tem um computador para cada aluno da escola primária. A Coréia do Sul fez sua aposta na educação. O Brasil, no crescimento das prisões, que vão agora explodir com os menores lá dentro. A Coréia do Sul está entre as campeãs em avanços educacionais. O Brasil é o campeão mundial (absoluto) no encarceramento de pessoas. Nos últimos vinte anos (1990-2010), houve aumento de mais de 470% (contra 77% dos Estados Unidos). A Coréia do Sul está educando, o Brasil está prendendo (e “educando” o interno para a criminalidade organizada). Enquanto a Coréia do Sul compra tablets para seus alunos, o Brasil está construindo presídios, ou melhor, campos de concentração e de treinamento (para melhorar a performance da crueldade dos presidiários). De acordo com levantamento do nosso Instituto Avante Brasil, a quantidade de detentos não-condenados nas cadeias brasileiras subiu 1.253%, de 1990 a 2010. Já o número de definitivos cresceu 278%. Quarenta e dois por cento (42%) dos detidos são provisórios. Em 1990 esse índice era de 18%. Pesquisa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) demonstra que a Coréia do Sul é uma das campeãs mundiais no uso de computadores pelos estudantes. No ensino médio, um para cada 7 estudantes. No Brasil, 1 para 33 alunos. De acordo com o exame mundial PISA (que avalia o nível dos estudantes), no item compreensão de leitura pelos alunos de 15 anos, a Coréia do Sul ocupa o segundo lugar. O Brasil é um dos últimos colocados. Está na frente do Zimbábue, é certo. Em 2015 a Coréia do Sul já não estará gastando nada com papel, impressão e distribuição de materiais escolares: todo o conteúdo do curso estará disponível em tablets eletrônicos para os alunos. O Brasil, neste ano, em contrapartida, já terá alcançado a marca de (mais ou menos) 700 ou 800 mil presidiários. Quantas reformas penais o legislador brasileiro fez, de 1940 a 2012? 136 reformas no Código Penal. Diminui a criminalidade no Brasil? Nada. Em 1980 tínhamos 11 assassinatos para 100 mil habitantes. Em 2010, 27.4 mortos para 100 mil habitantes. Todos os indicadores criminais aumentaram. Em lugar da educação, jogamos nossa energia em reformas penais e encarceramento massivo. O resultado é o aumento do rebanho bovino e dos analfabetos. Por falta de informação, que raramente é dada pela mídia, chegou-se a 93% de apoio (Datafolha) para a redução da maioridade penal. Estudo realizado pelo Instituto Avante Brasil verificou (a partir dos dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que no período compreendido entre 1994 e 2009 houve uma queda de 19,3% no número de escolas públicas do país; em 1994 haviam 200.549 escolas públicas contra 161.783 em 2009. No mesmo período o número de presídios aumentou 253%. Em 1994 eram 511 estabelecimentos; este número mais que triplicou em 2009, com um total de 1.806 estabelecimentos prisionais. Hoje está perto de 2 mil e 500 presídios. Em 1950, 63% da força de trabalho brasileira estava na agricultura; 20% em serviços e 17% na Indústria. Na Coréia do Sul, no mesmo ano, 60% da força de trabalho estava na agricultura, hoje é menos de 10%; em serviços, de 28% subiu para 63% (hoje). A produtividade desse setor, na Coréia (conforme Ferreira e Fragelli, Valor Econômico de 22.05.13, p. A15), cresceu continuamente a 2% ao ano. A Coréia, mais pobre que o Brasil em 1950, é hoje duas vezes mais rica, em termos de renda per capita. Em 1960 o PIB per capita lá era de 900 dólares; hoje é de 32 mil dólares (Brasil, 10 mil). Em 1960 tínhamos (Brasil e Coréia) 35% de analfabetos. Hoje ainda temos 13% (sem considerar os analfabetos funcionais) e eles têm ZERO. Apenas 18% dos jovens brasileiros estão nas universidades; na Coréia, apenas 18% estão fora da universidade. A evasão escolar no final do ensino médio, no Brasil, é de 60%; na Coréia é de 3%. A Coréia do Sul, hoje, é uma locomotiva mundial. O Brasil é um grande presídio, cheio de analfabetos, sobretudo funcionais. A que se deve tanta diferença entre os dois países?… Nos últimos 50 anos, enquanto a Coréia do Sul investia massivamente em educação, o Brasil, atendendo, sobretudo, a pressão midiática e o populismo punitivo, gastava seus parcos recursos construindo presídios. Qual dos dois países está preparando melhor seus jovens e adolescentes para a vida futura? O jovem sul-coreano está na Universidade, o brasileiro está na Universidade do Crime: quem tem mais chance de progresso? Qual país vai crescer mais? Quem estará melhor dentro de 10 anos? A educação não saiu dos planos governamentais, muito menos da cabeça das elites pensantes e dominantes nos países asiáticos. Entre 1950 e 1980 a escolaridade média lá cresceu quatro anos; no Brasil, um pouco mais de um ano. Como se vê, a brutal diferença está na relevância que se dá à educação e à qualificação profissional. Eles estão treinando os jovens em escolas duras e profícuas. Nós estamos treinando grande parte da juventude no crime organizado e nos presídios. Os desníveis, claro, são marcantes. Enquanto o Brasil vivia sua estagnação econômica entre os anos 80 e 90, quando então começou o processo de encarceramento massivo, a Coréia não descuidava da infraestrutura, da urbanização, dos serviços públicos, da escolarização etc. O debate que estamos agora fazendo sobre a criminalização dos menores, que deveriam estar todos na escola até os 18 anos, comprova que o senso comum do rebanho bovino não aprendeu nada com a Coréia do Sul. Continuamos repetindo nossos clássicos erros: fechando escolas e abrindo presídios! O Governo, a sociedade civil, os partidos políticos e o mundo empresarial deveriam promover um sério e definitivo pacto pela educação de qualidade para todos, que começaria a produzir frutos notáveis imediatamente (não daqui a 20 anos, como afirmam os pessimistas), na medida em que todos os menores estariam fora das ruas, nas escolas, das 8 às 18h, em tempo integral, desde tenra idade até os 18 anos (com algumas exceções controladas pelo Ministério Público, a partir dos 16 anos). O Brasil, perdido em discussões sobre como aumentar o número de presidiários, fechando escolas para construir mais presídios, sem sombra de dúvida, é um país que se apresenta mundialmente de ponta-cabeça: DESORDEM (geral: na economia, no controle social, no processo de urbanização etc.), PROGRESSO (sétima economia do mundo) e BARBÁRIE (isso é o que deveria estar escrito na nossa bandeira). Estamos longe de chegar ao ser humano do grande meio-dia, como diz Nietzsche. Estamos muito mais para o primata das 8h da manhã, que para o Super-humano do entardecer. Que pena! Quanta oportunidade perdida! Quantas gerações futuras perdidas! Quantas vidas perdidas! Quanto analfabetismo! Quanto senso comum de rebanho!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Brasil e a governança do caos

Se governança “diz respeito a como os hábitos culturais, as instituições políticas [e jurídicas] e o sistema econômico de uma sociedade podem se alinhar para gerar a qualidade de vida desejada pela população” (Berggruen e Gardels, Governança inteligente para o século XXI, 2013, p. 46), resulta evidente que a boa governança acontece quando todos esses elementos encontram o devido equilíbrio, proporcionando resultados de longo prazo e bastantes satisfatórios para o interesse comum, ou seja, para o interesse individual e coletivo, de todos que almejam uma convivência próspera e economicamente sustentável. Quando podemos falar em má governança? Quando os hábitos culturais da população e do governo são egoístas, ou seja, quando as pessoas só pensam no interesse próprio e não no coletivo; quando as instituições políticas e jurídicas se tornam disfuncionais, porque marcadas pela corrupção, pelo imediatismo, pela morosidade, pela inacessibilidade ou pelo corporativismo vil e abjeto; quando o sistema econômico está voltado para o atendimento das necessidades e cobiças de alguns, que se apoderam da mão de obra alheia sem a devida remuneração justa; quando os grupos de pressão (mídia, financiadores de campanhas eleitorais, sindicatos, associações religiosas etc.) assumem (total ou parcialmente) o comando do regime democrático; quando a decadência da classe política se torna notória, porque voltada não para o interesse geral da nação (como imaginava Rousseau), sim, para seus interesses privados, em busca da perpetuação no poder; quando os déficits públicos se tornam insustentáveis; quando as dívidas se tornam impagáveis; quando o crime organizado, inclusive mediante cartéis, surrupiam a possibilidade de crescimento da economia; quando a corrupção passa a ser a regra em todos os níveis da governança (local, regional, estadual e nacional), destruindo a confiança na administração pública; quando os corruptos e os corruptores ficam impunes, criando a crença de que a Justiça não funciona contra eles; quando a desigualdade alcança patamares insuportáveis, gerando grande mal estar (individual e coletivo); quando a violência se torna desenfreada, em razão da quase absoluta disfuncionalidade das instituições; quando as instituições religiosas, no estado laico, defendem um novo tipo de intolerância etc. Sempre que a população se convence de que está havendo uma má governança, deixa de lhe dar seu consentimento. O governo entra em decadência (declínio) e perde sua legitimidade assim como as eleições. Acontece o que é da essência do sistema republicano: a mudança do governo. E quando, apesar de todas as disfuncionalidades e mazelas da cultura, das instituições e do sistema econômico, acontece o “milagre” de, mesmo assim, o povo achar que se trata de uma boa governança? Nesse caso devemos falar na habilidade para governar o caos, o que significa, na prática, não perder a legitimidade nem as eleições. Se os EUA continuam centrados no seu padrão de governança norteado pela democracia liberal com economia de mercado livre, se a China ostenta outro modelo de governança, sustentada pela meritocracia dos seus mandarins (comandantes do Partido Comunista da China) assim como pelo capitalismo de estado (capitalismo comunista), pode-se afirmar que o Brasil, diante de todas as suas peculiaridades, está revelando para o mundo uma terceira via (terceiro-mundista), que consiste em governar o caos, estampado nas desigualdades ostensivas entre a Casa Grande e a senzala (G. Freire), na pobreza de grande parcela da sua população, no analfabetismo, na ausência de infraestrutura, na péssima qualidade da educação pública ou privada (ressalvadas as devidas exceções), na economia ainda marcadamente escravagista, nas elites egoístas, que não pensam o Brasil como nação, etc.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bruno disse se sentir culpado pelo assassinato de Eliza

Bruno disse se sentir culpado pelo assassinato de Eliza, mas não confessou ter sido seu mandante. O crime foi planejado por Macarrão (seu assessor) e Jorge Luiz (seu primo), que levaram a vítima para o local da execução, levada a cabo por “Bola” (policial contratado para o ato). Seu enigmático interrogatório possui muitos significados e denota ser fruto de uma grande estratégia defensiva, mandando mensagens diretas tanto para os jurados (que decidirão se ele é culpado ou inocente) como para a juíza (que vai fixar a pena, em caso de condenação). Nos jurados o que ele quis foi plantar a dúvida. Apesar de a constituição garantir o silêncio, isso pode ser interpretado de forma desfavorável pelos jurados, que não fundamentam os votos. Da juíza o que ele pretende é uma redução de pena (participação de menor importância), mesmo não tendo confessado ser mandante, nem delatado nenhum desconhecido participante do delito. Para os debates orais de hoje podemos destacar dois pontos cruciais: 1°) tornou-se quase impossível questionar a morte de Eliza, que foi confirmada pelo acusado Bruno; 2°) o promotor vai ter que se valer de toda sua capacidade persuasória para, com base em todos os indícios constantes do processo, convencer os jurados de que Bruno tinha o domínio de todos os fatos, ou seja, que foi o mandante do crime. E a defesa? Com base no benefício da dúvida, vai tentar arrancar pelo menos 4 votos dos jovens jurados que compõem o Conselho de Julgamento.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bruno poderia confessar?

A acusação resultou bastante favorecida no primeiro dia do julgamento do ex-goleiro Bruno e Dayanne, que começou com certo tumulto, logo controlado com firmeza pela juíza. O longo depoimento da delegada de polícia Ana Maria dos Santos, em razão da sua contundência, ratificando incontáveis detalhes do estrangulamento da vítima, presenciado e narrado por Jorge Luiz, primo do Bruno, pode ser decisivo para o desfecho do caso. Considere-se, ademais, que são cinco juradas e apenas dois jurados. Teoricamente isso poderia ser prejudicial para a defesa. A desconstrução da credibilidade dos indícios existentes contra Bruno é a tática que está sendo usada pelo defensor. Ao desistir da oitiva de todas as testemunhas por ele arroladas, fica evidente que não pretende mesmo sustentar nenhuma tese de inocência do réu. Irá para os debates valendo-se somente do que está dentro do processo, sem a preocupação de agregar qualquer prova nova que possa mudar radicalmente o rumo do julgamento. De duas, uma: ou ele está muito convencido da força da argumentação que vai apresentar nos debates finais ou ele conta com eventual confissão e delação do réu, o que lhe poderia significar uma substancial diminuição da pena, tal como ocorreu com Macarrão no julgamento anterior. Aliás, a postura do réu em plenário, cabeça baixa, chorando e lendo a bíblia, deve ser interpretada mais como um pedido de perdão, do que a rebeldia de um inocente injustamente acusado de um crime que não cometeu nem mandou ninguém cometer.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bullying: o que é este fenômeno, afinal?

Luiz Flávio Gomes* Natália Macedo Sanzovo** Recentemente o “Fantástico” divulgou uma reportagem sobre as agressões ocorridas nas escolas públicas do Estado de São Paulo (clique para ver o vídeo). O vídeo traz cenas chocantes de violência física entre os próprios alunos, bem como entre alunos e professores. A questão que vem à tona é: todas as agressões apresentadas no vídeo revelam situações de bullying? Afinal, o que é este fenômeno? Em nosso livro, Bullying e prevenção da violência nas escolas. Quebrando mitos e construindo verdades (que será lançado na próxima quarta-feira, 05/06, às 19h30, na Livraria Saraiva do Shopping Paulista, São Paulo – SP), descrevemos que bullying não é brincadeira ou desentendimento saudável de crianças ou adolescentes, nem tampouco uma única agressão ocorrida no contexto escolar. O fenômeno compreende atitudes agressivas de todas as formas, praticadas de forma intencional e repetida, sem motivação evidente, adotadas por um ou mais indivíduos contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder[1]. Portanto, o que diferencia o Bullying escolar de outros conflitos ou desavenças pontuais é seu caráter repetitivo, sistemático, doloroso e intencional de agredir (verbal, física, moral, sexual, virtual ou psicologicamente) alguém notoriamente mais vulnerável, evidenciando um desequilíbrio de força (poder e dominação) entre os envolvidos. Trata-se, assim, de uma subcategoria de violência bem específica que abrange muito mais do que desentendimentos cotidianos escolares e problemas estudantis, representa, sim, verdadeiro processo maléfico aos envolvidos, podendo, inclusive, ser fatal (veja:Bullycídio: mais grave do que você imagina!). Desta forma, nem todas as cenas de violências contidas no vídeo do fantástico caracterizam o fenômeno do bullying, como é o caso, por exemplo, da que registra oestudante de 15 anos agredindo uma professora de inglês dentro da sala de aula. De acordo com a professora, a agressão ocorreu por conta de uma nota baixa, vez que o estudante não havia feito o dever. Trata-se aqui de um conflito pontual, único, representando clara violência escolar, todavia, não o fenômeno do bullying. O mesmo se aplica à cena em que o estudante é quem é agredido pelo professor. O aluno relata que no início da aula houve uma troca de insultos, mas em tom de brincadeira: “Ele me chamou de gordo. Chamei ele de cabeçudo. Parecia mais uma baderna que uma aula. Todo mundo brincava”. No entanto, de acordo com o estudante, o professor ficou nervoso e partiu para cima dele no fim da aula: “Começou a me encurralar. Me cercar. Eu falei: ’Professor, eu estava brincando’. Neste caso também não há o que se falar em bullying, vez que falta o caráter repetitivo e sistemático da agressão, configurando-se, da mesma forma que no caso acima, uma desavença pontual. Assim sendo, nem toda violência escolar é bullying. Para sua caracterização, imprescindível que todos os requisitos acima descritos estejam presentes, sendo, portanto, um fenômeno complexo e grave, vez que os efeitos das ações agressivas podem ser catastróficos. Isto mesmo, as práticas decorrentes do fenômeno do bullying podem comprometer asaúde física e mental das vítimas, seu desenvolvimento socioeducacional e, ainda, gerar a retaliação (a reprodução da violência que pode ser exteriorizada tanto na forma de agressão pontual contra os agressores e demais alunos, como por meio de ataques violentos à escola), condutas de automutilação e, até mesmo, pensamentos e ações suicidas. É o caso, por exemplo, da aluna Isabela Nicastro que assume ter sido vítima decyberbullying em entrevista concedida ao apresentador Serginho Groisman, no programa Altas Horas (veja o vídeo no canal do youtube). Excelente aluna, destaque em sala de aula, notas altas, Isabela foi bombardeada com agressões verbais, via internet. Alguns alunos de sua sala criaram um website em que a chamavam de “naja” e demais apelidos vexatórios. Era humilhada e perseguida 24 horas por dia, 7 dias por semana, situação que gerou extremo sofrimento e a queda do desempenho escolar. Não suportava a ideia de voltar às aulas e confessa que chegou a idealizar o suicídio. Este sentimento não é incomum. Em nosso livro, exploramos um estudo realizado pelaUniversidade de Yale nos Estados Unidos (“Bullying and suicide. A review”, realizado em 2008 pela Dra. Young-Shin Kim, pertencente ao centro de estudos de crianças, e pelo psiquiatra Dr. Bennett Leventhal), que identificou o Bullying como uma das principais causas do suicídio de crianças e adolescentes. E mais, que o suicídio é a 3ª maior causa de mortalidade no mundo, nesta faixa etária, atrás apenas dos acidentes de trânsito e homicídios (para mais detalhes, veja o capítulo 8 do nosso livro). O estudo também revelou que 19% dos alunos entrevistados pensaram em se suicidar; 15% traçaram estratégias para cometer o suicídio; 8,8% executaram os planos suicidas e foram interrompidos por outrem e, 2,6% foi a porcentagem das tentativas sérias o bastante que exigiram intervenções e acompanhamento médicos permanentes. Dentre os casos mais chocantes de bullycídio, podemos mencionar o do alunoCurtis Taylor, da escola secundária em Iowa, Estados Unidos, vítima por três anos ininterruptos de violência escolar (espancamentos no vestiário, pertences danificados e arremessos diários de leite achocolatado em sua camisa) suicidou-se em 21 de Março de 1993, bem como o trágico episódio que ocorreu comJeremy Wade Delle. O aluno se matou aos 15 anos dentro da sala de aula, na presença dos demais alunos e da professora, como forma protesto ao Bullyingsofrido (em 8 de janeiro de 1991, numa escola do Texas nos Estados Unidos). Portanto, as consequências do bullying não se esgotam em problemas de rendimento escolar ou relacionamento social do aluno, seus efeitos podem ser devastadores, ocasionando tanto casos de automutilação, como o próprio “bullycídio“. Assim, este fenômeno exige nossa atenção, afinal, o bullying está amplamente disseminado no Brasil: foi o que revelou a mais recente pesquisa nacional, da ONG PLAN, de 2009. De acordo com a pesquisa, o bullying atinge 10% das crianças e adolescentes em todo o país, o que significa dizer que apenas no ano de 2012, por exemplo, 5.097.261 crianças e adolescentes podem ter sofrido com o processo dobullying, tendo em vista que o número de crianças e adolescentes devidamente matriculados tanto em escola pública, como privada, foi de 50.972.619 (para ver os números da educação, clique aqui). Nos Estados Unidos esta estimativa é ainda maior. Segundo o Departamento de Educação dos Estados Unidos (U.S Department of education), estima-se que mais de 13 milhões de crianças e adolescentes americanas foram “bulinadas” neste período. Desta forma, diante da vitimização em larga escala é substancial que ações sejam adotadas e direcionadas à prevenção do fenômeno do bullying, tais como, medidas educativas voltadas para o agressor e vítima (para melhor compreensão do caráter reprovável da conduta), bem como programas preventivos (chamados de anti-bullying) desenvolvidos para a escola, família e aluno (a exemplo, cita-se o Bully Free Program, programa preventivo americano e Olweus Bullying Prevention Program, programa preventivo norueguês). A eficácia destes programas ficou comprovada pelos números que as escolas piloto apresentaram: redução de 26% nos casos de bullying, quando aplicado o programa da OBPP (Olweus Bullying Prevention Program) e 20,2%, nos casos nas das escolas que utilizaram o Bully Free Program. Assim, para conhecer mais sobre o assunto, convidamos você a se debruçar sobre o nosso livro Bullying e prevenção da violência nas escolas. Quebrando mitos e construindo verdades. Repleto de pesquisas e levantamentos nacionais e internacionais, o livro se propõe a desmistificar e demonstrar a nocividade deste fenômeno, trazendo à tona a prevenção como caminho válido e definitivo para o enfrentamento do bullying. * Jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. **Advogada e pós graduanda em Ciências Penais.

[1] FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz, 2ª ed, Campinas: Verus, 2005.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Bruno: a “senha”

O Prof. Luiz Flávio Gomes fala sobre uma possível “senha” que poderia impulsionar Bruno a uma confissão, que o beneficiaria. Assista ao vídeo Veja também: Caso Bruno: efeitos jurídicos da confissão Início do segundo dia de julgamento Caso Bruno: teoria do domínio do fato. Teria aplicação? Caso Bruno: chorando, de cabeça baixa e lendo a bíblia: isso ajuda?

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Bruno: defesa contesta expedição de certidão de óbito. Eliza morreu?

A juíza do caso Bruno (dra. Marixa) expediu, em janeiro, uma certidão de óbito da vítima Eliza. A defesa não concorda com isso. Mas tem que desfazer esse ato dela (se houve equívoco) em outro processo. No plenário do júri a defesa tem direito de contestar tal certidão, de dizer que a vítima não morreu etc. Tudo isso faz parte da plena defesa (que é mais que ampla). Mas só se pode anular a certidão em outro processo. No júri, quem decide tudo são os jurados. Eles têm liberdade de aceitar ou não a morte da vítima (é tema que será objetivo do primeiro quesito). Acompanhe a cobertura completa do julgamento do goleiro Bruno (com comentários jurídicos): Nova testemunha: até quando pode ser convocada e por quem? Se Bruno destituir novamente o advogado, pode ser julgado? A juíza pode nomear Defensor Público? Qual a penalidade para quem injustificadamente se negar a prestar serviço no júri (ser jurado)? Quantos jurados podem ser recusados injustificadamente? E justificadamente? Caso Bruno: quem pode ser jurado? Caso Bruno: desaparecimento de parte do processo. Nulidade? Caso Bruno: Quaresma vai participar. Haverá tumulto? Caso Bruno: investigações paralelas podem suspender o julgamento de hoje? Qual a penalidade para quem injustificadamente se negar a prestar serviço no júri (ser jurado)? Caso Bruno: morte em Vespasiano, processo em Contagem. Há nulidade? Caso Bruno (2): morte em Vespasiano, processo em Contagem. Há nulidade?

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Bruno: inocente ou culpado?

Tem início hoje (04.03) o julgamento do ex-goleiro Bruno e Dayanne. Bruno é acusado de ter mandado matar Eliza Samúdio (e ter promovido o sequestro dela e do filho do casal). A nova investigação aberta pela polícia civil, sobre a possível participação na execução da vítima de outros policiais, só tende a beneficiar o “Bola” (gerando dúvida sobre a autoria da execução). Em princípio, não altera a situação processual do ex-goleiro, que é complexa. Por quê? Porque o promotor (Henry Castro) já disse que vai explorar todas as provas indiciárias contra ele (delação de Macarrão, telefonemas entre todos eles no dia dos fatos, sangue no carro do acusado Bruno, depoimentos de testemunhas etc.). Claro que grande peso tem a surpreendente delação de Macarrão. De qualquer modo, naquele dia Bruno não estava lá para fazer o contraditório. Vai exercê-lo agora. Tentará a defesa retirar a credibilidade da delação. Promete o assistente de acusação (doutor Arteiro) uma “bombástica” testemunha, que tudo saberia contra Bruno. Aguardemos! Não há impedimento legal de a juíza determinar a oitiva de uma testemunha não arrolada pelas partes. A tática da defesa (conduzida por Lúcio Adolfo) será a desconstrução da validade dos indícios, gerando, assim, dúvida na cabeça dos jurados. A dúvida, como sabemos, favorece o réu. Noticia-se que os jurados serão sorteados entre 17 mulheres e 8 homens (informação não oficial). A composição feminina, em tese, favoreceria a acusação, porque estamos diante de um crime com características “machistas”. Teoricamente haveria solidariedade das juradas com o sofrimento e humilhação da vítima (uma mulher). Na prática, no entanto, não existem provas empíricas do que é afirmado teoricamente. Caso os jurados condenem Bruno, sua pena pode chegar (no máximo) a perto de 41 anos. De qualquer modo, os juízes e tribunais brasileiros não costumam aplicar a pena máxima. Considerando-se o total da pena de Macarrão (23 anos, menos 8 pela delação, resultando em 15 anos), é plausível supor que eventual condenação de Bruno seja sancionada com pena maior, caso venha a ser reconhecido como mandante (algo em torno de 25 a 30 anos). Terá que cumprir disso 40% em regime fechado (por se tratar de crime hediondo), descontando-se o tempo já cumprido de prisão. Tudo isso, no entanto, é pura especulação, porque no cenário da defesa é perfeitamente possível a absolvição. A defesa tudo fará para desmontar a força dos indícios incriminatórios. O Tribunal de Justiça de MG adiou, na última quarta, o julgamento do HC impetrado por Bruno. Fez isso com prudência. Nenhum tribunal julga HC de um réu com júri marcado para 4 ou 5 dias depois. O Tribunal vai aguardar o veredito dos jurados. Caso absolvam, liberdade imediata; caso condenem, a tendência é a manutenção da prisão (réu que respondeu preso, normalmente continua preso). O questionamento relacionado com a ausência do corpo da vítima continua aberto. Se a defesa vai ou não insistir nisso não sabemos. De qualquer modo, o fato de a Justiça ter expedido uma certidão de óbito não impede tal questionamento (porque a certidão também se fundamentou numa presunção). A testemunha Jorge Luiz (primo do réu) já prestou vários depoimentos contraditórios. O último para o “Fantástico”. Sua credibilidade perante os jurados está minguada. De qualquer maneira, eventual depoimento bastante convincente pode impressionar os jurados. Fundamental será o interrogatório do réu. Fará o contraditório (diferido) frente ao que disse Macarrão e mostrará seus argumentos. Réu convicto da inocência costuma impressionar. Quando não mostra convicção, afunda a defesa (tal como ocorreu recentemente em vários julgamentos midiáticos). Não havendo provas diretas (seja sobre o corpo da vítima, seja sobre a autoria), são relevantíssimos os debates orais. Estaremos acompanhando esse julgamento, passo a passo, e informando nossos seguidores no atualidadesdodireito.com.br. Que a juíza, doutora Marixa Rodrigues, não seja surpreendida com os tumultos do julgamento anterior.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Concursos públicos no divã. A politicagem é a praga maldita.

Uma recente matéria sobre o aperfeiçoamento dos concursos públicos no Brasil publicada no jornal O Estado de S. Paulo (04.03.13, p. A3) afirma o seguinte [entre colchetes estão as minhas observações]: a) que a média salarial no serviço público é de R$ 3.000 (em dezembro de 2012), contra R$ 1.600 da iniciativa privada (segundo dados do IBGE) [paga-se melhor em razão das responsabilidades da função; o serviço público, com isso, teoricamente, tem a possibilidade de selecionar as pessoas mais preparadas para cada atividade pública]; b) que essa seria a razão principal para a busca do cargo público (pelos milhares de candidatos) [nem sempre isso é verdadeiro; em muitos casos o candidato procura uma carreira para realizar um sonho, um pendor, ou uma tradição familiar; mas mesmo quando o candidato busca a carreira pelo dinheiro, fundamental é saber se é – ou não – um bom profissional; para isso é indispensável a fixação de um estágio probatório em todas as carreiras]; c) que os candidatos não preparados alimentam o negócio de empresas que se dedicam a treinar os candidatos para as provas [se não existissem os renomados e indispensáveis cursos preparatórios, provavelmente o poder público iria selecionar gente muito despreparada para o cargo; os cursos cumprem a função social de melhorar a qualidade do candidato e, em consequência, do próprio serviço público]; d) que um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF) revelou que os testes selecionam não os candidatos mais adequados para os cargos em disputa, sim, os que se preparam melhor para a prova, independentemente do currículo acadêmico ou profissional que tenham. Isso comprometeria a qualidade do serviço público; o concurso virou “um fim em si mesmo”; não afere as competências reais dos candidatos [três fatores são decisivos para a formação de um corpo de funcionários qualificado: o concurso público, muito treinamento nos primeiros anos da função e um período de estágio probatório rigoroso e instrutivo, porque é nele que se descobre se o funcionário tem ou não pendor para o exercício da função pública]; e) cerca de 12 milhões de pessoas estariam interessadas em ingressar no funcionalismo público (segundo a Agência Nacional de Proteção e Apoio ao Concurso Público – Anpac) [num país de regime capitalista egoísta, consumista e individualista, onde o emprego privado não conta com nenhuma garantia, todos que podem, buscam estabilidade e o melhor para as suas carreiras]; f) que o setor movimentaria anualmente mais de R$ 30 bilhões [grande parcela desse total vai para os cofres do próprio setor público, que cobra altas taxas para a inscrição nos concursos; outra parcela se gasta com livros e apostilas, com as empresas contratadas para a elaboração das provas, com a logística de segurança para a realização das provas etc.]; g) a multidão está atrás dos benefícios associados ao serviço público [o serviço público tem benefícios, mas também muitas responsabilidades; são cargos procurados porque a economia privada não comporta todos os jovens que buscam trabalho, estabilidade, bons salários etc.]; h) o servidor tem estabilidade e um salário inicial acima do oferecido pela iniciativa privada [não vejo nada aético na busca das melhores oportunidades na vida; o salário deve sempre ser compatível com o nível de responsabilidades assumidas em função de uma atividade pública, voltada para toda população]; i) pode começar ganhando mais de R$ 10.000; os melhores salários estão vinculados às provas mais difíceis, não às exigências curriculares [constitui um erro crasso prescindir das provas difíceis, quando os cargos são relevantes; como dissemos acima, a boa formação da carreira pública exige: concurso exigente, excelente etapa de treinamento e estágio probatório; tem muita gente com excelente currículo, mas que é uma negação de funcionário público]; j) cerca de 400 mil vagas serão oferecidas nos próximos dois anos (em razão das aposentadorias, falecimentos etc.) [estamos falando de um país com quase 200 milhões pessoas; a rotatividade no serviço público existe em qualquer parte do mundo; depois das reformas da previdência ficou muito mais difícil se aposentar; fundamental é o equilíbrio nas contas da previdência, não as críticas neoliberais ao incremento do funcionalismo público; o Brasil conta com uma das menores proporções do mundo de funcionários públicos por número de habitantes]; k) mais de 40% dos funcionários públicos contam com mais de 50 anos [esse é um bom motivo para incentivar os jovens a se prepararem para as carreiras públicas, selecionando, dentre eles, os melhores; com treinamento posterior, podem se converter em excelentes servidores]; l) somente neste ano mais de 120 mil vagas serão abertas [o serviço público não pode parar; a crítica neoliberal contra o funcionalismo público não se justifica no nosso país, que tem baixa proporcionalidade entre ele e o número de habitantes; o que não é concebível é o abominável inchaço excessivo de funcionários, sobretudo quando tem finalidade eleitoreira]; m) a concorrência é forte (chegando a 217 candidatos por vaga) [quanto mais concorrência, mais possibilidade de selecionar os melhores, os mais preparados; ser melhor preparado, no entanto, não significa ser melhor funcionário; é a fase de treinamento que vai dizer quem é bom funcionário ou não]; n) muitos candidatos dedicam cerca de 10 horas por dia, durante 2 ou 3 anos [para a conquista de um sonho nenhum obstáculo é intransponível; a estabilidade no serviço público e o salário são as recompensas pelo esforço e investimento feitos]; o) a administração pública não utiliza o estágio probatório (como fase obrigatória da carreira) [é lamentável que assim seja; é durante o estágio que se poderia aferir o pendor do concursado, eliminando os que não se mostram capazes para a função; não deveríamos criticar os concursos, sim, a falta de capacitação profissional específica para cada função]; p) os concursos deveriam abandonar o modelo de prova de múltipla escolha; melhores seriam as provas dissertativas, fundadas em situações reais da carreira [é impossível a eliminação da prova de múltipla escolha, pelo menos como primeira etapa do concurso; com ela são eliminados os menos preparados para a prova; depois de feita uma primeira seleção, é correto cobrar provas dissertativas, inclusive com situações reais da carreira; depois que o candidato mostra habilidade teórica, fundamental é a preparação prática durante o estágio probatório; o poder público vem negligenciando nesse ponto da capacitação específica]; q) deveriam fazer provas práticas [concordo; depois de fazer as provas seletivas de múltipla escolha; mais que provas práticas, após o ingresso, são fundamentais os cursos de capacitação profissional]; r) os concursos deveriam buscar os jovens talentos (nas universidades e no setor privado) [isso já está ocorrendo hoje nos concursos mais difíceis; mas talento para passar numa prova não significa talento para o desempenho da função pública, que só pode ser aferido no estágio probatório, que vem sendo negligenciado pelo poder público]; s) o concurso público é a forma mais adequada para evitar o compadrio e a politicagem [sem sobra de dúvida, assim é; porque ele é fundado na meritocracia, na medida em que inexistam fraudes no próprio certame; o preenchimento de vaga pública, ressalvadas umas pouquíssimas exceções, por meio da politicagem é uma das grandes chagas do nosso país, presentes desde a carta de Pero Vaz de Caminha]; t) é indispensável reformar o modelo de concurso, para o aperfeiçoamento do serviço público [de acordo com a minha opinião é indispensável aperfeiçoar o concurso público como modelo de ingresso na carreira pública por meio da meritocracia; mas o poder público não pode se contentar exclusivamente com ele, para a formação do servidor; o estado está negligenciando na capacitação profissional durante o estágio probatório]. [Sou totalmente favorável à aprovação de uma lei na área, que seria uma espécie de Marco Regulatório dos Concursos Públicos. Essa lei deveria instituir uma Agência Nacional que cuidaria da transparência dos concursos, da regularidade dos editais, dos direitos e deveres dos concursandos etc. É impressionante como as entidades, com pouca experiência, acabam cometendo erros triviais nos editais dos concursos, dando margem para amplas discussões jurídicas. Uma agência nacional cumpriria esse papel de prevenção de litígios].

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Mizael/Mércia: culpado ou inocente?

Segue uma síntese dos fatos noticiados. As interrogações são temas que explicaremos ao longo dos comentários a serem feitos em tempo real, durante todo o julgamento, no portal Terra. Mércia desapareceu no dia 23.05.10 (um domingo, a partir de 18.30h). Mizael diz que nesse horário estava com uma garota de programa (o álibi deve ser provado?). Pelo rastreador do carro de Mizael, a polícia constatou que das 18h40 às 22h38, ele permaneceu estacionado em frente ao Hospital Geral de Guarulhos, em uma rua a menos de cinco minutos da casa da avó de Mércia (último local onde a advogada foi vista) (seria isso um primeiro indício de autoria?). O dispositivo (rastreador) não foi apreendido, tampouco periciado pela Polícia Científica (falha investigativa?). Após denúncia anônima, no dia 10.06.10, o pai de Mércia obtém auxílio do Corpo de Bombeiros de Atibaia e realiza buscas na represa de Nazaré Paulista, no interior de São Paulo. Por volta das 15h, mergulhadores localizam o carro da advogada submerso a seis metros de profundidade. Os pertences de Mércia, como o celular e a bolsa, foram encontrados no interior do veículo (acidente ou assassinato?). No dia seguinte, por volta das 9h45, um pescador localiza o cadáver de Mércia Nakashima, que se encontrava boiando na represa de Nazaré Paulista (esse foi o local da morte. Mas o STJ mandou processar o caso em Guarulhos. Pode?). No dia 09.06.10, Evandro foi capturado na casa de parentes no município de Canindé do São Francisco, interior do Estado de Sergipe (fugiu ou foi passear?). Nas dependências policiais da cidade, o vigia teria afirmado que o ex-namorado de Mércia vinha planejando executar a advogada desde o início de maio por se sentir rejeitado (Evandro participou do crime?). No dia 20.07.10 a polícia afirma ter novas provas contra o policial aposentado, dizendo que ele ligou 16 vezes para o vigia Evandro no dia em que Mércia sumiu. O delegado que comandou o inquérito policial, Antonio Assunção de Olim, declarou que a polícia descobriu um terceiro celular pertencente a ele. O aparelho, que não havia sido declarado por Mizael, foi utilizado para combinar com o vigia Evandro Bezerra da Silva de que forma seria o crime. “No dia 23 de maio, ele falou 16 vezes com Evandro neste aparelho”, afimou Olim. Também no dia 20 é divulgado o laudo necroscópico de Mércia. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o exame revelou que a advogada recebeu um tiro que atravessou o braço esquerdo e atingiu o maxilar. Mas os médicos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo constataram que essa não foi a causa da morte. Mércia Nakashima morreu afogada na represa de Nazaré Paulista, região metropolitana de São Paulo (afogamento é asfixia). Um outro elemento de convicção colhido contra Mizael é a conclusão pericial no sentido de que a porção de terra encontrada em um par de sapatos do ex-policial militar é totalmente compatível com a da represa onde o corpo de Mércia foi encontrado. Portanto, ao contrário do que alega Mizael, trata-se de um forte indício de que ele esteve no local onde a ex-namorada foi morta (Mizael estava na cena do crime?). 10 de janeiro de 2013 – O juiz presidente do Tribunal do Júri (Dr. Leandro Jorge Bittencourt Cano) cinde o julgamento dos réus: “Tendo em vista que o corréu Evandro Bezerra Silva irá sustentar a última versão apresentada no Departamento de Homicídios, mormente no sentido de acusar o corréu Mizael Bispo de Souza, salutar a cisão dos julgamentos, a fim de que seja evitado o excesso acusatório” (foi acertada a decisão do juiz?). Acusação Sustentará a tese de que Mizael é o autor (mentor e executor) do homicídio doloso triplamente qualificado (CP, art. 212, I – por motivo torpe; III – com emprego de asfixia ou meio cruel; IV – recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido). O crime foi premeditado, e Mizael matou a advogada por ciúme (crime passional?), bem como por não se conformar com o término da relação (motivo torpe). O delito contou com a participação do vigia Evandro Bezerra da Silva (Como?). Defesa Mizael: manteve as versões que foram apresentadas das outras vezes em sede policial e na primeira fase do júri: negou as acusações imputadas, asseverando que não esteve com Mércia no dia de seu desaparecimento. Sustenta como álibi que foi visitar a filha e um irmão, com quem almoçou e, depois, saiu com uma garota de programa. Afirmou que não era amigo do vigia Evandro da Silva, e que eles apenas mantinham relações profissionais. Evandro: mudou de versão diversas vezes. Na última apresentada, atribuiu a autoria do homicídio a Mizael, dizendo que, a pedido deste, foi buscá-lo na represa em que Mércia foi morta, pois o ex-policial militar teria ido a uma festa no local. Portanto, afirma que não sabia sobre o assassinato. Ante a colidência de defesas, o julgamento foi cindido por decisão do juiz presidente do Tribunal do Júri de Guarulhos. A acusação pelo crime de ocultação de cadáver foi rejeitada quando do recebimento da denúncia. Qualificadoras (trecho da decisão de pronúncia): “(…) Quanto às qualificadoras, no caso em questão, consistentes na torpeza (insatisfação com o rompimento do relacionamento amoroso), meio cruel (disparos em regiões não vitais do corpo humano, mormente com a nítida intenção de provocar na vítima sofrimento intenso e desnecessário, além da asfixia por afogamento) e no recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa das vítimas (dissimulação), em tese, não se mostram manifestamente improcedentes ou descabidas.” Basicamente, os indícios suficientes de autoria e prova da materialidade estão evidenciados pelas provas oral e documental. De acordo com a decisão de pronúncia, em síntese, eis o acervo probatório que a respaldou: 1) relacionamento conturbado entre Mizael e Mércia em seu término (irmãos da ofendida e e-mails – fls. 11/16 dos autos apartados); 2) Mizael foi visto entrando no veículo de Mércia momentos antes do evento fatídico (testemunha Bruno); 3) os encontros entre Mizael e Evandro no posto de gasolina eram esporádicos, mas passaram a ser rotineiros nas proximidades do dia do crime (testemunha Jurandi); 4) três confissões extrajudiciais de Evandro com delação do comparsa, sendo uma delas filmada, ao passo que as outras colhidas na presença de um advogado; 5) não comprovação de sevícias em Evandro; 6) laudo sobre a reprodução simulada do crime com base no depoimento da testemunha sigilosa, a qual também foi inquirida sob o crivo do contraditório, esclarecendo a sua dinâmica (fls. 1611/1645); 7) depoimento do delegado de polícia responsável pela investigação, apontando como principais e únicos suspeitos Mizael e Evandro; 8) parentes de Evandro (irmão e cunhado) residem ou residiam nas proximidades do local em que o veículo e a vítima foram localizados; 9) por meio de cruzamento de dados telefônicos foram constatadas diversas ligações entre Mizael e Evandro no dia do crime, o que foi explicado em minúcias pelo policial civil Alexandre; 10) não apresentação da suposta garota de programa (álibi); 11) o rastreador do veículo de Mizael não apresentou qualquer defeito até o dia do crime (fls.1910); e 12) no sapato pertencente a Mizael, o qual foi regularmente apreendido, foram encontrados fragmentos de uma alga subaquática, de água doce, compatível com as características da represa de Nazaré Paulista/SP, partículas ósseas, com probabilidade acentuada de ser osso humano, resquícios de substância hematóide e partículas de cobre e zinco que, agrupadas, formam o chamado “latão”, material encontrado em projéteis de arma de fogo semiencamisados (fls. 1310/1535). Mércia e Mizael foram sócios na advocacia e namorados. Em entrevista ao portal do “IG”, a irmã de Mércia, Claudia Nakashima, disse que o namoro dos dois foi marcado por idas e vindas e muitas brigas. Quando estava com ele “Mércia era outra pessoa”. “Ela não podia falar com ninguém, vizinhos do prédio até falam que quando ela estava sozinha no elevador cumprimentava; quando estava com ele, abaixava a cabeça”, diz Cláudia. Não há provas diretas indiscutíveis (confissão de Mizael, testemunha ocular etc.). A acusação, em princípio, está fundada em indícios. Mizael se diz inocente. Escreveu um livro, mas não o juntou no prazo legal (3 dias antes do julgamento). Em princípio os jurados não terão acesso a esse livro. Segunda-feira (dia 11.03), a partir das 9h, o portal Terra fará a transmissão ao vivo do julgamento. Para comentar os aspectos técnicos e as polêmicas jurídicas do julgamento, estaremos no estúdio do Portal Terra, juntamente com professores e convidados do Portal Atualidades do Direito. Avante!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Deputado Donadon e os 6 pês: pobres, pardos, pretos, prostitutas, policiais e políticos

Depois da redemocratização (1985), o deputado Donadon é o primeiro político a ser preso (no caso, por peculato e formação de quadrilha). Quem olha desavisadamente o poder punitivo real, no Brasil, conclui que ele é mesmo adepto do direito penal mínimo, que só atua como ultima ratio, em casos excepcionais, porque muitos mais políticos poderiam estar encarcerados. A Justiça criminal sempre funciona seletivamente. Para a cadeia (que faz parte do sistema de controle social, que é guiado pela ordem econômica e financeira) os juízes somente mandam gente dos 5 primeiros pês: pobres, pardos, pretos, prostitutas e policiais. Cruzando os dados do IBGE (Censo de 2010) com os do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias de 2011, Alberto Carlos Almeida (Valor Econômico de 30, 01 e 02 de dezembro) evidenciou o seguinte: a população branca no Brasil é de 48%; a população branca na prisão é de 35%; pessoas de cor preta são 8%; nos presídios os pretos são 16%. Pretos e brancos são criminosos, mas para a cadeia preferencialmente vão os pretos. Ricos e pobres cometem crimes, mas para a cadeia somente vão os últimos. Assim sempre funcionou a Justiça criminal, desde que ela foi “colonizada” (Foucault) pelos poderes fáticos (do dinheiro). Eliane Castanhêde (Folha de S. Paulo de 23.10.12, p. A2), comentando o mensalão, escreveu: “Mais que condenar réus tão emblemáticos, o STF mandou um recado ao país e aos poderosos (…) os criminosos de colarinho branco que se associarem para desvios e assaltos aos cofres públicos estarão juridicamente nivelados aos PPP (pobres, pretos e prostitutas) que, historicamente, habitam nossas cadeias”. No artigo, quatro são os “pês” reconhecidos: pobres, pretos, prostitutas e políticos. A esses temos que agregar dois mais: pardos e policiais. A prisão de Donadon fechou os seis pês. A rigor não é novidade a condenação (esporádica) de gente graúda ou famosa no Brasil: Roger Abdelmassih, Eliana Tranchesi, Suzane von Richthofen, Nicolau dos Santos, Edemar Ferreira, Guilherme de Pádua, Harah Jorje Farah, Cacciola, Pimenta Neves etc. O que não tinha ainda ocorrido, depois da redemocratização, era a prisão de um político. O tempo dirá se essas condenações dos poderosos são passageiras ou expressão de uma nova tendência criminal, que estou chamando no nosso Populismo penal midiático (Saraiva, 2013) de disruptiva. Ela veio para ficar ou não? Mais ricos irão para a cadeia, ou não? A bandeira do populismo penal disruptivo é a universalização (ou democratização) da persecução penal, ou seja, todos devem ser perseguidos criminalmente (não somente os marginalizados). Ator desse movimento é o legislador disruptivo que, fundado no princípio da igualdade, tende a aprovar leis com os mesmos rigores punitivos tradicionalmente reservados para as classes de baixo (underclass) (I Saborit: 2011, p. 85). Também essa modernização do direito penal, que retrata a expansão extensiva do direito penal, vem acompanhada de mais punitivismo. Caso ganhe força e sistematicidade o populismo penal disruptivo tem suficiente energia para universalizar para todos a incidência do poder punitivo estatal, gerando o encarceramento não só dos tradicionais 5 pês (pobres, pardos, pretos, prostitutas e polícias), senão também dos políticos (que arrastam com eles alguns comparsas orbitais como banqueiros, bicheiros, construtores etc.).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Direito de perguntar

Por que os defensores indicaram um policial e um perito, com fortes incriminações contra o réu, para serem ouvidos como testemunhas de defesa no plenário do júri? Não se trataria de um ato suicida? Dois motivos para entender isso: (a) são incontáveis os indícios contra Mizael, cuja situação processual, até aqui, é totalmente desfavorável, e (b) a sua radical tese defensiva, negativa de autoria, que significa ganhar ou perder tudo. A terra encontrada no sapato do acusado era compatível com a da represa de Nazaré Paulista, onde foram encontrados o carro e o corpo da vítima Mércia? O perito antes afirmou que sim e ontem disse não. Foi preservado o veículo achado para o efeito da perícia? O mesmo perito disse não. O rastreador revelou que o carro de Mizael ficou parado num hospital; o laudo, no entanto, diz que o ele estava em movimento (4 km/h). Quem examinou os registros das antenas dos celulares? Um policial experiente, mas sem formação acadêmica ou científica na área (disse a defesa). São essas, dentre outras, as contradições, imprecisões e omissões que servirão de base à defesa para plantar dúvidas nas cabeças dos jurados, que estão formulando muitos questionamentos para as testemunhas e os peritos. O leitor e o telespectador (o julgamento está sendo transmitido ao vivo) talvez agora entenda a razão das incontáveis e esgotantes perguntas que os defensores estão formulando. É só o que lhes resta, diante de tantos indícios incriminatórios contra Mizael, que no seu interrogatório tem a última chance de convencer os jurados de sua inocência.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – É muito mais fácil ser tirano que respeitar a democracia

Todos os protestos legítimos fazer parte da democracia, que vem (veja Wikipedia) de “demo+kratos“, ou seja, é o regime de governo em que o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos, que exercem sua opinião de forma direta (por plebicitos, referendos etc.) ou indireta (por meio de representantes eleitos, que é a forma mais usual). Os protestos ordeiros, sobretudo quando enervados por causas justas (protesto contra a injustiça estrutural do modelo capitalista aristocrata-escravagista, que sempre vigorou no Brasil), se enquadram na primeira forma (democracia direta). A democracia, no entanto, só é democracia quando lutamos por ela diariamente, de forma responsável. Tanto quanto os mandamentos rígidos das Religiões, as duras exigências da Ética e os contundentes preceitos da Moral, seguir os cânones da democracia (verdadeira) não é fácil, daí a resistência de muitos, bem como a inclinação de outros pelo autoritarismo bem como pelas ditaduras. É muito mais fácil ser um déspota (ilustrado ou não ilustrado) que ser um democrata. A propósito (para recordar), a democracia nos exige (veja Flores d’Arcais: 2013, p. 115, com acréscimos nossos): (a) ser intransigentes com as leis que violam a igualdade – ninguém pode ser mais igual que os outros -, criando privilégios aberrantes; (b) lutar pela justiça social, que permita uma igualdade inicial de oportunidades [educação de qualidade para todos, em pé de igualdade; depois, cada um deve valer pelo que tem de mérito]; (c) respeitar devotadamente a verdade dos fatos, fundada em informação confiável [não mentir para a população, ou seja, não falar nada pela metade, porque toda meia verdade significa também meia mentira – e muitos políticos e agentes midiáticos sabem bem disso]; (d) praticar obstinadamente o espírito crítico para alcançar um iluminismo de massas [nenhum país cresce ou evolui se composto de “rebanho bovino” – a expressão é de Nietzsche]; (e) preservar a laicidade do poder público [a secularização separou a Igreja do Estado, a religião da política, o crime do pecado]; (f) hostilizar abertamente todo tipo de privilégio que não conte com justificação indiscutivelmente convincente e (g) manter cotidianamente o ethos republicano [respeitando-se a ética e a moral correspondentes]. E aí, meu caro, vai encarar? Avante companheiros!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – É preciso colocar o dedo na ferida

O Brasil ganhou destaque mundial nos últimos dias com os seus protestos massivos e, nos últimos vinte anos, com suas políticas de redução da miséria, porém, não podemos perder de vista que o problema da desigualdade é muito mais profundo do que se pensa. É claro que não existe liberdade sem o pão, mas não é um prato de comida diária dado pelas “bolsas governamentais” (que já representam uma conquista, mas insuficiente) que confere dignidade ao ser humano. Não se pode ver uma árvore sem enxergar a floresta. A barbárie do modelo discriminador etnicista e sócio-econômico do Estado brasileiro carece de uma gestão técnica (progressista), mas deixa de ser barbárie. A ferida é mais dramática. Muitos trabalhadores e estudantes, sobretudo de etnias (grupos sociais) discriminadas, são claramente maltratados, segregados e humilhados. São camadas “médias” ou “inferiores” da sociedade que chegaram na exaustão (diante do modelo econômico e político vigentes). Nós não somos um país que respeita a igualdade civil ou social, daí a precariedade da liberdade e da dignidade, agradada pelo eclipse da fraternidade. O desafio gigante que se põe diante dos nossos olhos consiste precisamente em como desatar (local e mundialmente) o nó da segregação, da neoescravidão e da discriminação secular. Programas governamentais de redução da miséria são relevantes, mas nunca poderiam deixar de ser transitórios, porque não retratam nada mais que uma gestão técnica de uma barbárie. Tão relevante quanto entregar o “peixe” pronto é ensinar a pescar, ou seja, conferir a todos (indistintamente) iguais oportunidades de crescimento na vida, o que significa uma qualificadíssima educação, obrigatória até os 18 anos, em período integral. Para muito além das políticas assistencialistas, tal como postulava no século XVIII o Iluminismo e seus filósofos ou precursores (Kant, especialmente), é a emancipação definitiva (social e econômica) do ser humano que pode reconstruir a nossa história macabra de exploração e violência, ou seja, na escravidão e na guerra civil fraticida. A atualidade e premência dos movimentos sociais que eclodiram no mês de junho de 2013 são de incontestável reconhecimento, posto que não existe coesão social entre os vários grupos étnicos e/ou discriminados do nosso país. Tampouco está em curso qualquer tipo de programa que tenha por objetivo a pacificação da sociedade brasileira (como um todo), que continua segregacionista, hierarquizada, economicamente neoescravagista, politicamente patrimonialista e clientelista, socialmente em permanente e terrorífico conflito (que retrata verdadeiro estado de guerra civil). O Bolsa Família retirou da miséria milhões de brasileiros (segundo a FVG), as classes médias cresceram, a economia foi estabilizada (depois do plano real, de 1994), a inflação foi controlada (somente agora volta a nos assustar), Lula fechou seu governo com a menor taxa de desemprego (5,7%) e deixou o Brasil crescendo 7,5% ao ano. Os governos de FHC e Lula promoveram a inclusão social de muitas pessoas, mas a discriminação (e separação de classes) continua acirrada e candente. É nessa ferida que ninguém está colocando o dedo pra valer. Não existe diálogo entre as várias populações segregadas. Continuamos, apesar de todos os progressos (indiscutíveis), com a mesma política social e econômica suicida da época da fundamentação do Estado (1822). Violência infinita e a lógica da guerra civil O confronto entre os vários grupos éticos (superiores e inferiores) vai se agravando (cada vez mais) em todo momento. Incontáveis cartazes denunciaram isso em junho de 2013. Para contenção da insurreição o Estado continua com sua lógica de guerra civil, usando sua máquina martífera (policial) para isso. Essa é praticamente a única política de segurança pública no país (excepcionando-se o Pronasci – que está difícil de emplacar como deveria – e, em alguns aspectos, as UPPs). Na origem dos protestos massivos residem, também, a micro e a macrocriminalidade, que estão corroendo nossas relações sociais, minando as forças integradoras e unificadoras da sociedade. Aquela imagem história, de pessoas correndo com seus fuzis, quando a polícia (como máquina de guerra) invadiu o Complexo Alemão (em novembro de 2010), é o retrato da ineficiência da política pública brasileira na área de segurança, visto que dispersa os criminosos, desloca-os dos seus “habitats”, mas nada faz de concreto para a sua prevenção. Promover a migração do crime e dos criminosos (de um local para outro) não significa restabelecer a paz. Os germes da violência urbana, da criminalidade e da discriminação étnicas, do terrorismo e da corrupção policial, do desemprego, da miséria, da desigualdade social e econômica etc. estão presentes em todos os lugares. O vírus do crime violento (que é bem distinto do crime fraudulento, típico mas não exclusivo das camadas superiores) pode se instalar (e vem se instalando) facilmente em qualquer um dos territórios balcanizados (segregados) do país. O Brasil precisa urgentemente negociar uma trégua na sua guerra civil de origem étnica (e fraticida). A solução violenta dos conflitos só gera mais violência. Apesar de todos os avanços na economia, não se pode esquecer que o Brasil continua sendo o 18 país mais violento do mundo.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Guerra contra o Iraque: nem paz nem democracia

As décadas de 60/70 foram o berço da revolução ideológica ultraliberal, que viria a se consolidar mundialmente na década de 80 com Reagan e Thatcher. Essa revolução ultraliberal (uma das mais prósperas de toda história) espalhou pelo mundo, dentre outros, três direcionamentos: (a) o neoliberalismo globalizado no campo econômico (dogmas do mercado livre, do Estado mínimo etc.); (b) neointervencionismo no plano internacional e (c) o nerconservadorismo (na área política e, especialmente, no campo jurídico-penal). No plano internacional os EUA, desde a segunda metade do século XX, vêm disseminando, para o mundo todo, incontáveis guerras: guerras ideológicas em defesa do capitalismo de mercado (anos 60 e 70), guerra fria (até a queda do muro de Berlim em 1989), guerra contra as drogas, guerra contra o crime organizado, guerras “humanitárias” (contra o Iraque, Afeganistão, Líbia etc.), guerra contra o terrorismo (Guantánamo) etc. O sucesso dos EUA nas suas últimas guerras tem sido pífio. Esse é o caso da guerra contra o Iraque (onde jamais foram encontradas as armas químicas que legitimariam a intervenção). Mais de 4 mil pessoas foram massacradas, anualmente, no último decênio. Toda guerra se revela como uma máquina de triturar carne e ossos humanos. A pretexto de buscar a “paz mundial”, os EUA invadiram o Iraque (há 10 anos), prenderam Sadam Hussein e o condenaram à morte. Nada de democracia no país nem de paz. Mais um messianismo tosco (que em nome do bem vai exterminando vidas humanas). Não havia armas nucleares ou biológicas no Iraque nem ele praticava o terrorismo. A situação de anomia é generalizada. Derrubou-se um regime ditatorial, mas em seu lugar nada de sólido foi construído, a não ser uma guerra civil. Messianismo puro (e absolutamente impune). Depois de uma década e de mais de um bilhão de dólares gastos, um novo Iraque está longe de ser construído a partir dos atuais escombros, governados por um primeiro ministro tendencialmente ditatorial, que quer se perpetuar no poder, com voto contrário do Parlamento. Bush e Blair não tinham a menor ideia do que era o Iraque, suas forças, suas estruturas e suas tradições. Destituíram um tirano, mas criaram outros. Aliás, a própria destituição, dita “humanitária”, foi um ato de tirania, porque fundada na falsidade e na má-fé. O terrorismo mundial não foi extirpado, a democracia iraquiana não nasceu e a paz está muito longe de chegar. Bagdá não é uma capital aliada dos EUA e tampouco existe certeza sobre o fornecimento preferencial de petróleo. Mais um messianismo governado pelo abuso e pelo arbítrio, que sempre significa horripilantes violações aos direitos humanos de incontáveis vítimas inocentes. Assim os chamados civilizados iniciaram a construção do novo milênio.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Impunidade no trânsito: duro golpe na eficácia da lei

Mais um duro golpe na tese (na crença mágica) dos que acreditam na eficácia da lei penal no Brasil para a prevenção da violência. A matéria assinada por Léo Arcoverde (Agora de 27.02.13, p. A3), no que diz respeito à prevenção da violência no trânsito, é mortal: Detran suspende apenas 1 carteira de habilitação de cada 72 pessoas flagradas por embriaguez ao volante: “PM realizou 17.409 flagrantes da lei seca em 2012, mas o Detran suspendeu só 242 habilitações. Pela lei, todas as pessoas flagradas (por embriaguez ao volante) deveriam ter a carteira de habilitação suspensa. Problemas no funcionamento do Detran, não devidamente explicados por ele mesmo, reduzem drasticamente a eficácia da lei. Em 2011, a PM fez 6.598 flagrantes em blitze da lei seca na capital e Detran suspendeu 154 habilitações (ou uma para 43 casos). Assim, de um ano para o outro, os flagrantes cresceram 163.85% e as suspensões, 57,14%. Os números são uma estatística aproximada, já que o Detran não informa quantas suspensões, realizadas em cada ano, se referem a flagrantes realizados nos respectivos períodos”. Como prevenir mortes no trânsito? A Criminologia nos ensina (García-Pablos e Gomes: 2012a, p. 359 e ss.) que há duas maneiras de se enfrentar esse tema: (a) colocando em prática dezenas de medidas ligadas aos cinco eixos que governam o assunto (Educação, Engenharia – das estradas, das ruas e dos carros -, Fiscalização, Primeiros socorros e Punição); (b) confiando na eficácia da lei penal (edição de novas leis e sua efetiva aplicação). O primeiro modelo de prevenção é o integral e envolve uma eficiente coordenação entre medidas penais e extra-penais. O segundo, de cunho populista punitivo, deposita sua fé na prevenção puramente “penal” (leis mais duras, grande propaganda midiática das leis novas, leis simbólicas, penas mais severas etc.). A Europa segue o primeiro modelo rigorosamente e vem diminuindo em 5% ao ano as mortes no trânsito. O Brasil segue o segundo modelo e vem aumentando as mortes em 4% ao ano. No Brasil temos 661 mortes para cada um milhão de veículos. Europa, 113; EUA, 134; Japão, 64. Quem adota o modelo integral de prevenção (prevenção primária, secundária e terciária; no caso do trânsito: Educação, Engenharia, Fiscalização, Primeiros socorros e Punição) vem alcançando resultados mais efetivos. Quem se inclina pela linha populista punitiva (veja nosso livro Populismo penal midiático, Saraiva, 2013) só engana a população com medidas penais mais severas, mas não toca a raiz do problema. As novas leis penais, em razão da intensificação da fiscalização e da propaganda midiática, acabam tendo certo efeito preventivo nos seus primeiros meses de vigência. Depois, com o afrouxamento da fiscalização, as mortes voltam a aumentar. Isso está ocorrendo desde 1997 (ano do Código de Trânsito Brasileiro). Estamos fazendo sempre a mesma coisa errada, do mesmo jeito equivocado. Claro que esse engodo não muda a realidade trágica de mais de 43 mil mortes por ano!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Judiciário glosa restrições absurdas em editais de concursos

A PM-RJ excluiu um candidato (às suas fileiras) porque tinha tatuagem. O STF (no ARE 665.418, rel. Ayres Britto) entende que exigência desse tipo não encontra base legal. Sem lei, essas restrições discriminatórias não podem prosperar. O policial precisa ser bonito? Assim começa a matéria publicada no Valor Econômico de 26.03.13, p. E1, que enfoca o caso de um candidato à policial militar de MG que tinha acne. O TJ-MG (desembargadora Moreira Diniz) reconheceu seu direito de participar do certame (não é preciso ser bonito para ser policial). Há poucos dias a Polícia civil da BA expediu edital onde exigia “pente fino ginecológico” nas mulheres, ou prova da sua virgindade (prontamente o governo da BA revogou o absurdo). Há restrições razoáveis (conta com bom senso). Por exemplo: um candidato com “amputação das duas pernas” não poderia ser bombeiro. Isso resulta ser razoável. Mas para ser médico de emergência no serviço público (caso concreto de São José dos Campos), como bem divulgou o Valor Econômico de 26.03.13, p. E1, não há impedimento (como reconheceu o TJ-SP, desembargador Wanderley Federighi). Inquérito policial instaurado e logo em seguida arquivado não pode servir de base para a rejeição do candidato (caso decidido pelo TJ-PR) (Veja o Valor Econômico citado, que ainda cita o caso do candidato com problema dentário, que não pode ser impedido de ingressar na polícia militar TJ-SP). Inclusive o Poder Judiciário já reprovou candidatos por razões médicas (Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, hoje desembargador na Justiça do Trabalho), foi reprovado em São Paulo para a magistratura trabalhista por ser cego (Valor Econômico citado). O Estado de Direito tem por eixo os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da legalidade, do direito ao trabalho, do direito à vida e da razoabilidade. Todos os editais de concursos que fazem exigências ou restrições não contidas na lei e desarrazoadas devem ser censurados (glosados) pelo Poder Judiciário. A jurisprudência do STF (veja, v.g., ARE 665.418, rel. Ayres Britto) é no sentido de que apenas por meio de lei é possível impor restrição ao acesso a cargos públicos. Vêm preponderando as garantias da legalidade e da razoabilidade (ou seja: o Estado de Direito). A jurisprudência é fonte fundamental do direito. O controle de legalidade e de razoabilidade tem fundamento constitucional. Nenhum estado de direito se compatibiliza com o excesso, com aquilo que é desarrazoado. Sobretudo a Justiça tem que ser justa (equilibrada, sensata, razoável). O princípio da razoabilidade é um dos princípios mais refinados do Estado de Direito do século XXI. O juiz é o semáforo do sistema jurídico: para todo excesso ele tem que sinalizar o vermelho (do contrário, converte-se o Estado de Direito em Estado de Exceção, com chance de se chegar ao Estado de Polícia).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Juízes e preconceitos: os códigos ocultos dos juízes

Os juízes possuem códigos ocultos (conforme suas ideologias e idiossincrasias)? Poderiam eles ser preconceituosos? A Criminologia (Figueiredo Dias e Costa Andrade: O homem delinquente e a sociedade criminógena, p. 547 e ss.), desde logo, afirma que sim, que os julgadores contam com seus “second codes” (códigos ocultos ou paralelos ou particulares). Mas se isso é tão corriqueiro na Criminologia, se isso é algo tão óbvio e evidente (da natureza humana), não deveria ser motivo de desconforto, sim, de mais precaução (de mais cautela). Tudo devemos fazer para não cair na tentação das precipitações, das visões parciais, das injustiças, dos julgamentos sectários. Qual a razão do desconforto de se ler o óbvio? É que Criminologia, como ciência que segue o método empírico e interdisciplinar e que tem por objeto o estudo do crime, do criminoso, da vítima e do controle social (formal e informal), destacando-se (na sua linha crítica) a análise dos processos de criminalização (primária, secundária e terciária: do legislador, do juiz e da execução penal), é estudada em pouquíssimas faculdades de direito no Brasil. A formação do bacharel é eminentemente jurídica. Pior: preponderantemente legalista. Qual é a implicação prática da constatação de que os juízes possuem suas crenças, suas preferências, seus códigos ocultos (muitos inconscientes)? A seguinte: quando as normas aplicáveis ao caso concreto ou quando as provas do processo são divergentes, os chamados códigos particulares dos juízes, que nunca são ensinados nas faculdades de direito, são decisivos para o deslinde da causa. Neste momento crucial do processo de decisão, os preconceitos raciais, religiosos ou culturais podem desempenhar papel muito relevante. Pessoas estigmatizadas, estereotipadas, discriminadas social e economicamente, de um modo geral, são extremamente prejudicadas. O seu contrário, pessoas com status, bem apresentável, bem posicionada, bem formada etc., normalmente, levam grande vantagem. Estudo divulgado pela BBC de Londres no dia 22.03.2007 revela que os réus feios, por exemplo, têm mais chances de serem condenados criminalmente que os bonitos. Pessoas feias têm mais chances de serem condenadas por júris populares do que pessoas bonitas, de acordo com um estudo realizado pela Universidade de Bath, na Grã-Bretanha. Não é recente na Justiça criminal a discriminação contra os mais feios. Há muitos séculos o Imperador Valério sentenciou: “quando se tem dúvida entre dois presumidos culpados, condena-se o mais feio”. Conheci bem os códigos particulares dos juízes porque fui juiz durante 15 anos. No exercício da judicatura em incontáveis vezes me vi na iminência de sucumbir aos preconceitos, estereótipos, crenças, convicções sociais, pensamentos aristocratas, soberbia etc. Quando não exercitamos nossa humildade e prudência, os riscos dos preconceitos aumentam (e atormentam). Cautio (diria Spee).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Lei “Carolina Dickman” e sua (in)eficácia

Constitui crime, consoante a Lei 12.737/12 (art. 154-A), invadir dispositivo informático alheio (…) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo (…) ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Em debate promovido na FecomercioSP, no dia 01.03.13, sob a coordenação de Renato Opice Blum e Rony Vainzof, tive a oportunidade de externar meu pessimismo em relação à eficácia penal da lei acima referida. A crença de que a lei penal possa ter efeito preventivo está cada vez mais discutida. Ninguém concordaria com a ausência de tutela da nossa privacidade, intimidade; lei tem que existir para nos proteger. O problemático é esperar que isso seja feito pela lei penal. Eu, particularmente, confio mais em medidas civis (determinadas por juiz civil, como remoção de uma notícia ofensiva). Confio mais em indenizações. Quem conhece minimamente o funcionamento da justiça criminal no Brasil não pode se iludir: ela está, em geral, sucateada. Porque sucateada está a polícia civil (investigativa), que conta com incontáveis cadáveres nas suas portas, o que já é suficiente para sugar todos os seus recursos materiais e pessoais. Medidas civis urgentes são mais eficazes nessa área. De qualquer modo, houve intenção de se suprir uma lacuna no Brasil. O relator do projeto, deputado Paulo Teixeira, procurou fazer o melhor texto, mas todo conjunto de palavras permitem mil interpretações. Numa rápida olhada assinalei 104 conceitos dados pela lei, todos dependentes de interpretação. As penas são baixas (em regra, até dois anos), logo, a chance de prescrição é muito grande. Por todos esses motivos, não confio na eficácia preventiva dessa lei. A tutela civil teria condições de ser mais eficiente. Extimidade Na interpretação e aplicação dessa lei os operadores jurídicos devem atentar para o fenômeno da extimidade, que pode constituir uma forma de autorização tácita da quebra do sigilo das nossas intimidades (dos nossos segredos). “Teu segredo é teu prisioneiro. Uma vez libertado, volta contra ti e te aprisiona” (provérbio oriental). Extimidade é o contrário de intimidade. É lançar ao público, sobretudo por meio das redes sociais, algo que pertence à nossa privacidade. Como bem pondera Bauman (em La Repubblica, de 09.04.11, tradução de Moisés Sbardelotto), “os relacionamentos humanos deve ter mudado em notável medida e de modo particularmente drástico nestes últimos 30-40 anos… Ele se modificou a tal ponto que, como hipotetiza o psiquiatra e psicanalista Serge Tisseron, as relações consideradas como “significativas” passaram da “intimité” à “extimité”, isto é, da intimidade ao que ele chama de “extimidade”. (…)” “Analogamente a outras categorias de bens pessoais, de fato, o segredo é, por definição, aquela parte do conhecimento cujo compartilhamento com os outros é rejeitado ou proibido e/ou estritamente controlado. O segredo, por assim dizer, caracteriza e contradistingue os limites da privacidade, sendo esta última a esfera destinada a ser própria, o território da própria soberania indivisa, dentro do qual tem-se o poder total e indivisível de decidir “o que sou e quem sou” e partir da qual podem ser lançadas e relançadas as campanhas para fazer com que sejam reconhecidas e respeitadas as próprias decisões e mantê-las como tais” (Bauman). No mundo mais flexível e transitório das redes sociais, o que há de mais frequente é a exteriorização das intimidades. Nos tornamos, na era comunicacional, o oposto do que se admitia como padrão de conduta, antigamente. Nossos avós, certamente, eram muito mais recatados. “Em uma surpreendente inversão com relação aos hábitos dos nossos antepassados – continua Bauman -, porém, perdemos a coragem, a energia e principalmente a vontade de persistir na defesa desses direitos, daqueles insubstituíveis elementos constitutivos da autonomia individual. Aquilo que nos assusta hoje não é tanto a possibilidade da traição ou da violação da privacidade, mas sim o seu oposto, isto é, a perspectiva de que todas as vias de saída possam ser bloqueadas”. O que está mudando? Nós já não queremos apenas “ser”, não queremos somente “ser”: depois das redes sociais e particularmente do facebook, muito querem “ser aparecidos” (expostos ao público). Quem não aparece não existe. O tormentoso, assim, já não é a divulgação (para muitos) dos seus segredos, sim, a não divulgação deles. Uma coisa é usar as redes sociais para instruir, para educar, para transmitir ideias, para debater temas polêmicos, para desenvolver grandes manifestações em defesa da “polis”, outra bem distinta é usá-la para lançar ao público algo da nossa intimidade, da nossa privacidade, algo que deveria ficar restrito a cada um de nós. Consoante Bauman (em La Repubblica, de 09.04.11, tradução de Moisés Sbardelotto), “O advento da sociedade-confessionário marcou o triunfo definitivo daquela invenção esquisitamente moderna que é a privacidade – mas também marcou o início das suas vertiginosas quedas do apogeu da sua glória. Triunfo que se revelou ser uma vitória de Pirro, naturalmente, visto que a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e mais ciumentamente defendido”. Pelo que parece (conclui Bauman), não sentimos mais alegria ao ter segredos, a menos que se trate daquele gênero de segredos capaz de exaltar o nosso ego, atraindo a atenção dos pesquisadores e dos autores dos talk-shows televisivos, das primeiras páginas dos tabloides e das capas das revistas de papel envernizado. (…)”. Em suma, quem revela suas intimidades (segredos) para o público, naturalmente está abrindo mão, nessa parte, da sua tutela jurídica. Esse é um campo de ausência de tutela penal, por deliberação do próprio interessado.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Máquinas de triturar braços e vidas

Quase oitenta milhões de carros e motocicletas disputam os espaços públicos entre eles assim como entre eles e os pedestres e ciclistas. Quando mostramos para os estrangeiros o número de pessoas mortas no trânsito brasileiro – mais de um milhão de 1980 a 2013, 127 por dia, um óbito a cada 12 minutos – eles perguntam: faltam leis? Respondemos que não. Leis nós temos, razoavelmente boas tanto quanto as da Suíça. O problema é que aqui não temos os suíços para cumprirem tais normas de trânsito. Transformamos os veículos em máquinas de triturar braços (como no caso de David Santos Souza, cujo membro foi decepado por um motorista na Avenida Paulista, em São Paulo) e vidas. Continuamos engrossando nossas pilhas imensas de cadáveres antecipados. Por que tantos massacres? Boa parte deles faz parte da nossa guerra civil étnica e social, fundada na profunda ruptura social entre o Estado e os segmentos favelizados, ocupados por gente segregada, apartada (os inimigos). Aqui falamos da violência pública, violência levada a cabo pela maquinaria de guerra do Estado, formada pelo sistema policial-jurídico. Outra parte é fruto da guerra civil no trânsito: o carro foi transformado em arma de guerra (tão potente quanto uma arma de fogo) e o outro (as outras pessoas) em inimigo. Na guerra, o objetivo é sempre destruir (triturar) o inimigo (ou pedaços do seu corpo). É isso que estamos fazendo, com razoável eficiência: 127 pessoas mortas diariamente no trânsito e cerca de 140 intencionalmente. Nossas máquinas de triturar vidas contam com uma produção tanatológica diária de uns 270 óbitos. O Estado Democrático de Direito (anunciado pela Constituição), a moral humanitária e o progresso coletivo (sobretudo o econômico) não passam de indicadores civilizatórios totalmente inócuos e artificiais em sociedades como a brasileira, marcada (em grande parte) pela brutalidade selvagem assim como pela absoluta ausência de formação ética (entendida como a arte de viver bem humanamente – como diz Savater). O desprezo pela vida humana (muitas vezes a própria e, com frequência, a dos outros) só encontra paralelo no descuido com a coisa pública. Nossas políticas públicas, em geral (de saúde, de educação, de segurança viária etc.), não passam de necro-políticas, fundadas nas racionalidades aberrantes da tanatologia. A sociedade brasileira e o funcionamento da nossa egoísta convivência (ressalvadas as exceções) não retratam uma nação integrada, caracterizada pela ética e pelo respeito ao outro. Aqui atropelamos as pessoas e jogamos seus braços nos córregos como dejetos repugnantes. Ausência absoluta não só de respeito às regras jurídicas, senão, sobretudo, de ética. A selvageria chega ao ponto de se ignorar que um braço pode ser reimplantado. O nível de ensino (e dos exemplos públicos) que damos para a grande maioria da população é deplorável. Nosso ensino público é uma falsidade incontestável. O Estado não é instrumento da aplicação igualitária da lei, muito menos o bem-feitor social que privilegia todos os segmentos. Vivemos de mentiras, assentadas sobre uma única verdade: a dos milhões de cadáveres antecipados, porque desde o início da nossa colonização não aprendemos a respeitar a vida humana (ao contrário, somos máquinas treinadas para triturá-las, intencional ou acidentalmente, nas ruas, nas casas, nas boates etc.).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Menor corinthiano seria bode expiatório?

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no blogdolfg.com.br Mais uma morte antecipada no nosso continente: Kevin é seu nome. Num estádio de futebol na Bolívia, ele foi atingido por um sinalizador (foguete) mortal, que teria sido disparado por integrante (ou integrantes) da torcida corinthiana. Nietzsche admitia que a civilização é o único caminho para a domesticação do animal humano. O problema é que a civilização é muito demorada. Enquanto não somos domesticados, sobra espaço para nossa animalidade, excentricidade e vulgaridade. Naturalmente não deveríamos ir a estádios de futebol e casas de diversão com fogos de artifício e similares. Que falta nos faz a autolimitação contínua. Dando vazão ilimitada e incondicionada ao nosso Eros (amor, diversão), à nossa vulgaridade e excentricidade, nos perdemos no nosso Ethos (ética). Pior ainda se o menor que assumiu a responsabilidade estiver sendo usado como “bode expiatório”, ou seja, o eleito para expiar (purgar) a culpa de terceiros. Ele teria sido apresentado como “culpado” pelo fato. Desde que os espanhóis e portugueses, no final do século XV e começo do século XVI, trouxeram para os países colonizados (conquistados) sua cultura decadente marcada pela violência, cobiça e fé, estamos computando diariamente mortes antecipadas que poderiam ser evitadas. Tragédia após tragédia. Massacre após massacre. Que não são obras de Deus nem frutos de uma fatalidade. É praticamente tudo evitável! O ECA não prevê a hipótese de o menor ser responsabilizado no Brasil por atos cometidos fora do nosso país. Mas é claro que temos que combinar o art. 103 do ECA (são atos infracionais os crimes e as contravenções) com o art. 7 do CP para admitir a extraterritorialidade da lei penal brasileira, quando um brasileiro (menor) comete um “crime” fora do nosso território. A raciocinar de maneira diferente, a impunidade estaria garantida. O menor responde pelo “crime” (cometido fora) aqui no Brasil, de acordo com as leis brasileiras, aplicadas por autoridades brasileiras. É certo, de qualquer modo, que o menor não pode ser extraditado, seja por força da nossa Constituição, seja por força dos tratados internacionais (veja Ramidoff, no atualidadesdodireito.com.br). Tanto as autoridades bolivianas quanto as brasileiras deveriam se empenhar fortemente para apurar a verdade dos fatos.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Min. Celso de Mello diz que JB (o herói nacional) está errado

Em artigo que publiquei na Folha de S. Paulo (13.10.12), secundado recentemente por Valério Mazzuoli, afirmei que, do ponto de vista do Estado de Direito vigente, os réus do mensalão poderiam, sim, apresentar reclamações junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que pode levar o caso para a Corte respectiva (em San Jose da Costa Rica), sobretudo tendo em vista o precedente Barreto Leiva, onde este último tribunal garante o duplo grau de jurisdição, ou seja, no campo criminal, todo réu tem direito a dois julgamentos, mesmo que o primeiro tenha emanado da Corte Máxima do País (como é o caso do mensalão). A reação do ministro JB (veja o portal G1), a essa tese, foi a mais contundente e populista imaginável (do jeito que o povão não letrado juridicamente entende): “Barbosa diz que falar em recurso no exterior ´é enganar o público´. Para relator, corte internacional não reverte resultado do julgamento. Advogados falaram em questionar decisão do Supremo Tribunal Federal.O relator do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, afirmou que os advogados dos réus tentam “enganar o público leigo” quando dizem que questionarão o resultado do julgamento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). “É enganar o público leigo e ganhar dinheiro às custas de quem não tem informação. Que leiam a Constituição brasileira, que leiam as leis que regem os tribunais”, afirmou o relator do mensalão após sessão desta terça, na qual José Dirceu foi condenado por corrupção ativa (oferecer vantagem indevida). Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello já havia afirmado não ver chances de reverter as condenações e chamou a possibilidade do recurso de “direito de espernear”. Sediado na cidade de San José, capital da Costa Rica, a corte interamericana é voltada para processos em que tenham ocorrido violações de direitos humanos. Para o ministro Joaquim Barbosa, dizer que a decisão do Supremo pode ser revertida é um “cinismo”. “Pergunte se em algum lugar do Brasil nos últimos 30 anos, 40, 50, 60 anos, tenha sido procedido de maneira diferente. Porque é muito cinismo dizer isso, uma pessoa que já foi juiz ou procurador, vir a público enganar as pessoas com argumentos desse tipo”, afirmou Barbosa.” Em seu voto no processo do mensalão o Min. Celso de Mello, contrariando frontalmente a verborragia do ministro JB, afirmou (veja Conjur): “O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Mostra-se claro inexistirqualquer nexo de prejudicialidade externa entre esta causa penal e qualquer procedimento instaurado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É que não se pode determinar a suspensão prejudicialdeste processo penal em razão de alegadamente existir provocação formal dirigida, nos termos do art. 44 do Pacto de São José da Costa Rica, à Comissão (não à Corte) Interamericana de Direito Humanos. Assinale-se,a título de mero registro, que, no contexto do Sistema Interamericano de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos, a pessoa física ainda não dispõe de legitimidade ativa para fazer instaurar, desde logo, ela própria, processo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, eis que essa qualidade para agir junto a referido organismo judiciário restringe-se,unicamente, aos Estados-partes e à Comissão Interamericana (Pacto de São José, Artigo 61, n 1), uma vez atendidos os requisitos de procedibilidade fixados no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 da Convenção Americana (Artigo 61, n 2). De qualquer maneira, no entanto, não há como inferir, das cláusulas que compõem o Pacto de São José da Costa Rica, a existência de relação de prejudicialidade externa que imponha a suspensão deste processo penal pelo só fato de haver postulação deduzida perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – E seria absurda, não é, Ministro? O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Nada impedirá, contudo, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, D.C., esgotada a jurisdição doméstica (ou interna) atendidasas demais condições estipuladas no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 do Pacto de São José, submeta o caso à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em ordem a permitir que esta exerçao controle de convencionalidade. Não há, porém, possibilidade de se determinar, neste momento, a suspensão prejudicial da presente causa penal. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – Sobrestamento do processo. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR) – Ministro Celso, apenas uma nota brevíssima de Direito Comparado: essa possibilidade existe no sistema de Direito comunitário europeu. Há um instituto chamado reenvio prejudicial, ou renvoi préjudiciel: quando um juiz local tem uma dúvida, ou alguém, uma das partes suscita um incidente acerca do Direito comunitário, sobresta-se o processo e faz-se uma consulta à Corte europeia, sediada em Luxemburgo. Mas, claro que o sistema interamericano não agasalhou essa hipótese. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Há, presentemente, no contexto do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, celebrado em 1966 (e a que o Brasil somente aderiu em 1992), um mecanismo viabilizador do acesso direto e imediato da própria pessoa física interessada à jurisdição tutelar do Comitê de Direitos Humanos, incumbido de atuar como órgão de implementação dos direitos e garantias fundamentais em escala global, pois aquele Pacto Internacional, por haver sido promulgado no âmbito das Nações Unidas, reveste-se de projeção universal. Essa significativa ampliação da legitimidade ativa em favor dequalquer pessoa interessada decorreu do Protocolo Adicional Facultativoao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Não é, porém, o que se registra no âmbito do Pacto de São José da Costa Rica, segundo o qual a pessoa interessada (ainda) não dispõe delocus standi” para, ela própria, fazer instaurar, de imediato, a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Mas essa é uma hipótese de aplicação do próprio Direito europeu. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR) – Sim, não tem nada a ver com nossa sistemática. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Tem razão o eminente Revisor. SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Não há como. E mais, Ministro Celso: Justiça que se preza não se submete, ela própria, a órgãos externos de natureza política. E a Comissão o é. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: A questão central, neste tema, Senhor Relator, considerada a limitação da soberania dos Estados (com evidente afastamento das concepções de JEAN BODIN), notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão do Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteçãoregional e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter fidelidade aos compromissos que o Estado brasileiro assumiu na ordem internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma – reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País (Decreto n 7.030/2009) -, segundo o qual “pacta sunt servanda“, vale dizer, “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé“, sendo-lhe inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa mesma Convenção de Viena, as disposições do direito interno do Estado nacional, que não poderá justificar, com base em tais regras domésticas, o inadimplemento de suas obrigações convencionais, sob pena de cometer grave ilícito internacional. Não custa relembrar que o Brasil, apoiando-se em soberana deliberação, submeteu-se à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que significa, considerado o formal reconhecimento, por parte de nosso País, da competência da Corte (Decreto n 4.463/2002), que o Estado brasileiro comprometeu-se, por efeito de sua própria vontade político-jurídica, “a cumprir a decisão da Corte em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68). “Pacta sunt servanda“… O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Da Corte, mas não da Comissão. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O Brasil, no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Decreto n 4.463, de 08/11/2002), reconheceu como obrigatórias a jurisdição e a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção” (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 62), o que legitima o exercício, por esse importante organismo judiciário de âmbito regional, do controle deconvencionalidade, vale dizer, da adequação e observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana de Direitos Humanos. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – De resto, vamos fazer uma observação. Raramente teve-se um processo com tal cuidado de observância do devido processo legal; quer dizer, o recurso à Corte Interamericana – vamos reconhecer – é um recurso de retórica processual. O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Pois é. Eu tive o cuidado de trazer tudo, quase tudo a este Plenário, exatamente para evitar esse tipo de mumbo jambo, não é? O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – Em rigor, essas matérias estão preclusas desde o início. O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Estão totalmente preclusas.” Juristas (como o JB) formados sob o império do tradicional modelo do Estado de Direito liberal (onde se impõe o legalismo), que é herança do século XIX, sobretudo depois da Revolução francesa, têm muita dificuldade de entender o funcionamento do pós-moderno Estado de Direito democrático internacional e universal (veja nossos livros Direito Supraconstitucional, Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos etc.). JB chegou a afirmar que só “leigos” admitem recurso para o Sistema Interamericano. Só “leigos” e “cínicos”. O Min. Celso de Mello, que de leigo não tem nada, categoricamente confrontou o entendimento (juridicamente) estapafúrdio de JB que, animado pela popularidade das suas declarações, vem “habilmente” iludindo o povo (juridicamente) desletrado com seus arroubos verborrágicos do tipo “vá chafurdar no lixo”, “estão enganando os leigos”, “são cínicos os que admitem recursos para po Sistema Interamericano”, “é só ler a Constituição e as leis” etc. A considerar o incensurável e brilhante voto do Ministro Celso de Mello, realmente está faltando leitura da Constituição e das leis brasileiras, assim como dos tratados internacionais firmados pelo Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Necrim: polícia conciliadora de primeiro mundo

Se alguém quiser conhecer uma polícia conciliadora de primeiro mundo já não é preciso ir ao Canadá, Finlândia, Noruega, Dinamarca ou Suécia. Basta ir a Bauru, Lins, Marília, Tupã, Assis, Jaú e Ourinhos (todas no Estado de São Paulo). Necrim significa Núcleos Especiais Criminais. Pertencem à polícia civil do Estado de São Paulo. Paralelamente à função judiciária, foram instalados vários Necrims nas cidades mencionadas. É uma revolução no campo da resolução dos conflitos penais relacionados com os juizados especiais criminais. Por meio da conciliação estão sendo resolvidos muitos conflitos. Que essa iniciativa pioneira e alvissareira (para além de humanista e sensata) se espalhe por todo país, o mais pronto possível, até se chegar a uma nova carreira (ou uma fase inicial da carreira) dentro da polícia civil: delegado de polícia conciliador. O ser humano jamais entenderá seu semelhante enquanto não se debruçar sobre seus problemas. “Se você não é parte da solução [dos problemas humanos], então é parte do problema” (Eldridge Cleaver, americano, ativista). Vejo os Necrims paulistas como empreendimentos paralelos aos juizados especiais criminais de Mato Grosso do Sul, no princípio da década de 90, regidos por legislação estadual. Na época eu disse que para conhecer uma Justiça avançada já não era preciso cruzar o Atlântico, bastava transpor o rio Paraná. Sobre a eficácia conciliadora dos Necrims acaba de ser apresentada uma monografia de pós-graduação lato sensu, por Luís Henrique Fernandes Casarini, sob orientação de Edson Cardia, no Centro de Estudos Superiores da Polícia Civil “Prof. Maurício Henrique Guimarães Pereira”, da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, em São Paulo. Os números exitosos das conciliações são muito promissores. A conciliação, com a presença de advogado, é uma forma alternativa e civilizada de resolução de conflitos. São iniciativas como essas que marcam a inventividade e criatividade do brasileiro para o bem. Nem todos os delegados contam com pendor para essa atividade. Daí a necessidade de escolher as pessoas certas para o desempenho da nobre função de conciliar. Quem não tem a mente aberta para isso não deve assumir tal papel. No início da carreira, todo delegado de polícia deveria passar um período nesse setor. A primeira experiência do Necrim ocorreu na cidade de Ribeirão Corrente, na região de Ribeirão Preto, por iniciativa do Delegado de Polícia Dr. Cloves Rodrigues da Costa, em meados do ano de 2003. Ganhou força a partir de 2009/2010, sobretudo na região de Bauru (SP). As polícias civis de todo país deveriam se inspirar nesse trabalho pioneiro para inovar, para se reinventar. Prevenir maiores conflitos é tão relevante quanto reprimir os crimes, porém, a vantagem é que a prevenção vem antes da lesão ao bem jurídico. Sou favorável aos Necrims e pretendo lutar para que eles se espalhem para todo país. Se você tem interesse nesse assunto, leia mais sobre ele no meu blog (blogdolfg.com.br). “O futuro não é o que tememos. É o que ousamos” (Carlos Lacerda, brasileiro, político). Avante!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Noruega como modelo de reabilitação de criminosos

O Brasil é responsável por uma das mais altas taxas de reincidência criminal em todo o mundo. No país a taxa média de reincidência (amplamente admitida mas nunca comprovada empiricamente) é de mais ou menos 70%, ou seja, 7 em cada 10 criminosos voltam a cometer algum tipo de crime após saírem da cadeia. Alguns perguntariam “Por quê?”. E eu pergunto: “Por que não”? O que esperar de um sistema que propõe reabilitar e reinserir aqueles que cometerem algum tipo de crime, mas nada oferece para que essa situação realmente aconteça. Presídios em estado de depredação total (veja teoria das janelas partidas), pouquíssimos programas educacionais e laborais para os detentos, praticamente nenhum incentivo cultural, e, ainda, uma sinistra cultura (mas que divertem muitas pessoas) de que bandido bom é bandido morto (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche). Situação contrária é encontrada na Noruega. Considerada pela ONU, em 2012, o melhor país para se viver (1 no ranking do IDH) e de acordo com levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, o 8 país com a menor taxa de homicídios no mundo, lá o sistema carcerário chega a reabilitar 80% dos criminosos, ou seja, apenas 2 em cada 10 presos voltam a cometer crimes; é uma das menores taxas de reincidência do mundo. Em uma prisão em Bastoy, chamada de ilha paradisíaca, essa reincidência é de cerca de 16% entre os homicidas, estupradores e traficantes que por ali passaram. Os EUA chegam a registrar 60% de reincidência e o Reino Unido, 50%. A média europeia é 50%. A Noruega associa as baixas taxas de reincidência ao fato de ter seu sistema penal pautado na reabilitação e não na punição por vingança ou retaliação do criminoso. A reabilitação, nesse caso, não é uma opção, ela é obrigatória. Dessa forma, qualquer criminoso poderá ser condenado à pena máxima prevista pela legislação do país (21 anos), e, se o indivíduo não comprovar estar totalmente reabilitado para o convívio social, a pena será prorrogada, em mais 5 anos, até que sua reintegração seja comprovada. No presídio, um prédio, em meio a uma floresta, decorado com grafites e quadros nos corredores, e na qual as celas não possuem grades, mas sim uma boa cama, banheiro com vaso sanitário, chuveiro, toalhas brancas e porta, televisão de tela plana, mesa, cadeira e armário, quadro para afixar papéis e fotos, além de geladeiras. Encontra-se lá uma ampla biblioteca, ginásio de esportes, campo de futebol, chalés para os presos receberem os familiares, estúdio de gravação de música e oficinas de trabalho. Nessas oficinas são oferecidos cursos de formação profissional, cursos educacionais e o trabalhador recebe uma pequena remuneração. Para controlar o ócio, oferecer muitas atividades educacionais, de trabalho e lazer são as estratégias. A prisão é construída em blocos de oito celas cada (alguns deles, como estupradores e pedófilos ficam em blocos separados). Cada bloco contém uma cozinha, comida fornecida pela prisão e preparada pelos próprios presos. Cada bloco tem sua cozinha. A comida é fornecida pela prisão, mas é preparada pelos próprios detentos, que podem comprar alimentos no mercado interno para abastecer seus refrigeradores. Todos os responsáveis pelo cuidado dos detentos devem passar por no mínimo dois anos de preparação para o cargo, em um curso superior, tendo como obrigação fundamental mostrar respeito a todos que ali estão. Partem do pressuposto que ao mostrarem respeito, os outros também aprenderão a respeitar. A diferença entre o sistema de execução penal norueguês em relação ao sistema da maioria dos países, como o brasileiro, americano, inglês é que ele é fundamentado na ideia que a prisão é a privação da liberdade, e pautado na reabilitação e não no tratamento cruel e na vingança. O detento, nesse modelo, é obrigado a mostrar progressos educacionais, laborais e comportamentais, e, dessa forma, provar que pode ter o direito de exercer sua liberdade novamente junto a sociedade. A diferença entre os dois países (Noruega e Brasil) é a seguinte: enquanto lá os presos saem e praticamente não cometem crimes, respeitando a população, aqui os presos saem roubando e matando pessoas. Mas essas são consequências aparentemente colaterais, porque a população manifesta muito mais prazer no massacre contra o preso produzido dentro dos presídios (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche). ** Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Nossa guerra civil tem números sonegados

A notícia (14.03.13): CNJ estuda medidas contra TJ/PE por sonegar informações “A Enasp – Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, com representantes no CNJ, estuda recomendar à Corregedoria Nacional de Justiça que investigue o TJ/PE por não ter informado o número de processos por homicídio doloso, distribuídos no fim de 2007, mas que ainda não foram julgados… Eram metas do Enasp que os tribunais estaduais superassem até o fim de 2012 a fase de pronúncia em todas as ações penais por crime de homicídio ajuizadas até 31/12/2008. A outra exigência era o julgamento de todas as ações penais relativas a homicídios dolosos distribuídas até 31/12/07″. Nota oficial do TJ-PE: “O Tribunal de Justiça de Pernambuco afirma não ter sonegado informações ao CNJ… Nossos comentários: quando nem sequer sabemos o tamanho de um problema, claro que nunca resolveremos esse problema. Continuamos, no Brasil, com sérias dificuldades para quantificar o número de pessoas que são trituradas diariamente (intencional ou acidentalmente). Os números são conquistados com muita dificuldade, quando o são. Eles são protelados, dificultados, escamoteados, camuflados, adulterados ou, simplesmente, sonegados. A capacidade da nossa máquina (estatal e privada) de triturar carne, ossos e sangue humanos não é eficiente apenas no momento do extermínio, senão também no da negação dele. O escopo não é só o de exterminar, senão, sobretudo, de ocultar. Por que funciona assim? Zaffaroni (2012, p. 311/312) sugere a seguinte metáfora biologista: “Essas mortes, e muitas outras que deixam cadáveres mudos, são produto da necessidade de purificar, de limpar, de eliminar os germes patogênicos do corpo social, a escória social. A criminologia midiática assume o discurso dos leucócitos sociais. A metáfora biologista costuma ser expressa na comunicação social, apesar de, ultimamente, não ser de bom tom, mas desde o positivismo e mesmo antes, a linguagem da higiene social é bem expressa. A metáfora escatológica é bem clara: eles são para a criminologia midiática as fezes do corpo social. Continuando o raciocínio, que aqui costuma ser interrompido, resultaria que este produto normal de descarte deve ser canalizado através de umacloaca, que seria o sistema penal. Nenhum operador do sistema penal deveria esquivar-se dessa reflexão: para essa criminologia, nossa função seria a de limpadores de fezes e o código penal um regulamento para escoar os esgotos das cloacas. Policiais, juízes, magistrados, fiscais, catedráticos, juristas, criminólogos, poderíamos todos despojar-nos dos uniformes e togas e imaginar a vestimenta com a qual esta criminologia que nos amedronta pretende nos vestir”. A razão última dessa escatologia biologista é o estado de guerra permanente que vivemos, implantada desde a origem (1500) e mantida por um regime econômico injusto e brutalmente egoísta bem como por um sistema político corrupto e imoral, que fabricou favelas pelos quatro cantos, que demarcou as periferias assim como seu desigual estilo de vida, que fez as masmorras e desenvolveu a maquinaria de explorar e/ou triturar seres humanos, que industrializou o descarte étnico e social, ou seja, a escória, os “germes patogênicos”, as “fezes do corpo social”, que não são mais do que braços e pernas (sem nenhum valor de mercado). O que nos falta? De plano, uma postura ética, compreendida como “a arte de viver bem humanamente” (Savater). Grande parcela da nossa população não enxerga o outro como um ser humano frágil e vulnerável, sim, como “fezes do corpo social”. Basta ver o nível de educação que nós lhes damos para se comprovar a premissa de que a escória deve sempre ser tratada como tal, ou seja, como puros “braços e pernas” (e nada mais que isso). O Brasil, visto em sua globalidade, não é um país feito para a “arte de viver bem humanamente”. Aliás, jamais viveremos civilizadamente enquanto nossas condições estruturais não mudarem. Esse é o preço que temos que pagar pelo país que muitos de nós (falo da elite, sobretudo) estamos ajudando a edificar. Quem constrói cloacas humanas, não pode nunca ter certeza de que possa desfrutar, com tranquilidade, dos perfumes dos coloridos jardins.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – O “Titanic” seria a melhor metáfora do Brasil?

Se o “Titanic”, que foi para o fundo mar há 100 anos, é a maior metáfora do mundo (como disse Veríssimo), é algo possível. Que é a melhor metáfora para o Brasil parece não haver dúvida nenhuma. Mas há uma diferença entre ele e o Brasil: o “Titanic” afundou e já se acabou; o Brasil, com a aparência enganosa de potência mundial (7ª economia do mundo), vem se expandindo economicamente, mas, ao mesmo tempo, se exaurindo diariamente com as suas contradições e mazelas, com a roubalheira e a corrupção, sobretudo política e empresarial, destacando-se o seu pecado original praticado pela exploração escravagista, com todas as nefastas consequências daí decorrentes, tais como as desigualdades sociais, econômicas e culturais, as discriminações, o autoritarismo, a marginalização de grandes parcelas da população, a violência estrutural, individual e institucional, a corrupção, o nepotismo, o clientelismo etc. O “Titanic” serve de paradigma para a sociedade brasileira porque nada simboliza com mais fidedignidade a divisão de classes que um navio, que abriga gente do porão aos “decks” superiores elitizados. No porão do nosso navio se encontram os trabalhadores mal assalariados e sem perspectiva futura, os estudantes com péssima qualidade de ensino, os professores mal remunerados, os policiais espoliados, os excluídos, os marginalizados, os descartáveis ou elimináveis. Sempre estiveram no porão, é verdade, mas finalmente perceberam que possuem a posse do “casco do navio” e isso pode ter consequências incalculáveis para os que estão nos decks de cima. No Brasil ainda não tínhamos percebido (por isso que muito sofremos com o medo e a insegurança, com o terror das televisões, com os toques de recolher, com os assassinatos fúteis etc.) que são os habitantes dos porões dos navios (negreiros) que detêm o domínio dos seus cascos social e planetário. Na verdade, com a globalização, o navio terráqueo se tornou único para todos. Sempre que os habitantes dos porões “furam” o casco do navio (com protestos ordeiros e justos, contra as injustiças dos sistemas capitalistas neoliberal ou aristocrata-escravagista), naturalmente o risco de naufrágio atinge todos, incluindo os ricos, os brancos, a elite, pouco importando a posição de cada um dentro do navio. De nada adianta, de agora em diante, a construção das indecentes muralhas divisórias dos territórios demarcadores do apartheid. Viver em bairros ricos, mas cercados por todos os lados de miseráveis e marginalizados, de trabalhadores descontentes e explorados, tem a mesma sensação daqueles que desfrutavam da primeira classe do “Titanic” no momento do seu naufrágio. Os que foram jogados para os porões do navio planetário, pelos detentores dos poderes econômico, financeiro e político, estão agora “furando” diariamente o casco do navio social (mediante protestos civilizados), porque não vislumbram alternativas de progresso na vida. A cada “furo no casco” mais arrepiada fica a elite aristocrata-escravagista, que reage por meio da polícia, sempre com mais violência. E violência, como sabemos, só gera violência. Um amigo me contou que, há pouco tempo, falando telepaticamente com um chefe indígena da tribo Tupi, um historiador dos genocídios portugueses, este lhe teria dito o seguinte: “Enquanto os que comandam o Brasil não admitirem eticamente que todos somos seres humanos, que jamais podemos ser tratados ou reduzidos a coisas, a animaisou insetos; enquanto não pedirem desculpas e se reconciliarem com os discriminados e excluídos, com os estudantes carentes e trabalhadores espoliados, nós não desenterraremos da terrae brasilis a maldição que rogamos em 1.500 contra esses exploradores escravagistas, que vivem num dos mais belos paraísos naturais do mundo, mas sem nenhuma tranquilidade nem segurança, ou seja, sem civilização”. O pecado original do escravagismo e da exploração continua sangrando nosso País e seus habitantes indefesos, que somente agora estão percebendo a diferença entre a barbárie e a civilização.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – O inquisidor Bento XVI humilhou muito as mulheres

A liberdade de escolha (de eleição) e a vulnerabilidade da nossa condição humana (somos todos mortais, ou seja, a finitude é da essência humana) são as duas bases da ética, entendida como a “arte de viver bem humanamente” (Savater). Não temos como não ser os responsáveis pela eleição, dentro de certas circunstâncias, de cada ato consciente da nossa vida. Não temos como superar a finitude da nossa existência (somos mortais e extremamente frágeis). Logo, temos que fazer tudo, sendo ou não religioso, sendo ou não teólogo, sendo ou não papa, para melhorar a convivência humana, respeitando todas as pessoas – inclusive e, sobretudo, as mulheres. A vida ética, bem sublinhou a ministra Cármen Lúcia, significa dirigir na mão correta todo o percurso. Eis a sua metáfora: “Sabe o que eu acho?”, disse a ministra do STF. “(Eu acho) que a vida é igual a uma estrada. Não adianta você dizer que foi na reta certinho mil quilômetros e depois você entra na contramão e pega alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira. Independente do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a estrada. Se você estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser mais fácil. Isso no serviço público [ou religioso ou empresarial], muito mais.” Nós somos tudo o que fazemos na nossa vida. Há coisas boas e coisas ruins. O mundo inteiro, desde que o papa anunciou sua renúncia, reverencialmente procurou enaltecer suas coisas boas. Mas como não somos perfeição acabada (a começar pela nossa constituição física, extremamente frágil), não há como mostrar para os jovens do mundo inteiro o que o papa também fez de equivocado (do ponto de vista ético). Temos que ter todo respeito pelas suas obras positivas para a convivência humana. Isso, no entanto, não significa esquecer os seus pecados (sobretudo, os cometidos contra as mulheres). Para homenagear a cruenta luta internacional das mulheres, massacradas coletivamente pelos homens (somente no Brasil, uma morte a cada duas horas), mas desde a Idade Média, sob o império do discurso satânico das bruxas, pelos homens das Igrejas, segue, para reflexão, a tradução do texto de Juan José Tamayo, um dos teólogos mais lúcidos de toda a Europa, na atualidade, publicado no El País de 01.03.13: Amnésia coletiva (Clique e leia) Bento XVI foi eleito papa em abril de 2005, com 78 anos. Sua eleição não foi enfocada como algo atípico, quando, na verdade, era ou teria sido em qualquer instituição viva e ativa. O anúncio da sua renúncia, a ponto de cumprir 86 anos, provocou, para além de uma surpresa generalizada, uma avalanche efervescente e febril de elogios, loas e parabéns de todos os setores políticos e religiosos, empresariais e financeiros, e de todas as tendências ideológicas, desde os conservadores, passando pelos centristas, até chegar aos progressistas, que são os que mais elogiaram a decisão papal. Os meios de comunicação de todo mundo e de todas as cores ideológicas, incluindo os mais laicos, se somaram a este coro de discursos apaixonados pró-papais, em um gesto de quase unanimidade que não se havia produzido durante os quase oito anos de pontificado do cardeal Ratzinger. A inesperada notícia provocou tamanho deslumbramento mental e sentimental no imaginário social e em não poucos setores críticos do catolicismo, que, repentinamente, lançou um véu protetivo sobre seu passado episcopal, desde que fora nomeado arcebispo de Munique, e papa, durante seus anos de pontificado. O enaltecimento do papa ancião e o reconhecimento do seu trabalho se converteram em um exercício de amnésia coletiva e de perdão geral dos seus 36 anos de poder que exerceu autoritariamente, sem nunca permitir qualquer tipo de armistício. Sua renúncia foi vista como uma decisão normal justificável pela sua idade avançada assim como pela saúde precária, o que lhe absolveria de tudo o que fez anteriormente. Por mais negligente (ou indulgente) que seja a memória coletiva, neste e em muitos outros casos, existem coisas que não podem ser jogadas ao esquecimento. Não se pode esquecer a atitude inquisitorial do cardeal Ratizinger com seus colegas, os teólogos e as teólogas, desde que assumiu o cargo do ex-Santo Ofício, até seu afastamento. Durante todo esse tempo – mais de seis lustros -, que para alguns foi uma eternidade, julgou, condenou, impôs silêncio, censurou, expulsou de cátedras, destituiu diretores de revistas de teologia ou de informação religiosa, suspendeu do ministério divino, eliminou a liberdade de cátedra, limitou a liberdade de investigação, impôs sua teologia como pensamento único e inclusive chegou a excomungar colegas pelo que subjetivamente acreditou que eram erros e laminou o pluralismo teológico com o conseguinte empobrecimento para a teologia. Durante todos esses anos humilhou as mulheres – que é maioria na Igreja católica -, negou-lhes voz e voto, fechou-lhes as portas de acesso ao sacerdócio, negou-lhes os direitos sexuais e reprodutivos, impediu-lhes de assumir postos de responsabilidade, lhes impôs uma moral sexual repressiva, não lhes permitiu entrar no âmbito do sagrado, lhes declarou rebeldes e lhes admoestou severamente, como no caso das Religiosas Norteamericanas, por seguirem a voz da consciência e comprometerem-se com os pobres. As mulheres foram utilizadas, enfim, como serviçais. Assim seguirá tratando-as em seu retiro de papa emérito, onde terá quatro religiosas à sua inteira disposição. Final patriarcal para o papa e humilhante para as mulheres! Juan José Tamayo é diretor da Cátedra de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade Carlos III de Madrid. Seu último livro é Invitación a la utopía (Trotta, 2012).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – O que nós, do mundo jurídico, sabemos da crise financeira de 2007-2008?

O Brasil já começa a sofrer (de novo) com a inflação, está com sua balança desequilibrada, vem conseguindo manter o consumo interno na base de ajudas fiscais (isenções ou reduções de tributos) e está se tornando mais intervencionista na economia. O programa Bolsa Família ajudou e ajuda muitos pobres (e estimula a educação das crianças), 22 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema, diminuiu a desigualdade (nos governos de FHC, Lula e Dilma) mas… seu parceiro preferencial, a China (que também começa a sofrer os efeitos da crise mundial), acaba de anular um contrato com o Brasil (5% de toda colheita de soja), porque o prazo para entrega não era confiável. O Brasil cresceu (7ª economia do mundo), aqui entrou muito dinheiro com as exportações (de commodities) e os investimentos (que agora estão se rareando), porém, deixou de investir em infraestrutura (estradas, portos, aeroportos etc.), na educação, na saúde, na Justiça etc. De imediatismo a imediatismo, nunca fomos capazes de construir um país para o futuro. Somos, paradoxalmente, o país do futuro (Stefan Zwig), sem pensar (ou se preparar para) esse futuro. Na verdade, sem educação nenhum país do mundo tem futuro. Se buscamos a origem dos nossos males, lá está a falta de educação. A felicidade do consumo (milhões de brasileiros compraram seu carro ou sua moto nos últimos tempos) não supre a carência do conhecimento. A crise internacional, vista no princípio (2007-2008) como uma “marolinha”, começa a bater forte (também) nas portas da economia brasileira. De onde vem essa crise? Como ela surgiu? O capitalismo, mesmo quando apresenta grande prosperidade, constitui garantia de bonança por longos períodos? Lendo o didático livro El estado de malestar (de Jordi Bosch Meda, 2013) podemos depreender o seguinte: está confirmado que o capitalismo (que é o pior de todos os regimes econômicos, com exceção dos demais – Churchill – e do capitalismo selvagem) nunca seguiu um único caminho de estabilidade e pujança forte (ele é cheio de altos e baixos: hora está bem, hora está mal). Seguindo, em linhas gerais, o livro acima mencionado, podemos sintetizar o seguinte: A crise econômica e financeira de 2007-2008 começou nos EUA e já é considerada a maior, desde a Grande Depressão de 1929 (que derrubou as bolsas do mundo inteiro). Cinco fatores contribuíram para ela: (a) excesso de liquidez mundial (sobra de dinheiro), (b) expansão aloprada do crédito hipotecário, na modalidade de subprime, para a compra de casas (aqui nasceu a bolha imobiliária, sobretudo nos EUA), (c) a desregulação do setor bancário e financeiro (imposta pelo neoliberalismo, que constitui uma das manifestações do ultraliberalismo norte-americano e inglês), (d) o surgimento de novos produtos financeiros (a partir da expansão do crédito hipotecário) e (e) mau funcionamento das agências estatais e paraestatais de controle do mercado econômico e financeiro. Muita gente financiou sua casa nova, mas não tinha dinheiro (nem condições) para pagar. O crédito hipotecário, sem pagamento, vira pó. O valor do imóvel começou a baixar, até chegar a patamares risíveis. Muitos produtos financeiros (derivados) nasceram desses créditos (que foram comercializados ampla e difusamente). O mercado financeiro virou um cassino global. Muitos ganharam milhões de dólares (os mais espertos), mas o que sobrou para alguns, faltou para muitos. As financeiras e os bancos começaram a quebrar (First Magnus Financial, Lehman Brothers, Merrill Lynch etc.). Não só nos EUA, senão também na Europa (Northem Rock Lloyds, Hypo Real Bank, Dexia etc.). Aí começaram as ajudas do dinheiro público para socorrer os bancos (e tudo para evitar a quebradeira geral). Ocorre que dinheiro público investido em banco quase quebrado não dá empregos, salários, segurança social etc. A economia de vários países foram à lona (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha etc.) e os resgates (com regras rígidas) não estão surtindo os efeitos desejados, porque não só aumentaram a dívida dos países (dívida soberana), como estão esmagando os velhos “estados de bem-estar social”. A cada dia crescem os “indignados” e a crise financeira, cada vez mais desestabilizadora, gerou uma grande crise de confiança mundial, provocando verdadeiro pânico. Quais são os próximos capítulos? Está todo mundo torcendo por uma reativação da economia. Do contrário, a crise de 2007-2008, que já dura 5 anos, vai ser pior que a Grande Depressão de 1929. Mais uma vez, venceu a forma selvagem do capitalismo (que gera a acumulação indevida de riqueza para alguns, em detrimento do sofrimento de muitos milhões de planetários).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Portal AD comenta pioneiramente julgamento de Júri transmitido ao vivo

Internautas do Brasil e do mundo acompanharam, ao vivo, a cobertura jurídica comentada do julgamento de Mizael Bispo O Portal Atualidades do Direito – AD proporcionou aos internautas do Brasil e do mundo uma experiência pioneira ao comentar, diretamente dos estúdios do Portal Terra que transmitia ao vivo as imagens do julgamento de Mizael Bispo de Souza, condenado na última quinta-feira (14.03.2013) pela morte de sua ex-namorada Mércia Nakashima. Durante toda a semana, os editores do Portal AD, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, receberam juristas de todo o país, que explicaram as etapas, os principais acontecimentos e os rituais do Tribunal do Júri. Os internautas também puderam esclarecer dúvidas sobre as polêmicas e desdobramentos do caso por meio da interação virtual em tempo real. A programação contou com a participação de renomados profissionais da área jurídica: magistrado: Des. Marco Antônio Marques da Silva;procuradora do estado: Ana Paula Zomer; delegados: Antônio de Olim (que atuou no caso) e Osvaldo Nico Gonçalves; promotores de justiça: Fauzi Hassan Choukr, Levy Emanuel Magno, Renato Brasileiro, Roberto Tardelli e Rogério Zagallo; advogados criminalistas: Alberto Toron, Antônio Mariz de Oliveira, Eugenio Malavasi, Flávio Cardoso, Luiza Eluf, Marcelo Feller, Mauro Nacif e Paulo Sérgio de Oliveira; procurador de justiça: Luiz Carlos Gonçalves; defensor público: Nestor Távora. Entre os convidados que entraram ao vivo por telefone estão o ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto, o ex-presidente da OAB Federal, Cezar Britto, o senador Pedro Taques, os procuradores de justiça José Carlos de Oliveira Robaldo, Rogério Greco, Rômulo Moreira de Andrade, ospromotores de justiça Mário Ramidoff, Ricardo Silvares e Rogério Sanches, os advogados criminalistas Samuel Rangel, Cesar Peres, Sergei Cobra e Luiz Flávio D´Urso. O delegado de polícia Eduardo Muniz Santos Cabette, e o perito criminal federal, Cristiano Furtado, também deixaram suas opiniões durante a semana. O Portal Atualidades do Direito agradece a todos os internautas que estiveram conosco durante toda semana e que foram responsáveis por milhões de “page vídeos”. Contamos com a sua participação nos próximos julgamentos! Transparência – O julgamento de Mizael Bispo de Souza foi o primeiro a ser mostrado ao vivo pela internet, rádio e TV. Esse tipo de transmissão é uma iniciativa rara na história da justiça brasileira. Em agosto de 2010, o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) transmitiu o julgamento de 24 réus acusados de envolvimento em mortes no presídio Urso Branco, em 2002.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Relacionamento sexual com menor de 13 anos: absolvição

A notícia: TJES – Decisão excepcional absolve acusado de estupro Sempre salientando a excepcionalidade da decisão, tendo em vista aspectos específicos do processo, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) mantiveram, na sessão da última quarta-feira (5), à unanimidade, a absolvição de um homem que foi acusado pelo Ministério Público Estadual pelo crime de estupro de vulnerável ao estabelecer convívio conjugal com uma menor de 13 anos de idade. A decisão foi tomada no julgamento da apelação criminal do MP contra a sentença da juíza Adriana Costa de Oliveira, da 3ª Vara Criminal de Vila Velha, que se baseou, igualmente, na excepcionalidade, pois a menor já tinha um filho do acusado e ficou comprovado, nos autos do processo 035100950522, que em nenhum momento houve violência contra ela, que foi abandonada pelo pai e vivia com os avós. O voto do relator da apelação, desembargador Adalto Dias Tristão, foi seguido pelos desembargadores Fernando Estevam Bravin Ruy e Telêmaco Antunes. Todos os três registraram que estavam tomando a decisão em caráter excepcional, pois, na reforma de 2009, o Código Penal colocou sob a mesma tipificação criminal o ato sexual contra menores de 14 anos, consentido ou não. Mesma sorte, entretanto, não teve outro acusado de estupro de vulnerável, condenado a 12 anos de reclusão em regime fechado pelo juiz Marco Aurélio Soares Pereira, da Vara Criminal da Comarca de Marataízes. O máximo que ele conseguiu foi reduzir sua pena para 8 anos, porque os desembargadores Fernando Bravin (relator), Adalto dias Tristão e Sérgio Luiz Teixeira Gama compreenderam que o agravamento da pena não se aplicaria. O homem, que, segundo o advogado de defesa, era ministro religioso na Paróquia local, foi preso em flagrante por policiais militares, depois que os pais de uma menina, na época com 10 anos de idade, denunciou que ele havia atraído a criança para sua casa e a forçado a atos libidinosos. A criança chegou em casa chorando e narrando o acontecido, em janeiro de 2010. O agressor vai continuar cumprindo pena em regime fechado. Fonte: Tribunal de Justiça do Espírito Santo Nossos comentários: Nenhuma lei incriminadora no campo penal (ou seja: nenhum tipo penal) pode ser interpretado como se fosse um leito de Procusto (que cedia sua cama ao visitante, com a condição seguinte: se o visitante fosse menor que a cama, suas pernas seriam espichadas; se fosse maior, suas pernas seriam cortadas; ou seja: o visitante tinha que se encaixar exatamente no tamanho da cama). Ninguém pode manter relação sexual com quem tem menos de 14 anos, sim, e se o sujeito mora com essa pessoa, constituiu família com ela, tem filho com ela, vive sua vida para ela? Quando eu era juiz, em São Paulo, absolvi um caso assim. O réu namorava a mãe, mas acabou tendo relação amorosa com a enteada, que ficou grávida. Ele se mudou para S. J. dos Campos, arrumou emprego na Embraer, constituiu família, o filho nasceu etc. etc. Não tive coragem de condenar! Se a lei fosse para ser aplicada automaticamente, sem análise concreta do caso, melhor seria deixar tudo por conta do computador!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – RJ absolve (corretamente) 3 em 4 réus da lei seca

Com 43 mil mortes no trânsito em 2010 é evidente que não podemos ficar de braços cruzados diante dessa tragédia que dizima 120 vidas por dia, uma a cada 12 minutos. Mas existe um Estado de Direito vigente, que precisa ser respeitado. Mesmo aplicando a lei seca de 2008 o TJ do RJ vem absolvendo, muito acertadamente, 3 em cada 4 casos de imputação de embriaguez ao volante. Com a lei nova (de dezembro de 2012, com muito mais razão ele vai continuar fazendo o que está fazendo). Qual é o problema jurídico? Para os agentes da repressão estatal (polícia civil, polícia militar e Ministério Público) bataria dirigir bêbado para a configuração do crime (do art. 306). Não é isso o que diz a lei. Eles interpretam o antigo art. 306 de forma literal, equivocada, para nele ver uma situação (inconstitucional e aberrante) de perigo abstrato puro (presumido). Ou seja: a partir da embriaguez constatada, já se presume que o motorista esteja “sob a influência do álcool” ou “com capacidade psicomotora alterada”. Tudo não passa de mera presunção (contra o réu), em flagrante violação aos princípios constitucionais. Esse entendimento confunde a infração administrativa do art. 165 com o crime do art. 306. Puro populismo penal repressivo, que nós estamos combatendo no livro Nova lei seca (Saraiva: 2013). A conivente e tendenciosa criminologia midiática, que segue o modelo do Estado de Polícia desenhado na década de 70 pelo neoconservadorismo dos EUA, ao se encarregar da irrestrita propaganda do desproporcional e atécnico populismo penal, sem nenhuma noção do que é o Estado de Direito vigente, coloca as decisões dos juízes contra o senso comum da população (gerando sua ira, sua revolta, agravando sensação de impotência, ou seja, nosso estado de mal-estar). Protestando contra a posição amplamente majoritária e lúcida dos juízes do RJ, veja como a jornalista iniciou sua populista matéria (O Estado de S. Paulo, 04.04.13, p. C5): “O entendimento de que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito tem prevalecido no Rio. Levantamento do Tribunal de Justiça do Estado mostra que a maior parte dos motoristas flagrados na lei seca que responderam a processo criminal foi absolvida”. Nada mais absurdo e incorreto do que esse enviesado enfoque (que não tem outro propósito que o de explorar a reação emotiva gerada pelo crime). Esse é o tipo e jornalismo que não informa, deforma. Qual juiz, especialmente da renomada magistratura do Rio de Janeiro, seria louco de “entender que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito”. Só um mentecapto imaginaria isso. Beber e dirigir é uma loucura, uma ação que exprime uma das mais baixas vulgaridades do humano na atualidade. Isso se torna ainda mais reprovável num país com 43 mil mortos no trânsito em 2010. Ninguém é contra a punição dos irresponsáveis e inconsequentes motoristas que bebem e dirigem. De qualquer modo, não é verdade que os juízes do Rio “entendem que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito”. Claro que isso representa um grave risco à segurança do trânsito, que precisa ser devidamente sancionado. Aliás, antes, deveria ser evitado. Mas o que a mídia justiceira não percebe é que é preciso distinguir o que é infração administrativa do que é crime. Essa distinção é que não aparece de forma clara na matéria jornalista citada. Os bêbados que dirigem devem ser punidos, mas é preciso aplicar corretamente a legislação em vigor. O código de trânsito tem dois artigos que cuidam da embriaguez ao volante: art. 165 e 306. O primeiro tem natureza administrativa (multa, apreensão do veículo, um ano sem carteira de habilitação). O segundo tem natureza penal (prisão, de 6 meses a 3 anos). Se existem duas infrações na lei, compete ao juiz (nunca midiaticamente), com lucidez, distinguir o que é um e o que é outro. O juiz é o semáforo do sistema punitivo. É ele que distingue o joio do trigo. Se dá sinal verde para as barbaridades do poder punitivo, se torna conivente com ele. O que fez acertadamente o desembargador Marcus Quaresma Ferraz (e seus colegas), no caso de Juliano Dias, amplamente noticiado, foi distinguir o que a lei determina. Nem todo mundo que dirige bêbado é criminoso. Ele é um irresponsável, que coloca em risco a segurança viária (e deve sempre ser punido por isso). Ele é um perigoso. Mas não necessariamente um criminoso (tal como supõe a mídia populista). O populismo da mídia assim como de boa parcela dos agentes da repressão (polícia e ministério público) vê delinquência onde não existe crime. Confundem a infração administrativa com a infração penal. Aliás, muitos nem sequer sabem em que consiste essa diferença. Constroem o delinquente que não existe. Copiando os velhos populistas do positivismo criminológico do final do século XVIII (Lombroso, Ferri e Garófalo), os neolombrosianos criam delinquentes de forma abominável e essa imagem estereotipada do delinquente forjado é espalhada pelo mundo todo pela obtusa e acrítica criminologia midiática, explorando sempre a sensação de impotência que marca o ser humano da pós-modernidade. É criminoso quem dirige o veículo em estado de embriaguez de forma anormal (ziguezague, sobe calçada, passa no vermelho, anda na contramão etc.). É isso que os juízes do Rio estão fazendo (em respeito às leis vigentes e à constituição). É um infrator administrativo quem dirige embriagado, mas de forma normal. Portanto, a distinção está muito clara (nesse sentido, nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013). Nenhum bêbado deveria escapar. Todos os irresponsáveis que bebem e dirigem devem ser punidos. Porém, cada um com sua punição. Tudo depende do nível de irresponsabilidade. Há casos de infração administrativa e há casos de crime. Não se pode lombrosianamente ver delinquência onde não existe crime. Sempre que o juiz deixa de funcionar como semáforo do sistema punitivo (Zaffaroni) vem o Estado de Exceção, que frequentemente se desliza para o Estado de Polícia (e aí, o fim do Estado de Direito).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Réus condenados sem individualização da conduta

Apesar da falta de individualização da conduta de cada um dos 23 policiais condenados pelo massacre do Carandiru, da ausência do exame balístico e das perícias em todas as armas utilizadas, o promotor conseguiu habilmente convencer os jurados de que os réus deveriam ser responsabilizados penalmente pela morte de 13 pessoas. Cada um foi condenado a 156 anos de prisão. O fundamento técnico da condenação foi o seguinte: quando todos os coautores combinam um determinado crime, os que comprovadamente participam do fato, respondem pelo resultado (pela obra final), independentemente do que cada um fez. A teoria do domínio do fato, que foi invocada para a condenação de José Dirceu no caso mensalão, chegou a ser sustentada pelo promotor, mas juridicamente ela só se aplica em casos de criminalidade organizada onde o chefe, ao mandar seus subordinados executarem o delito, acaba respondendo também como autor, tanto quanto os executores. Como se vê, em relação aos policiais que dispararam contra os presos, por não terem posição de comando, a teoria é inaplicável. De qualquer modo, no júri, o que importa é o resultado final, ainda que apertado, valendo observar que nunca um único fator é decisivo para o veredito dos jurados, que naturalmente também se impressionaram com os antecedentes dos reús, com o número de disparos efetuados, com o fato de terem sido mortos em suas celas etc.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Tática defensiva de Bruno falhou

A tática defensiva utilizada pelo goleiro Bruno falhou. Mesmo sem o corpo da vítima Eliza, os jurados o condenaram por homicídio triplamente qualificado, sequestro de menor e ocultação de cadáver. Quem é inocente tem que se posicionar com clareza perante os jurados, tem que protestar, gritar, lutar pela sua liberdade. Não há espaço no tribunal do júri para dubiedades. No princípio Bruno disse que não sabia da morte de Eliza, mas a aceitou (por isso se sentia culpado). Depois ele disse que sabia e imaginava a morte dela, em virtude do que lhe disse Macarrão. Ou seja: não confessou, nem delatou ninguém, nem se disse inocente. O resultado desse discurso reticente foi desastroso, visto que não gerou dúvida em pelo menos quatro jurados, nem os convenceu de que tinha que ser absolvido. Pior é que nem possibilitou à juíza qualquer tipo de diminuição da pena. Condenado a 22 anos e 3 meses de prisão, sem direito de apelar em liberdade, terá que cumprir 40% desse total no regime fechado (cerca de 8 anos), debitando-se o tempo já cumprido de 2 anos e 8 meses. Só depois poderá postular a sua progressão para o regime semiaberto. A vitória esmagadora da acusação, inclusive em relação ao seu pedido de absolvição de Dayanne, deveu-se a um trabalho profícuo de convencimento dos jurados, em cima das provas do processo. Discursos divagantes ou ataques pessoais não funcionam no plenário do júri.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Santa Maria e mídia populista: duas tragédias

A mídia, em geral, seguindo a cartilha do populismo penal (veja nosso livro com esse título, Saraiva: 2013), ao dar ênfase (ao dramatizar) somente ao aspecto repressivo da tragédia, que é necessário (não há dúvida), está deixando de lado algo tão relevante quanto a repressão, que é a estratégia preventiva, tal como sublinhado pelo arquiteto Paulo Dalle, na audiência pública da Câmara dos Deputados (em 26.03.13). A mídia, que tem o propósito de explorar a reação emotiva gerada pelo crime (Durkheim), só olha o passado e se esquece do futuro. Tão relevante quanto punir o passado é preservar vidas no futuro. É claro que a repressão dos crimes, especialmente quando mais de 240 vidas se perderam tragicamente, é esperada, mas, sozinha, isolada, constitui fruto de uma política criminal equivocada. Nenhum país do mundo civilizado jamais abandonou a repressão. Mas constitui um erro crasso (ou pura demagogia) imaginar – como alguns editoriais jornalísticos imaginam – que apenas ela possa prevenir a criminalidade. O efeito preventivo da pena, consoante todas as pesquisas científicas (veja Medina Ariza, 2011), é diminuto e humilde (para não dizer ridículo). E quem diz o contrário é ignorante (porque não conhece a ciência criminológica) ou mentiroso (ludibriador da população). A Justiça e a polícia, sobretudo nos países em desenvolvimento, funcionam muito precariamente. Nenhum país do mundo jamais conseguiu punir todos os crimes. O tolerância zero (como filhote do neoconservadorismo norteamericano dos anos 70), ao transmitir a sensação de que todos os crimes serão punidos, constitui uma utopia reacionária (sem pé, nem cabeça). É uma ilusão, um engodo das democracias contemporâneas. Não mais do que 5% dos crimes são punidos (e isso em praticamente o mundo inteiro). Claro que em países mais desorganizados, como o Brasil, o índice é menor. Se a Justiça e a polícia funcionam precariamente, lentamente, por que nos iludimos tanto com a atividade repressiva? A mídia tem uma resposta: razões comerciais. É evidente que a repressão é indispensável, sobretudo nos casos que envolvem perdas de vidas humanas, mas ela não traz a vida de volta, não recupera o bem subtraído, não apaga o trauma psicológico do estupro etc. Vem tarde, quando vem, e é muito demorada. A investigação “rigorosa e abrangente”, alabada pelos setores midiáticos populistas e abutricionistas, vai ter que passar pelos crivos do Ministério Público, das Justiças de primeiro e segundo graus, assim como dos tribunais superiores de Brasília: STJ e STF. Isso significa anos e anos de tramitação processual. O trabalho da polícia (52 volumes, 13 mil páginas e 810 depoimentos) vai ser questionado linha por linha (porque é assim que funciona o processo penal nos países civilizados). Vinte e oito pessoas foram indiciadas (algumas por culpa, outras por dolo). Os crimes menores contam com enorme possiblidade de prescrição. Só a polêmica sobre se houve dolo (eventual) ou culpa (consciente) vai demorar uns 3 ou 4 anos (computando as decisões de Brasília). Um ex-deputado estadual no Paraná foi acusado de crime doloso no trânsito. Há uns 3 anos estão discutindo se o caso vai ou não a júri. Assim funciona a justiça repressiva. A mãe e a irmã de um dos donos da boate, que foram indiciadas só por aparecerem como co-proprietárias do local, certamente serão as primeiras que irão cair fora do processo (em razão do princípio da responsabilidade penal individual). Os que estão presos logo deixarão a cadeia. Basta que o assunto saia da mídia. E no Brasil, como se sabe, não faltam novas tragédias para alimentar o necronoticiário diário da mídia. Para decepção da população, ninguém vai ficar 3 ou 4 anos preso aguardando o julgamento do caso (sobretudo se for a júri, o que significa mais lentidão). Enquanto os debates jurídicos vão se desenrolando (coloca anos nisso!), a desgraça é que muitas outras casas de show pelo Brasil afora também não contam com porta de emergência, extintores suficientes etc. Para isso deveria a mídia também dar bastante atenção. Ocorre que falar da justiça preventiva (devemos ser mais diligentes, mais cuidadosos, temos que assumir nossas responsabilidades como cidadão, devemos falar de ética, de justiça social etc.) não dá audiência. Tampouco da justiça reparatória (pagamento de indenização). O prefeito vai discutir que não era o responsável pela expedição dos alvarás. E não dá para aplicar, nesse caso, a teoria do domínio do fato (porque não estamos diante de crime organizado). Pouco adianta ficar elogiando o indiciamento de várias pessoas, quando sabemos que nem todas serão condenadas. A população quer ver o resultado final. Tudo bem. Mas mesmo que várias pessoas venham a ser condenadas, a repressão desse caso não significa que grande parcela dos brasileiros vá deixar de ser negligente e descuidadosa. As 45 mil mortes no trânsito, todos os anos, que significam 187 tragédias como a de Santa Maria, são provas do que estou afirmando. Isso se agrava, quando muitos ainda acham que parte dessas mortes “constitui obra de Deus”. O próprio delegado, depois do grande esforço empreendido, afirmou que “houve uma conduta no mínimo temerária, muito ruim, dos gestores do local”; “Foi uma temeridade muito grande a casa funcionar daquele jeito”. Temeridade, em direito penal, significa culpa. Os crimes culposos (1 a 3 anos de prisão) prescrevem facilmente na Justiça morosa que temos. O caso do jogador Edmundo, que foi acusado de ter matado três pessoas, acabou prescrevendo no STJ, depois de ficar na fila de julgamento (que é idêntica à fila do INSS) durante mais de 10 anos! Eu não estou equivocado nesse ponto: mais de 10 anos! Na falta de uma lei que cuide da culpa temerária (ou gravíssima), com pena superior à existente hoje, as autoridades, pressionadas pela mídia, acabam enquadrando forçadamente como dolo (delito intencional) muitos casos de crimes culposos. Resultado: só para resolver essa questão (chamada de preliminar), pode colocar 3 ou 4 anos! Os jornais noticiam que alguns civis deliberaram, com apoio dos bombeiros, retornar para dentro da boate, para salvar amigos. Cinco deles morreram dessa maneira. Onde a mídia dramatiza ilicitude na conduta dos bombeiros, eles enxergam “atos dignos de bravura”. A mídia não tem a mínima ideia do debate jurídico que vai ser travado nesse ponto, com a invocação da teoria da “autocolocação da vítima em risco em razão de conduta própria”. Diante de tudo quanto acaba de ser dito sobre o precaríssimo funcionamento da justiça repressiva, melhor seria que a população, para não se frustrar profundamente, visse com desconfiança as enganosas opiniões populistas midiáticas. Que não espere que venha ou que venha logo a tão decantada “decisão rigorosa” da Justiça, anunciada espetaculosamente pela mídia. Com as provas científicas de que hoje dispomos (ver Medina Ariza, 2011), melhor seria, ademais, não confiar que a condenação penal possa prevenir a repetição de tragédias como a de Santa Maria. A condenação é necessária por razões éticas e de justiça, mas o campo preventivo (de futuras tragédias) é muito mais complexo do que a mídia imagina. Sobretudo onde a Justiça e a polícia só conseguem apurar 8% dos homicídios (por falta absoluta de estrutura, sucateamento da polícia científica etc.). Nossos ancestrais das cavernas acreditavam que pintando os animais nas suas paredes já tinham o domínio deles. Tal como esses ancestrais, continuamos iludidos com a eficácia preventiva da justiça repressiva (que funciona muito mal). Continuamos acreditando em demasia que a pena conta com eficácia preventiva. Se queremos evitar mortes, temos que jogar mais energia na prevenção que na repressão.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Vandalismo ou juventude lúcida?

Protestos populares não são novidade em nenhuma parte do mundo. Somente nos últimos anos podemos recordar a batalha de Seattle (1999), os movimentos contestatórios de Davos contra a globalização (2000) e de Toronto contra o G20 (2010), os universitários de Londres (2010), o movimento “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos (2011), os indignados na Espanha (2012), a Primavera Árabe (2011-2012), os protestos de Istambul (2013) etc. Trata-se de uma fenomenologia mundial. O ser humano, por natureza, é insatisfeito. Quando satisfeito, costuma não tolerar a injustiça, o autoritarismo ou o desmando. Para tudo, sobretudo para a opressão, há limite. Também no Brasil os protestos são frequentes, porém, menores. Nenhum talvez tenha alcançado, depois da redemocratização (1985), as proporções (centenas de detidos) dos que aconteceram recentemente. De imediato, dois desafios: 1 ) como devemos lidar com esses protestos sociais sem excessos, sem abusos, reforçando, não destruindo, a democracia? (voltarei a esse tema em outro artigo); 2 ) quais seriam as verdadeiras razões dos recentes protestos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL), que defende a gratuidade do transporte público. Constituiriam esses protestos (a) puros atos de vandalismo, (b) insurreição sincera contra o aumento na passagem dos ônibus (aumento de R$ 0,20 centavos em SP) ou se trataria (c) de uma juventude lúcida que, distanciando-se da massa do “rebanho bovino” (a expressão é de Nietzsche), teria conseguido vislumbrar a profunda crise (e injustiça) do modelo capitalista globalizado e neoliberal, que se aliou, em países periféricos como o Brasil, com o capitalismo de tradição aristocrata-escravagista? O Movimento Passe Livre (MPL) adotou como pretexto inicial o aumento da tarifa dos ônibus. Mas ele mesmo confessou que não conta com controle de todos os participantes. É patente a heterogeneidade dos grupos que estão participando das passeatas (O Estado de S. Paulo de 15.06.13, p. A24), que vão desde sindicatos (dos metroviários, ferroviários etc.), agremiações partidárias (juventude do PT etc.), entes coletivos pós-modernos, anarquistas, incontáveis universitários, até a “tropa de choque” violenta, conhecida como “black blocks” (que, com panos ou lenços no rosto, máscaras de gás, roupas pretas e estética punk, foi o grande responsável pelas destruições materiais dos protestos do dia 11.06.13). Não há como deixar de concluir que alguns estão participando do movimento (só) para promover o vandalismo (grupos radicais e irresponsáveis, inimigos da democracia, eventualmente contratados por alguns partidos políticos – Folha de S. Paulo, 16.06.13, p. C6 – ou, em tese, pela própria polícia), enquanto outros participam em razão do aumento na passagem dos ônibus. Mas existem mais motivos que também devem ser investigados. Muita gente (aqui residiria a juventude lúcida) está querendo, para além do preço dos bilhetes dos ônibus, protestar contra a corrupção generalizada no país, contra os desmandos das autoridades, contra os políticos, contra a política, contra a economia, a inflação, a falta de perspectiva futura, ou seja, contra o modelo capitalista atual. As verdadeiras causas (motivos) dos protestos ainda precisam ser apuradas (nada há ainda de seguro nesse pantanoso horizonte). Aparentemente não é ideológica nem (necessariamente) política (partidária). Não se protesta contra a democracia (ao contrário, o protesto só existe porque ela o permite) nem contra uma específica “ditadura”. O eixo comum da indignação, portanto, diante das múltiplas manifestações até aqui reveladas, poderia residir, em última análise, no modelo capitalista atual, que está esgotado (sobretudo depois da roubalheira e trapaças financeiras de 2008 – subprime -, nos EUA). Para evitar equívocos (especialmente porque eu pretendo escrever vários artigos sobre os protestos recentes), esclareço, desde logo, que, ao adotar postura crítica contra o atual modelo capitalista, eu o faço como cidadão, que nunca deveria ser um idiota, no sentido grego (idiotes significava, na antiga Grécia, não participar da vida pública, da vida da polis). Minha crítica ao capitalismo selvagem, no entanto, não significa postular o retorno ao socialismo real (stalinista) ou ao marxismo. Parafraseando Churchill, penso que o capitalismo vigente é o pior dos regimes econômicos, com exceção de todos os demais. De acordo com minha opinião, o capitalismo necessita de urgentes reformas e correções. É chegado o momento de a burguesia opulenta e acomodada pensar seriamente em mais justiça social, antes que lhe sejam levados os dedos!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Violência diminui (só) nos computadores da SSP-SP

Ao contrário do divulgado pela Secretária de Segurança Pública, os números de homicídios no Estado de São Paulo, em janeiro de 2013, não obtiveram queda de 21%, sim, observou-se um crescimento de 16,9%, se comparado ao mesmo período de 2012: passou de 356 para 416. Na cidade de São Paulo o aumento foi de 16,6% (anunciaram diminuição de 31,17%). Na Grande São Paulo o incremento foi de 24,2%. É o sexto crescimento consecutivo: agosto, aumento de 9,2%; setembro, +27%; outubro, +38%; novembro, +32%; dezembro, +30,8%; janeiro, +16,9%. A queda fictícia anunciada pela Secretaria da Segurança do governo Alckmin deveu-se a uma comparação entre os meses de dezembro de 2012 e janeiro de 2013, feita de maneira errônea, visto que o correto seria comparar os mesmos períodos: janeiro com janeiro, 1 semestre com 1 semestre etc. Isso consta do Manual de Interpretação de Estatísticas da SSP-SP. Não foi só o número de homicídios que teve crescimento. Latrocínio cresceu 61,9%; roubo de veículos, mais 18,7%; roubo em geral, mais 9,3%; estupro, mais 20% etc. Em relação à cidade de São Paulo temos: Os roubos, na cidade de São Paulo, passaram de 8.582 em janeiro de 2012, para 9.463 em janeiro de 2013; os furtos foram de 14612 em 2012 para 16627, em 2013; e os furtos e roubos de veículos, somados passaram de 6.752, em 2012 para 7.655, em 2013. Há seis meses crescem os homicídios intencionais no Estado de São Paulo. Quais seriam as causas? Licença para matar (concedida veladamente aos policiais), ordem para matar (dada pelo crime organizado), baixíssimo índice de apuração dos crimes (o que confirma a licença para matar), conflito entre PCC e PM, sucateamento quase absoluto da polícia civil, do Instituto Médico Legal e do Instituto de Criminalística (polícia científica), salários irrisórios pagos aos policiais (um dos mais baixos do país), ausência de uma política de prevenção integral (primária, secundária e terciária), crença mágica no efeito dissuasório da pena (que não encontra base empírica), deflagração da guerra entre a Rota e o PCC, ausência da polícia comunitária, precaríssima estrutura das polícias, especialmente a civil, retenção de gastos com a segurança pública etc. Com todos esses ingredientes, é lógico que o Estado de São Paulo é uma zona epidêmica de violência.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Zona 30: menos velocidade, mais vida (3)

Um estudo português do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, nomeado “Acalmia de Tráfego – Zonas 30 e Zonas Residenciais ou de coexistência”, mostra que, na Inglaterra, no ano de 1963, foi formalmente apresentado o relatório “Traffic in Towns”, de autoria de Colin Buchanan onde, pela primeira vez, fixou-se a relação entre o crescimento do tráfego motorizado e a ameaça da qualidade de vida nas cidades. Este documento é referido na bibliografia internacional como a gênese do movimento moderno de segurança no trânsito que apresenta, dentre as conclusões, a necessidade de incluir nos planos de transportes medidas que influenciem na utilização do automóvel. Desde de que foi criada a primeira zona 30 como projeto piloto na pequena cidade alemã de Buxtehude, em 1983, numerosas zonas 30 provaram o seu valor por toda a Europa. Onde quer que tenham sido instaladas, o número e a seriedade dos acidentes foram reduzidos consideravelmente. Em Londres, um estudo realizado pelo British Medical Journal mostrou que a introdução de zonas de 20 mph (30 km/h) foi associada a uma redução de 41.9% no número de vítimas de acidentes de trânsito. Não há evidências de migração de acidentes para áreas adjacentes às de 20 mph, onde o número de vítimas sofreu uma leve redução de 8%. A conclusão é que medidas como a Zona 20mph é efetiva no sentido de reduzir acidentes e mortes no trânsito. Os efeitos benéficos das Zonas 30 são (dentre outros): • Cria cruzamentos seguros • Melhora a qualidade de vida • Aumenta os níveis de caminhada e ciclismo • Reduz a obesidade por meio do aumento da vida ativa • Reduz o volume de tráfego de veículos a motor e velocidades • Reduz os índices de acidentes rodoviários, ferimentos e mortes a todos • Reduz as emissões de gases de efeito estufa, poluição do ar e poluição sonora • Fomenta uma área onde pedestres, ciclistas e motoristas convivem com segurança e conforto • Desenvolve espaço público que é aberto e seguro para todos, incluindo as pessoas com deficiência • Aumenta o espaço disponível para caminhadas, ciclismo, e as pessoas na rua para comer, brincar e aproveitar a vida • Proporciona uma área segura para as crianças em zonas escolares • Aumenta os valores imobiliários de casas e empresas locais • Aumenta a vitalidade econômica da área • Fortalece o sentido de comunidade É chegado o momento de a sociedade brasileira começar a discutir nacionalmente a Zona 30. Participe da nossa campanha: www.zona30.com.br

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Zona 30: menos velocidade, mais vida (4)

A primeira cidade a implantar a Zona 30 foi Buxtehude, na Alemanha, em 1983. A partir daí muitas cidades da Alemanha, França, Belgica, Itália, Holanda, Áustria, Reino Unido, Dinamarca. Bruxelas, na Bélgica, já conta com 4,6 km de ruas que só podem ser transitadas a 30 km/h. Barcelona completou em 2010 mais de 200 km de zonas 30. Londres percebeu uma queda de 40% no número de acidentes e na Bélgica a queda foi de 72%. Em Setembro de 2011 o Parlamento Europeu fez a recomendação para que todas as cidades façam adesão ao projeto e, em 2012, uma iniciativa popular pede que a UE institua, como lei, em todo seu território, a Zona 30. No Brasil, segundo projeção do Instituto Avante Brasil, em 2013 acontecerá, no trânsito, 1 morte a cada 11 minutos (cerca de 48 mil mortes no ano todo). Só na última década (2001/2010) a frota nacional de veículos aumentou 101,2%. Nessa direção, no mesmo período, o número absoluto de mortes no trânsito cresceu cerca de 40% (4,06% ao ano); a taxa de mortes por 100 mil habitantes cresceu 26,6% (cálculos baseados nos dados do Datasus-Ministério da Sáude). Contudo, se a mortandade no trânsito é expressiva e crescente, a mortandade de motociclistas é ainda mais grave, vertiginosa e preocupante. Enquanto o número total de mortos no trânsito cresceu 40,3% entre 2001 e 2010, o número de motociclistas mortos no mesmo período cresceu 250%, saltando de 3.100 vítimas (em 2001) para 10.825 (em 2010). Dessa forma, de 30.524 mortos no trânsito em 2001, saltamos para 42.884 em 2010 (aumento de 40,3%) e, de uma taxa de 17,7 mortos/100 mil habitantes há dez anos, alcançamos a de 22,4 mortes/100 mil habitantes, em 2010 (aumento de 26,6%). No Brasil, além de não enxergarmos e não agirmos contra a gravidade de um grande e calamitoso problema, contribuímos para fomentá-lo ainda mais. É preciso instituir medidas que ajudem a diminuir esse quadro, e a Zona 30 pode ser uma solução para o trânsito trágico e nefasto de muitas cidades brasileiras. O exemplo do Rio Janeiro com a Zona 30 De acordo com Mauro Cezar de Freitas Ferreira, Diretor do Centro de Comunicação e Educação para o Trânsito da CET-Rio, todas as áreas do tipo zona 30 foram implantadas por ocasião do “Dia Mundial Sem Carro”. Desenvolveu-se uma identidade visual que foi implantada em conjunto com placas de advertência e regulamentação. Também foi implantada sinalização horizontal e em alguns poucos casos elementos de “traffic calming”. Ipanema e Ilha do Governador foram as áreas com maior quantidade de acidentes registrados antes da implantação e variação de números mais significativa. Comparando o 1 semestre de 2011 com o 1 semestre de 2012 (as implantações ocorreram no segundo semestre de 2011), pode-se dizer, com base nos dados do 190 da Polícia Militar, que houve uma redução de 75% no número de acidentes com vítimas na área da Ilha do Governador e que na área de Ipanema chegamos ao índice ideal de nenhum acidente com vítima no 1 semestre de 2012. “Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado” (Helena Besserman Viana, brasileira, psicanalista).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes: Menoridade penal e a trampa da diferenciação do consumidor

Um dos erros de lógica mais notável no princípio do século XXI, governado pelo consumismo desenfreado e imoderado, que foi criado e é incentivado pelo capitalismo egoísta neoliberal, consiste em imaginar (e pretender) que um serviço público pobre (raquítico, esquálido, pífio, sucateado) possa satisfazer necessidades (de segurança, por exemplo) da vida privada rica (opulenta ou satisfeita). Primeiro caímos na lei (na trampa, no engodo, na falácia) da diferenciação do consumidor, decretando a derrota e a falência quase absoluta do serviço público padronizado (assim como do Estado, da política e dos políticos), para enaltecer a vitória implacável da lei do mercado livre; depois imaginamos que esse serviço público devastado (corroído e corrompido) possa nos oferecer solução para as carências coletivas. A incongruência dessa postura aporética salta aos olhos com toda evidência, ou seja, brilha como sol do meio dia. A lei da diferenciação do consumidor, que foi explicada por Joseph Monsen e Anthony Downs (economista e cientista político, respectivamente), em um artigo publicado na revista americana The Public Interest (veja W. Streeck, emPiauí, 79, p. 61), consiste no seguinte: “há um desejo, por parte dos consumidores, de competição e diferenciação, que os leva a criar distinções visíveis entre grandes grupos e classes e, dentro desses grupos, diferenças individuais mais sutis. Esse desejo é uma parte intrínseca da natureza humana, evidente, pelo menos em algum grau, em todas as sociedades, passadas ou presentes. Um desejo tão fundamental que pode ser considerado uma lei da natureza humana”. Trata-se da lei de diferenciação do consumidor. As duas principais consequências da lei da diferenciação do consumidor são: (a) por força dela somos tendencialmente propensos a consumir mais do que o necessário (para nos distinguir, para nos diferenciar, para conseguir “status”, para nos socializar) e (b) o serviço público padronizado foi sucateado em muitos países (ou em vários setores). Consequência: criamos sociedades “ricas na vida privada, mas pobres em serviços públicos” (J. K. Galbraith). Quando pedimos (a sociedade e a mídia) solução para o problema da criminalidade ao Estado, sobretudo da delinquência dos menores, caímos na “trampa da diferenciação do consumidor”, porque repentina e equivocadamente imaginamos que um serviço público quebrado, falido e derrotado (pelo capitalismo neoliberal e escravagista), que nós, por razões de “status”, antes de tudo, rejeitamos diariamente (sempre que nossas posses permitem substituí-lo), venha resolver nossa carência coletiva de segurança. Primeiro dizimamos um determinado jogador da equipe, deixando-o esquálido e apático; depois queremos que esse ente cambaleante, que dificilmente se sustenta sobre suas próprias pernas, possa, em campo, resolver uma complicada partida. Incongruência absoluta e rematada do pensamento consumista e capitalista selvagem.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – “Médicas cubanas têm cara de empregada doméstica”

Basta ouvir atentamente as lições do nativo humanoide P. Karhapitzchewisky para se descobrir que grandes idiotices praticamos na nossa vida (poucos somos isentos desse equívoco, desgraçadamente) quando deixamos a vulgaridade do homo democraticus falar e julgar pessoas ou coisas ou situações com base exclusivamente nos nossos pré-conceitos, pré-juízos ou pré-compreensões, sem atinar para as opiniões contrárias. De acordo com o ponto de vista do nativo humanoide citado a jornalista M. B., que já se desculpou, incorreu na idiotice citada ao proclamar, urbi et orbi (em sua rede social), o seguinte: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem (sic) cara de empregada doméstica. “Será que são médicas mesmo???” “Afe que terrível”. “Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência”. Detalhe importante: a declaração foi feita com base na “cara” das médicas, caras negras ou pardas escuras, caras essas que os arianos (como Hitler) discriminam como feias ou malvadas. Tudo, ela resumiu, “é uma questão de aparência”, mesclando-se a das médicas com a das empregadas domésticas, sendo que estas, consoante a tradição brasileira, são negras, pardas ou brancas pobres. Para P. Karhapitzchewisky a declaração foi atroz, foi cruel e extremamente desumana. Retrata a ausência absoluta de progresso social. Um atraso incomensurável e um eclipse ético deplorável. Com fundamento nas lições do sociólogo M. Bomfim (A América Latina – males de origem), lições de 1903, ele recordou que “um grupo, um organismo social, vivendo parasitariamente sobre outro, há de fatalmente degenerar, decair, degradar-se”. A visão desfocada e aética das empregadas domésticas revela a falta que faz, em toda América Latina, do progresso social. E o que se entende por progresso social? M. Bomfim (em 1903) ensinava: “No desenvolvimento da inteligência, pelo esforço contínuo para aproveitar do melhor modo possível os recursos da natureza, da qual tiramos a subsistência, e no apuro dos sentimentos altruísticos, que tornam a vida cada vez mais suave, permitindo uma cordialidade maior entre os homens [seres humanos], uma solidariedade mais perfeita, um interesse maior pela felicidade comum, um horror crescente pelas injustiças e iniquidades…”. Ora, prossegue o autor, uma sociedade que viva parasitariamente sobre outra [sobre escravos, sobre pessoas escravizadas, sobre assalariados que recebem baixíssimo salário] perde o hábito de lutar contra a natureza; não sente necessidade de apurar os seus processos, nem de pôr em contribuição a inteligência, porque não é da natureza diretamente que ela tira a subsistência, e sim do trabalho de outro grupo; com o fruto desse trabalho ela pode ter tudo. Não há mais necessidade de ver, observar, guardar a experiência e manter-se em contato com a natureza (…) em tais condições, é lógico que a inteligência não poderá progredir, decairá (…) Como se poderão desenvolver e apurar os sentimentos altruísticos, de justiça e equidade, de cordialidade e amor, numa sociedade que sucede viver [há cinco séculos], justamente, de uma iniquidade – do trabalho [escravocrata] alheio?”

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – 1.789 concursos estão sendo investigados por fraude

Para além dos problemas gerados pelo X Exame da OAB, você sabia que, consoante informação do Correio Braziliense (04.06.13), o Ministério Público Federal está investigando, em todo Brasil, 1.789 denúncias relacionadas a fraudes em concursos públicos? Foi o certame da Anvisa, recente, que chamou atenção novamente para as falcatruas nos concursos. Falta de legislação específica (um projeto regulando o tema foi aprovado no Senado, mas ainda depende de apreciação da Câmara dos Deputados) impediria a punição dos envolvidos e deixaria brechas para práticas abusivas. Exagero do jornal. O direito penal vigente é mais do que suficiente para punir todo mundo (por danos, estelionato, indenizações etc.). De qualquer modo, a lei dos concursos é totalmente necessária. Esperamos que seja aprovada pela Câmara rapidamente. E o Exame da OAB? Também urgentemente precisam ser tratados vários itens: a forma a elaboração da prova, a correção da prova etc. Organizar concursos no nosso país virou um negócio lucrativo. Mas até empresa fantasma existe na área. O lucro maior, claro, para quem atua sem ética, vem da malandragem. A PF investiga muitos outros casos (informou o Correio Braziliense). No total, perto de 2 mil concursos estão sob suspeita de fraude (incluindo-se alguns para a Magistratura). O sujeito, como se vê, nesse caso, já começa a carreira como juiz torto (juiz de direito torto). Vai condenar muitos réus, quando o primeiro a ser punido seria ele mesmo (em razão das malandragens nos concursos, noticiadas em todo momento pela mídia). É o tipo de vergonha que nenhum bisneto do agente fraudulento vai perdoar nunca! Mancha eterna! As fraudes nos concursos e, muitas vezes, também no Exame da OAB, seriam sintomas de uma sociedade pouco acostumada à igualdade e à meritocracia. A velha malandragem, que marca a formação histórica brasileira (como diz Antonio Candido), continua mais viva que nunca nas subjetividades de muitos candidatos. O aventureiro dos tempos da colônia, o que “quer colher o fruto sem plantar a árvore” (Sérgio B. de Holanda), em pleno século XXI, continua mais corrente do que se imagina. Indolência e boa vida, sem nenhum ou sem grande esforço. É assim que muitos malandros querem obter sucesso! Do ponto de vista moral há uma tese de que nós, brasileiros, caminhamos dentro de margens bastante ambíguas, marcadas por uma “tolerância corrosiva”, já agora não somente nas classes baixas, senão também nos estratos aburguesados (o mensalão do PT e o cartel do metrô de SP, envolvendo empresas bilionárias e o PSDB, constituem exemplos expressivos disso). O Brasil seria “uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora neutralidade moral. Não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia” (diz Antonio Candido). Existe a tese de que ele constituiria um tipo de sociedade “parasitária e indolente”, que é viva desde o tempo do Brasil joanino (D. João VI). Desde que no seio da nossa sociedade começou a perder força a antiga estruturação patriarcal (familiar), que foi muito forte na época da Colônia (1500-1821), é nítida a “crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social; isso é especialmente sensível no nosso tempo [texto escrito em meados da década de 30 do século XX] devido ao decisivo triunfo de certas virtudesantifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos” (Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda). Ao esforço do concurso público ou do Exame da OAB, que se funda na meritocracia e que constitui um dos pilares da democracia, muitos brasileiros ainda não estão adaptados. Muitos buscam o cargo público ou a aprovação na Ordem via corrupção ou favorecimento. É uma vergonha termos quase 2 mil concursos sub judice ou sob investigação. Muito tem que ser feito para o combate das vulgaridades e das excentricidades ainda vigentes no século XXI.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – 10 razões para apoiar o retorno dos protestos massivos

O Brasil tem seu lado vitorioso. Existe o Brasil que deu certo. Nas três últimas décadas, por exemplo, alcançamos três impressionantes conquistas: (a) movimento diretas-já, em 1984, que sepultou a ditadura militar e restabeleceu a democracia, nos legando a Constituição de 1988; (b) o Plano Real de 1994 que venceu a inflação e estabilizou a moeda assim como os referenciais econômicos; (c) o programa de inclusão social e a luta contra a miséria, que se transformaram em política de Estado em 2002 (essa iniciativa, de acordo com o IDHM, da ONU, contribuiu para o Brasil crescer, de 1991 a 2010, 47,5%, em média, nos itens expectativa de vida, renda per capita e matriculados em escolas). Essas mudanças aconteceram sob a batuta de grandes lideranças políticas do MDB, PSDB e PT, respectivamente. São pontos positivos para o Brasil que deu certo. Paralelamente existe também o Brasil que deu errado ou que ainda não deu certo (é oBrasilquistão). Seus 5 pilares (dentre outros) são: (a) apartheid (divisão de classes totalmente discriminatória, fundada em desigualdades aéticas), (b) guerra civil (violência), (c) ineficientismo do Estado, (d) representação política desastrada e (e) “dialética da malandragem” (Antonio Candido). Nossos próximos cinco grandes desafios, sem prejuízo da manutenção do que já foi conquistado, cujos líderes nem sabemos quem serão, são: (a) combater nosso apartheidsocioeconômico por meio da educação de qualidade como política nacional prioritária em tempo integral, das 8 às 18h, obrigatória até aos 18 anos, criando igualdade de condições e de oportunidades para todos; (b) enfrentar a questão da violência/segurança pública, com o firme propósito de acabar com nossa discriminatória guerra civil; (c) dotar o Estado de eficiência para melhorar a qualidade dos serviços públicos nas áreas de saúde, transportes, justiça etc.; (d) digitalizar e revitalizar a velha democracia representativa (criando o Fórum Cidadão, para a implantação da democracia direta digital e (d) atacar desde suas raízes a corrupção, que tem origem cultural na “dialética da malandragem”. Para acabar (reduzir) os males do Brasilquistão temos que continuar os protestos de junho. Dez (dentre tantas outras) razões para isto: (a) Como podem deputados e senadores continuarem usando indevidamente os aviões da FAB (uso recreativo)?; (b) Como podem os políticos desejarem flexibilizar (na minirreforma eleitoral) suas responsabilidades, sobretudo na hora das prestações de contas à Justiça eleitoral, sobrelevando a relevância do poder econômico (que compra o poder político); (c) Como pode a Revista Veja (que produz matérias incríveis, por exemplo, na área de educação) ser vergonhosamente tendenciosa, ao não dar a primeira página (principal) para o escândalo da fraude no metrô de São Paulo (confessado por um dos criminosos, a Siemens), se ele tem potencial para influenciar as eleições de 2014 assim como a saúde da democracia brasileira?); (d) Como pode dois ministros do STF (Fux e Marco Aurélio) sonharem, como diz a mídia, em transformar suas filhas em desembargadoras, sem antes terem muitos e muitos anos de trabalho na advocacia? (e) Como pode Joaquim Barbosa ter usado o endereço do seu apartamento funcional em Brasília (violando regras federais) para sediar sua empresa internacional que foi usada para comprar um apartamento em Miami? (f) Como pode um senador (Lobão Filho) afirmar que a ética não tem relevância? (g) Como pode o PSDB ou seus representantes, numa espécie de copia do PT do mensalão, se locupletarem das propinas da fraude no metrô de SP? (h) Como pode o STF mudar de critério em relação à “cassação” do mandato do parlamentar condenado por ele mesmo por falcatruas no exercício da função pública, não conciliando os incisos IV e VI do art. 55 da CF? (i) Como pode empresas e corporações internacionais de renome, podres de ricas (como Siemens, Alston, Bombardier, CAF, Mitsui, HSBC, Bank of America etc.), incentivarem, por meio da corrupção ou da lavagem de dinheiro, o fim da concorrência e da competência, que é a espinha dorsal do capitalismo neoliberal, já enfraquecido e enlameado com os escândalos da roubalheira financeira de Wall Street de 2008? (j) Como pode 870 milhões de pessoas estarem passando fome (e morrendo por causa disso), com tanta abundância de comida no mundo inteiro? Como pode…

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Apagão ético do senador Lobão Filho

O senador Lobão Filho teve um apagão ético? Sim. Isso é muito sério. O senador Lobão Filho (PMDB-MA), que só é senador porque seu pai, Edson Lobão, ocupa um ministério no governo Dilma, sendo beneficiário de dupla imoralidade (é senador suplente – isso já é uma imoralidade – e foi indicado pelo pai, por força do nepotismo) fez (em 05.08.13) uma das mais chocantes declarações de toda era republicana: “A defesa da ética intransigente é uma coisa muito subjetiva. Não há razão para incluir a ética no juramento do mandato de senador. O que é ética para você pode não ser para mim. A ética é uma coisa muito subjetiva, muito abstrata. Ela não é relevante”. Depois emitiu nota se emendando. Só o beneficiário de uma dupla imoralidade (suplência e nepotismo) pode dizer algo desse tipo. O senador revelou não ter noção nenhuma do que é a ética na vida humana, muito menos na vida pública. Os protestos de junho não podem parar! Que se entende por Ética? Todos os seres humanos, os animais e a natureza, ou seja, tudo que está na nossa “ilha” planetária (que não é a mesma do Robinson Crusoé) deve ser tratado com respeito. Os seres humanos devem ser considerados como semelhantes (como outros caminhantes). A regra de ouro da ética é a seguinte: jamais podemos fazer com os outros o que gostaríamos que não fizessem conosco. A Ética (que deve ser resgatada nos escombros da injusta sociedade atual, globalizada e especulativa), desde o instante que reconhecemos a necessidade de conviver com outros caminhantes (semelhantes), se transforma da “arte de viver bem” em “arte de viver bem humanamente” (Savater). O que significa isso? O seguinte: temos que viver com os outros ou mesmocontra os outros (quando discordamos de uma ideia), porém, semprehumanamente (ou seja: entre seres humanos, como diz Savater). O que transforma nossa vida em vida humana é que, não estando nós numa ilha isolada, como Robinson Crusoé, somos todos compelidos a passar todos os dias da nossa vida em companhia dos outros seres humanos, interagindo com eles, falando com eles, negociando com eles, amando-os, construindo ou desistindo de sonhos ou castelos, fazendo projetos, jogando, discutindo, concordando, discordando etc. Esse é o jogo da vida, ou não existe vida! Mas temos que distinguir a vida pública da vida privada. É a moral que rege o jogo da vida pública? Sim. Toda época tem sua estrutura moral (Aranguren), ou seja, suas pautas de conduta, seus ideais, seus fins, seus valores, regidos pela ética. A vida, ainda que marcada por debates e embates, não pode se desconectar das margens morais, sob pena de se embrenhar para o mundo do mau-caratismo, da malandragem, da desonestidade, enfim, da falta de ética. Em nenhum instante da nossa vida, especialmente quando participamos da vida política da cidade ou do país (da “polis” ou da res publica), podemos admitir a mancha ou a mácula do mau-caratismo. Os costumes, a tradição ou as ordens externas nos obrigam? Não. Por força da ética, não somos obrigados a seguir os costumes imorais enraizados em algumas práticas econômico-financeiras, muito menos na tradição política do nosso País. Existe alguma força sobrenatural que leva a maioria dos agentes econômico-financeiros e públicos (há exceções, claro) a se comportarem (quase sempre) de maneira irregular? Não. Todas as vezes que nos deparamos com uma tradição ou costume ou com uma ordem externa, devemos prestar atenção no seu conteúdo e na sua natureza. A Ética diz respeito ao foro interno da nossa vontade (e liberdade). Somos livres (em geral) para decidir pelo bem ou pelo mal (pelo certo ou pelo errado). Podemos dizer “sim” ou “não”. O preço que pagamos por contarmos com essa liberdade reside na responsabilidade. Pelos atos que praticamos devemos ser sempre responsáveis. E nesse caso nem a ordem externa nem a tradição nos absolve. A ética nos vincula para toda a vida? Sim. Nos concretos atos da nossa vida, quando em jogo está o (superior) plano ético, você não tem que perguntar a ninguém o que deve ser feito: pergunte a você mesmo. E mais, não vale ser ético somente durante um trecho da sua vida. Por quê? Como bem disse, com toda sabedoria e sensatez, a ministra do STF, Cármen Lúcia: “A vida é igual a uma estrada. Não adianta você dizer que foi na reta certinho, mil quilômetros, e depois você entra na contramão e pega alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira. Independente do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a estrada. Se você estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser mais fácil. Isso no serviço público muito mais”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Alagoas, Espírito Santo e Paraíba: estados mais violentos em 2011

Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do Datasus – Ministério da Saúde, apontou que, em 2011, houve uma leve queda no número de homicídios no Brasil, mantendo, no entanto, a estabilidade da taxa de mortes. Em 2010, foram registradas 52.260 mortes por homicídio em todo o país; em 2011 essa taxa foi de 52.198, uma leve queda de 0,12%. A média de crescimento anual de 2001 a 2011 foi de 1,34%. No mesmo período, houve uma evolução de 8,8%. Até 2008 a taxa de homicídios vinha decrescendo, a partir desse momento começou a haver um novo crescimento até 2011, ano em que permaneceu estável. Foram registradas 27,1 mortes a cada 100.000 habitantes, com uma estimativa populacional de 192.379.287 habitantes, segundo o IBGE. Alagoas foi o estado que registrou o maior número de mortes, foram registradas 71,4 mortes para cada grupo de 100.000 habitantes. Em termos absolutos, o número de homicídios chegou a 2.244. Em 2010, essa taxa foi de 2.087 mortes, o que resultou em um aumento de 7,5% no período. O Espírito Santo foi o segundo estado que mais contabilizou mortes violentas em 2011: foram registradas 1.672 mortes. Em uma população de 3.547.055 habitantes, isso significou que 47,1 indivíduos a cada grupo de 100.000 foram mortes de forma violenta. Em 2010, o número de mortes tinha sido de 1.792, uma queda de 6,7%. A Paraíba foi responsável pelo terceiro maior número de mortes violentas. Foram registradas 1.614 mortes no ano de 2011. O que significa uma taxa de 42,6 mortes por 100.000 habitantes no estado, que teve estimada pelo IBGE em 2011 uma população de 3.791.315 habitantes. Entre 2010 e 2011 houve um crescimento de 10,9%, já que no ano anterior, o número de mortes tinha sido de 1.455. No Brasil continuamos com mais de 52 mil mortes por ano. Isso significa uma morte a cada 9 minutos. Essa insegurança criminal também está presente nos movimentos de protestos, que se descarrilharam dos R$ 0,20 centavos da passagem dos ônibus.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Bônus para reduzir criminalidade: missão quase impossível

De duas maneiras o Estado “combate” a criminalidade e a violência: (a) por meio da repressão e (b) por meio de prevenção. No Estado de São Paulo a opção, historicamente, sempre foi pela repressão. Aliás, essa é uma tendência nacional. Está decretado o abolicionismo da prevenção. De prevenção verdadeira não se fala. A população é iludida com a prevenção decorrente da repressão (da punição). Ocorre que a política puramente repressiva é extremamente limitada (veja nosso livroPopulismo penal midiático: Saraiva. 2013), porque a repressão só incide sobre pouquíssimos crimes (não mais que 3% deles são apurados e processados). Quanto aos homicídios, a taxa não passa de 8%. O Estado, falido e combalido, em razão da política econômica neoliberal e, ainda, acentuadamente escravagista, não conta com meios e recursos para atender a demanda punitivista. De vez em quando muda a lei, agravando as penas, e isso surte um efeito sedativo na população (que de engano e engano, chegou ao auto-engano). Depois de assumir que o índice de criminalidade está altíssimo (o primeiro trimestre de 2013 é o segundo mais violento em 6 anos) em São Paulo, o governo Geraldo Alckmin acaba de lançar uma medida que bonifica policiais que conseguirem reduzir o índice de violência na sua região. Chamada de “São Paulo contra o crime”, o pacote oferecerá bônus de R$ 4 mil semestrais para cada policial, mas poderá chegar a R$ 10 mil. Alckmin anunciou ainda que haverá aumento do efetivo da Polícia Civil e da Polícia Técnico-Científica. A Polícia Civil deverá ganhar cerca de 3 mil novos agentes. Já a Polícia Técnico-Científica terá um incremento de 62%. Só em 2011 e 2012 o investimento aplicado a Segurança Pública no Estado de São Paulo foi de R$ 23,5 bilhões. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, foram R$ 11,82 bilhões em 2011, ante R$ 10, 49 bilhões em 2010. E, de acordo com o Sistema de Gerenciamento Orçamentário do Estado de São Paulo (Sigeo), entre 2001 e 2005 os investimentos realizados na Polícia Militar somaram R$ 285,7 milhões, contra R$ 8,5 milhões para a Polícia Civil e R$ 1,9 milhão para a Superintendência Técnico-Científica. A política de repressão há muito tempo vem sendo colocada como o grande trunfo para a queda da criminalidade no país, recebendo altos investimentos e programas. Contudo, sua efetividade é extremamente questionável, já que apesar de diversas leis e crimes terem sido agravadas nos últimos anos (de 1940 a 2012 foram 136 reformas penais), a violência jamais parou de crescer (em 1980 tínhamos 11 mortos para cada 100 mil pessoas; em 2010 passamos para 27.4 óbitos, para 100 mil). O sistema carcerário paulista está, comprovadamente, num dos seus piores momentos. Com mais de 190.000 presos até junho de 2012, e pouco mais de 100.000 vagas, abriga quase o dobro de sua capacidade, sendo que grande parte é de presos provisórios. Os presídios contam com péssimas instalações, quase nenhum incentivo na reinserção social, como trabalho e educação, o que resulta, em boa parte das vezes, na reincidência. Apenas 22% estão exercendo algum tipo de atividade laboral dentro dos presídios e, 7% em atividades educacionais. As instalações são péssimas e não há incentivos contra a ociosidade. Enquanto países europeus, como a Holanda, estão fechando prisões (e alugando espaço para detentos estrangeiros) por falta de presos, o Brasil segue na direção contrária, construindo mais presídios em lugar de escolas em período integral, das 8 às 18h, para todas as crianças e adolescentes desde tenra idade até os 18 anos. As prisões, há mais de 200 anos, nasceram (conforme Foucault) para criarem corpos dóceis e úteis. Dóceis do ponto de vista disciplinar e úteis do ponto de vista econômico. Nem uma coisa nem outra elas conseguiram. Os que passam pela prisão saem mais embrutecidos e economicamente anulados. Os presídios brasileiros, no entanto, priorizam a animalidade, em detrimento da civilização. O que manda nos presídios é a animalização do ser humano. Ou seja: vence a barbárie, não a civilização. Fora isso, o nosso sistema judiciário, sobrecarregado, não consegue lidar com a gigantesca demanda. O estado de São Paulo conta, em 2013, de acordo com a Secretaria de Designação, com um total de 2371 magistrados, entre juízes e desembargadores. E, apesar de esse número ser o maior do Brasil, o setor não consegue solucionar o problema da demora em se julgar um determinado caso, causando lentidão e a cooperando para a superlotação e ineficiência do sistema carcerário. Diante de tantos dados que comprovam a ineficiência do sistema carcerário brasileiro, seria mesmo a melhor opção bonificar policiais, incentivando-os a alimentar um sistema que não funciona? Esse tipo de ação só ganha legitimidade porque vivemos em uma sociedade que não está em busca de justiça, e sim de vingança. Bônus para Policiais – material de leitura complementar: Algumas opiniões: Valor Econômico. Cristiane Agostine[1]. Para especialistas, a medida poderá levar à subnotificação de crimes e à maquiagem de estatísticas. Já policiais questionaram a inclusão de benefícios temporários à remuneração, em vez do aumento salarial. A falta de definições gerou dúvidas. Para o coordenador do Núcleo de Estudo da Violência da USP, professor Sérgio Adorno, é preciso ter mais clareza sobre como a política de meritocracia será executada. “Isso precisa ser muito bem explicitado. Corre-se o risco de não haver registro de casos”, disse. “É uma medida conjuntural importante, mas é preciso pensar a médio e longo prazo”. Representante dos policiais no Legislativo, o deputado estadual Major Olímpio (PDT) disse ser “muito difícil” avaliar o desempenho de policiais, já que a estrutura da corporação é muito hierarquizada. “E quem não está nas ruas, como os que fazem segurança do governador? E quem está na parte administrativa, ou na Rota, na Tropa de Choque? Como vão avaliar?”, questionou. Olímpio reclamou ainda que o piso policial “está entre os piores do país”. Para a Associação dos Oficiais da Polícia Militar de São Paulo, Alckmin deveria investir em salários maiores e não no pagamento de bônus. Folha de São Paulo. Rogério Pagnan[2]. Para Luís Sapori, ex-secretário de Segurança Pública de Minas Gerais que participou da implantação de um sistema de bônus a policiais naquele Estado, há pontos positivos e negativos na medida. Por um lado, diz, trata-se da criação de um incentivo que costuma dar bons resultados na iniciativa privada. Mas ele ressalva que a premiação por grupos pode criar rivalidade entre os policiais. “Isso pode criar um competitividade muito perniciosa e evitar até a cooperação, troca de informações”, afirmou. “O risco é a manipulação de estatísticas para atingir as metas”, disse ele, defensor de um bônus para a polícia inteira -como ocorreu em Minas. “É extremamente positivo que se comece essa cultura [de avaliação]. Precisa ter uma auditoria permanente dos dados para que homicídio não vire encontro de cadáver”, disse o sociólogo Cláudio Beato. O governo diz que haverá um acompanhamento externo permanente dos dados. A presidente da Associação dos Delegados de São Paulo, Marilda Pinheiro, questiona a iniciativa. “Vão premiar o policial para cumprir sua obrigação. Acho um absurdo. Não trabalhamos por produção”, diz. Ela também afirma temer pela maquiagem de estatísticas e defende reajuste dos salários, em vez de bônus. Exame. Amanda Previdelli[3]: O discurso agora é de que haverá um período de estudos de 18 meses antes que as metas sejam definidas. Só então serão definidos planos concretos para diminuir a violência urbana em São Paulo e qual sistema de meritocracia será aplicado. Assessoria de Imprensa e Comunicação da Secretaria da Segurança Pública[4].Uma das medidas é a celebração de um convênio com o Instituto Sou da Paz com o objetivo de elaborar um sistema de metas para as polícias paulistas, com base principalmente na redução dos indicadores criminais, em especial os relativos aos crimes de homicídio, latrocínio, roubo e furto de veículos. Além disso, o secretário e o governador anunciam que será aberta uma licitação internacional para contratar um sistema de informática que permitirá a integração dos bancos de dados das polícias Civil e Militar e dotá-los de ferramentas de inteligência para um planejamento estratégico mais eficiente. Folha de São Paulo. Marcos Augusto Gonçalves[5]. O pacote para a área de segurança anunciado na semana passada pelo governador Geraldo Alckmin faz sentido e tem boas chances de dar certo. Não se trata apenas de reforçar efetivos e premiar o trabalho policial através de um sistema de metas, ideia que despertou justificadas apreensões. Na realidade, a proposta lançada por Alckmin e pelo secretário Fernando Grella Vieira é mais abrangente e envolve setores relevantes da sociedade – empresários, organizações não governamentais, especialistas e pesquisadores ligados à universidade. O objetivo é reformular conceitos de gestão, redefinir prioridades, aperfeiçoar indicadores e traçar estratégias para mudar a qualidade desse serviço público essencial, que no Brasil costuma ser tratado como guerra. O principal instrumento para dar início à mudança é o convênio firmado entre o governo e o Instituto Sou da Paz, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) com reconhecidos trabalhos prestados na área. Rádio Bandeirantes. Da Redação[6]. A estratégia de beneficiar os policiais com bônus faz parte de um plano de metas que, segundo o secretário de Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, terão como objetivo não só reduzir a criminalidade, como também aproximar as polícias que atuam em São Paulo. O pacote também prevê o aumento no efetivo da Polícia Civil (com a adesão de cerca de 3 mil novos agentes) e da Polícia Técnico-Científica (1,6 mil novos profissionais). As contratações serão feitas por meio de nomeações e concursos aprovados pelo governo. Além disso, o DEIC (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado) passará a apurar casos de latrocínio – roubo seguido de morte. O DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), que até então cuidava desse tipo de crime, passará a apurar casos de chacinas ocorridos em São Paulo. Extra – Globo.com. Djalma Oliveira e Andrea Machado[7]. Defendido pelo governo e criticado por sindicalistas, o pagamento de gratificações a policiais civis e militares é uma política adotada há, pelo menos, 17 anos no Estado do Rio. O governo Marcello Alencar criou, em 1995, a premiação por pecúnia para quem participava de grandes operações. Ela acabou após três anos de polêmica, já que o número de homicídios subiu no estado, o que fez o bônus ser apelidado de “gratificação faroeste”. Observatório de Favelas. Noticias e Análises[8]. Muitas foram às notícias e a comoção pública acerca das Chacinas da Baixada, de Vigário Geral, de Acari e da Candelária, que esta semana, completa 18 anos. Muitos destes crimes foram cometidos com o aval do Estado. No início de seu mandato, em 1995, Marcelo Alencar criou, por decreto, uma premiação em dinheiro para policiais por atos “de bravura”. A medida, que ficou conhecida como “gratificação faroeste”, estimulou mortes em supostos confrontos, como apontou o estudo Letalidade da Ação Policial no Rio, do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Muitas foram as críticas e o decreto foi revogado, mas as mortes continuaram num patamar inaceitável. Em 2009 foram 1.048 registros de deste crime, ante 855 em 2010. Só no primeiro trimestre de 2011, já foram registrados 168 homicídios por parte de agentes do Estado. Uma média de 56 mortos por mês. Em São Paulo, guardadas as devidas proporções, a média mensal é de 20 mortos a menos: 36, ainda alta. Aliada a esta situação, já critica, soma-se o baixíssimo índice de elucidação de crimes: 8%. Vale ressaltar ainda que dentro deste índice estão os crimes elucidados “na hora”, com prisões flagrantes, e que não exigiram os esforços tradicionais de uma investigação que comece do zero. Continue lendo o artigo e veja a bibliografia em: www.atualidadesdodireito.com.br/lfg

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Brasil e a governança do caos (2)

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou noblogdolfg.com.br Qual é o melhor modelo de governança de uma nação? Berggruen e Gardels (Governança inteligente para o século XXI, 2013, p. 50 e ss.) sugerem a combinação entre umademocracia esclarecida [criticam duramente o atual modelo democrático liberal com economia de mercado livre dos EUA] e a meritocracia que presta contas [a China é governada pela meritocracia, não pela democracia – não existem eleições -, mas falha na prestação de contas, ou seja, o regime é extremamente autoritário e fechado]. Os autores citados chamam a combinação das duas de governança inteligente, que se caracteriza pela transferência de poder assim como pela participação e divisão da tomada de decisões (p. 50). Em relação aos EUA a sugestão dos autores, que pode ter valia para a realidade brasileira, é a (parcial) despolitização da democracia (não o fim da democracia), ou seja, criação de um Conselho de Pessoas reconhecidamente Capacitadas (que comporiam uma espécie de Câmara Alta, norteada pela meritocracia), que revisaria toda legislação aprovada pela Câmara Baixa (eleita diretamente pelo povo) e ainda teria influência nos principais assuntos relacionados com a governança do país. Tanto nos EUA como no Brasil necessitaríamos de uma espécie de democracia que fosse regida por projetos de longo prazo e de interesse geral (os partidos políticos têm sido incapazes desse desafio) e que conseguisse se afastar dos populismos de curto prazo (exigências populares e midiáticas que postulam soluções imediatas e urgentes para os problemas sociais graves do país), que constituem uma “doença dos sistemas eleitorais atuais” (Ferrajoli), onde o eleito, enganando a população, se compromete com irresponsáveis políticas de curto ou curtíssimo prazo, sem tocar no âmago do problema enfocado. A velha democracia representativa (ou liberal) está perdendo, a cada dia, o seu vigor, diante das novas configurações democráticas: democracia de opinião (consumista) e democracia vigilante (redes sociais). Democracia representativa ou liberal (veja a Wikipédia, com observações minhas entre colchetes) equivale à democracia por eleição. Por votação (“cada cabeça, um voto”) o eleito representa [formalmente] o povo que o elegeu. Ele atua, fala e decide “em nome do povo” [nossa constiuição federal, no parágrafo único do seu artigo 1 , diz:”Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Nesta regra foram contempladas duas formas de democracia: a representativa e a direta]. O conceito moderno de democracia (veja a Wikipédia, com observações minhas entre colchetes) “é dominado pela forma de democracia eleitoral e plebiscitária majoritária no Ocidente, a que chamamos democracia liberal ou democracia representativa“. Apesar de sua aceitação generalizada – sobretudo no pós-Guerra Fria [Francis Fukuyama, diante da derrota do comunismo e da queda do muro de Berlim, declarou o “fim da história”, em 1989, enaltecendo o triunfo da democracia liberal do Ocidente; a história, no entanto, não tem fim e o modelo democrático liberal vem apresentando muitos defeitos] – a democracia liberal é apenas uma das formas de representação balanceada de interesses, compreendida num conceito global de isonomia [essa isonomia é puramente formal; a representação nem sempre é dos interesses gerais, como imaginava Rousseau; o poder econômico compromete normalmente o mandato do eleito; grupos de pressão possuem grande poder de veto etc.]. A moderna noção de democracia (Wikipédia) se desenvolveu durante todo o século XIX[daí o seu nome de liberal, porque coincide com o nascimento do Estado liberal burguês] e se firmou no século XX e está ligada ao ideal de participação popular, que remonta aos gregos, mas que se enriqueceu com as contribuções da Revolução Francesa [de 1789], do Governo Representativo Liberal inglês e, finalmente, da Revolução Americana, que foram experiências de libertação do Homem [do ser humano] e afirmaram a sua autonomia [essa autonomia, no entanto, é mais formal que substancial]. Das democracias de opinião (consumista) e vigilante (redes sociais) cuidaremos em outras postagens.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Clientelismo

O Globo de 8/9/13, p. 10, informa que José Dirceu, quando ministro da Casa Civil, teria feito gestões administrativas em favor da Vale do Rio Doce e da empresa Prensas Schuler, para beneficiá-las junto ao CADE e à Receita Federal, respectivamente. Ele negou qualquer tipo de favorecimento. A notícia não estarrece porque isso, lamentavelmente, ocorre, no Brasil, desde 1822, quando nasceu o (falso) Estado brasileiro. A origem do malfeito reside no parasitismo (que significa sugar indevidamente alguém ou o Estado, com a finalidade de enriquecimento ou obtenção de alguma vantagem). O parasitismo é um verdadeiro câncer econômico, social e moral. Uma das mais graves doenças do nosso país. Pior: ele pariu na nossa cultua um mundo de filhotes como o clientelismo, o patrimonialismo, o nepotismo, o fisiologismo etc. No site da InfoEscola, Emerson Santiago faz a distinção entre o clientelismo eleitoral clássico (político que atende o pedido do eleitor para alcançar o voto dele; uma variável é o coronelismo) e o clientelismo moderno, que objetiva a conquista de “favores” do Estado. Na visão mais contemporânea, o clientelismo se traduz em um tipo de relação entre atores políticos, envolvendo a concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, permanecendo a sua forma básica, que envolve a negociação do voto. “Os intermediários dos favores, prestados às custas dos cofres públicos, são os chamados clientelistas, despachantes de luxo ou ainda traficantes de influências. O grande objetivo dos intermediários é o voto do beneficiado ou dinheiro, componentes básicos do que identificamos como corrupção. A partir deste ponto de vista, temos que o clientelismo é a porta da corrupção política, sendo o sistema que dá origem à maioria esmagadora das irregularidades políticas e institucionais, assim como proporciona o mal uso da “máquina administrativa”, que passa a ser direcionada apenas a finalidades estritamente perversas, sendo os prejudicados, no final, a grande maioria dos cidadãos que desejam seguir cumprindo com seus deveres”. Sempre que os “favores” alcançados forem indevidos (injustos e/ou imorais), estamos diante do parasitismo, que é o grande mal de origem do Brasil. Seu combate se faz pela educação de qualidade para todos.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Brasil e seus mistérios: quem matou PC Farias?

Na bandeira brasileira o retângulo verde simboliza nossas matas e riquezas florestais, o losango amarelo traduz a ideia de que possuímos ouro (hoje muito menos que antigamente), o círculo azul estrelado é o nosso céu abençoado por Deus e a faixa branca simbolizaria o que imaginamos que somos: um povo ordeiro em progresso, bom, pacífico e conciliador. São essas as representações que criamos para nós mesmos. Mas se a bandeira brasileira fosse retratar o Brasil do século XXI, duas outras faixas teríamos que lhe agregar: uma vermelha, para simbolizar o sangue jorrado com as quase 100 mil mortes anuais, entre assassinatos intencionais e acidentes de carro, e outra preta, que representaria o luto de milhares de famílias cujos entes queridos desapareceram abrupta e antecipadamente. O mais grave é que a população brasileira não está sendo informada que tudo isso vai piorar bastante nos próximos anos, em proporção estarrecedora: em 1980 tínhamos 11 mortos para cada 100 mil pessoas, contra 27,4 óbitos em 2010. No lapso de 30 anos os assassinatos intencionais quase triplicaram.São inúmeros os fatores responsáveis por essa tragédia. O primeiro diz respeito ao modelo capitalista global e selvagem vigente, que nunca conseguirá jamais integrar (na distribuição das suas riquezas) um terço da população do planeta: cerca de 2 bilhões de pessoas se transformaram ou estão se transformando (com o desemprego, baixos salários etc.) em lixo humano (Bauman). Situação mais delicada é dos países com forte tradição escravagista (e aristocrata), como os da América Latina, destacando-se o Brasil, que se caracteriza como uma das regiões mais desiguais e discriminatórias do mundo. O quadro se agrava sobremaneira nos países em que jagunços, capitães do mato e coronéis, incluindo-se os da política visceralmente corrupta, matam seres humanos como se estivessem eliminando moscas. Pior é saber que a polícia brasileira, terrivelmente sucateada (tanto quanto os demais serviços públicos), vem conseguindo apurar a autoria de apenas 8% desses crimes brutais. De plano, como se vê, 92% deles ficam impunes. Índice ridículo diante de outros países como EUA (quase 70% de apuração), Espanha (mais de 90%), França e Reino Unido (mais de 85%) etc. Especialmente neste campo da criminalidade impune são incontáveis os mistérios no nosso país. Se os jurados reconheceram que PC Farias e sua namorada Suzana foram assassinados, rejeitando a versão de que ela o teria matado e depois se suicidado, resta o enigma (na linha daquela novela que perguntava quem matou Odete Roitman) sobre quem mandou exterminar PC Farias e sua namorada? Quem os executou, sem que os guardas tivessem notado? Houve queima de (mais um) arquivo? Quem derrubou aquele fatídico armário na cara do Roberto Jeferson, logo após ele ter embolsado alguns milhões de reais e denunciado o caso mensalão, que enlameou gente graúda do PT, marqueteiros, banqueiros etc.? Foi mesmo um armário que o atingiu? Onde foi parar o corpo de Ulisses Guimarães, o pai da Constituição Cidadã? O que aconteceu com Ronaldo na copa da França, em 1998? Qual teoria usou aquele padre que queria cruzar os céus brasileiros com o auxílio de mil balões, indo parar no fundo do mar? Quem teria envenenado o ex-presidente João Goulart (se é que ele fora envenenado)? Que ocorreu com a taça furtada do tricampeonato do Brasil? Onde está o corpo de Eliza Samúdio? Onde estaria o corpo de Dana de Teffé? Onde estão os corpos dos desaparecidos do Araguaia? Por que todos os autores da morte da menina Araceli não foram punidos? … mistérios, enigmas.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Corrupção na educação e a dialética da malandragem no Brasil

A corrupção é fonte de ganância e de ignorância? Sim. Dos 180 municípios fiscalizados pela Corregedoria Geral da União (entre 2011 e 2012), 73,7% praticaram algum tipo de corrupção ou de desvio no uso dos recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação) (O Globo de 01.08.13, p. 3). A danosidade da corrupção, nesse caso, tem tudo a ver com a ignorância a que são “condenadas” todas as crianças que recebem a péssima educação ministrada nas escolas públicas (por falta de estrutura adequada, metodologia correta, estímulo ao professor, que nem sequer tem condições de ser professor como profissão etc.). Com isso o aluno(a) não aprende a pensar e sem pensar ele(a) não desenvolve sua cidadania consciente, por falta de emancipação (depois passa o dia todo, inclusive na internet, fazendo mau uso da sua espontânea vulgaridade). O Brasil perde porque não prepara mão de obra adequada para o seu crescimento. Tudo isso se passa nos nossos olhos e nós não estamos fiscalizando o uso das verbas públicas dentro de uma democracia digital vigilante (que precisamos implantar, urgentemente, no Brasil). O uso da verba pública é fiscalizado? Em grande medida, não. Em 58% dos Conselhos de Acompanhamento do Fundeb (Fundo da Educação) visitados, os conselheiros não tinham recebido qualquer tipo de capacitação. Ou seja: fiscais que não fiscalizam. Conselheiros que não vigiam. Conselhos de fachada. Alguns mecanismos de controle já estão criados na lei (como se vê). Consoante a forma analógica, porém existem. Mas isso, no final, muitas vezes, não passa de um órgão fantasma. A população, na democracia direta, deve ser a primeira a querer fiscalizar o bom emprego da verba pública (é o que queremos que aconteça no Fórum Cidadão, que é a plataforma da democracia digital, que deve ser aprovada o quanto antes pelo legislador). O lado vigilante da democracia direta ainda é incipiente no nosso País. É chegado o momento, depois dos protestos de junho, de repensar e repaginar o Brasil, com o propósito de eliminar das suas entranhas o Brasilquistão que existe dentro dele. Para isso temos que lutar diuturnamente contra seus cinco pilares: (a) ineficientismo do Estado (esse é o lado ruim do Estado); (b) sistema político atrasado e corrupto; (c) dialética da malandragem (Antonio Candido); (d)apartheid (discriminação em razão da divisão de classes) e (d) guerra civil (violência para manter o sistema discriminatório). Poderíamos traduzir em números a má gestão da verba pública na educação? Sim. Das 180 cidades fiscalizadas entre 2011 e 2012, 73,7% têm problemas de direcionamento e simulação de licitações; 69,3% fizeram gastos incompatíveis com o objetivo do Fundo; 25% fizeram contratos irregulares; 32,2% fizeram movimentação de dinheiro fora da conta específica (O Globo de 01.08.13, p. 3). A Polícia Federal têm feito várias operações nessa área? Sim (operações Alien, Geleira, Tabanga etc.). E o resultado? Pífio, pelo menos em termos de recuperação do dinheiro subtraído. Por quê? Por uma série de fatores, mas, sobretudo, em razão da cultura da malandragem, que é generalizada. Ela faz parte da nossa formação história (disse J. E. Martins Cardozo), que “cria a ambiência para esses atos, sem uma reflexão profunda”. Quando tratamos um assunto sério de forma superficial, é evidente que a solução terá essa mesma natureza. De onde vem a “dialética da malandragem”? Antonio Candido (Revista do Instituto de estudos brasileiros, n. 8, SP, USP, 1970, p. 67-89) vislumbrou no romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, o que ele chamou de “dialética da malandragem”, que retrataria a dinâmica dos costumes da sociedade brasileira no começo do século XVIII. Leonardo (personagem do livro) seria o “primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira” (que, depois, foi elevado à categoria de símbolo sem caráter por Mário de Andrade, no Macunanaíma). O malandro (municipal, estadual ou federal) é um aventureiro, astuto e quase folclórico, ao mesmo tempo, que pratica a astúcia pelo gosto da astúcia, em proveito próprio ou para solucionar um problema, mas sempre lesando terceiros. O que caracteriza fundamentalmente a dialética da malandragem é a díade (o par) da ordem e da desordem, que retrataria não somente a sociedade descrita no livro como a atual (se prestarmos bem atenção). Por todos os lados e em todas as partes há sempre, na dinâmica da ambiência histórica brasileira, uma ordem comunicando-se com a desordem. É o tipo de sociedade que faz o bem e também o mal, o certo e o errado, que é egoísta e também altruísta, que é honesta e desonesta, que faz algo admirável ao lado de atos deploráveis etc. A tese é a seguinte: as díades (os pares) marcariam o caráter da sociedade brasileira (daí a generalização da ordem e também da malandragem, da corrupção). Trata-se de um mundo pendular entre o lítico e o ilícito? Sim. Se correta a tese dualista da malandragem, deveríamos afirmar que a sociedade brasileira (pelo menos vários segmentos dela) vive zanzando entre dois hemisférios, o positivo (da ordem) e o negativo (da desordem). Voltando a Antonio Candido: a dinâmica do livro citado (Memórias de um sargento de milícias) pressupõe uma gangorra dos dois polos, que transita da ordem estabelecida às condutas transgressivas. “Tutto nel mondo è burla” seria a expressão legítima desse mundo pendular, diáfano, cujas estruturas morais e éticas habitariam um lugar bem distante de toda rigidez. Vive-se ao sabor do balanceio entre ordem e desordem. Trata-se de uma sociedade “na qual poucos trabalham, enquanto outros flutuam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo. Uma organização fissurada pela anomia, onde se transita entre o lícito e o ilícito, sem muitas vezes podermos dizer o que é um e o que é outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX” [e, com certeza, do Brasilquistãoatual].

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Crise de confiança abala o país

O mundo e o Brasil vivem hoje várias crises (crise do capitalismo neoliberal especulativo, crise do Estado-nação, crise ética e cultural, crise de representatividade política, crise do Estado de direito), mas nenhuma supera a crise de confiança, que constitui a causa primordial das frustrações, insatisfações, iras e indignações populares. Não se confia mais no Estado, nem no modelo capitalista praticado atualmente (em razão das suas injustiças e dos seus desvios), nem nas instituições (políticas, jurídicas, educativas, da saúde etc.). Pesquisa nacional do Ibope, chamada Índice de Confiança Social, feita anualmente desde 2009 e divulgada em 01.08.13 (O Estado de S. Paulo de 02.08.13, p. A8) revela que todas as 18 instituições pesquisadas, ineditamente, perderam (em maior ou menor grau) a confiança dos brasileiros. A média ficou em 47 pontos (contra 54, do ano de 2012, e 58 em 2009). A confiança na presidente da República foi a que mais caiu (perdeu 21 pontos em um ano – baixou de 63 para 42, ou seja, menos 33%), mas nenhuma escapou da insatisfação massiva externada nos protestos de junho. O Congresso e os partidos políticos são as instituições menos confiáveis do País (com 29 e 25 pontos, respectivamente), desde 2009. Bombeiros ficaram com 77 pontos (queda de 7%), Igrejas com 66 pontos (queda de 7%), Governo Municipal com 41 pontos (queda de 9%) etc. Em julho de 2013 foram registradas crise de confiança no governo e na economia (pesquisa da CNT/MDA), queda na confiança do empresário industrial (pesquisa da CNI) e queda na expectativa dos novos empregos (aliás, em junho, o desemprego atingiu a marca de 6% e isso se deve ao desânimo dos empresários para abrir ou ampliar negócios e o consequente temor por menos vagas). A sensação é de que a “era de ouro” do emprego no Brasil está correndo sério risco, seja porque os EUA estão se recuperando, seja porque a China está com seu crescimento estacionado (o que significa menos exportações dos nossos produtos, das comodities). Ambiente externo menos favorável mais os protestos deixam os agentes econômicos mais cautelosos (para não dizer parados, à espera do que virá amanhã). Não falta capital para os investimos privados e ampliação dos negócios, sim, confiança. Em julho o Índice de Confiança da Indústria foi 3,6% mais baixo que junho (FGV – O Estado de S. Paulo de 23.07.13, p. A3). O Índice de Confiança do Consumidor caiu (em julho) 4,1% (segundo a FGV). Grande parcela da população considera que as principais instituições do país são, ademais, corruptas ou muito corruptas: em primeiro lugar vêm os partidos políticos, que são corruptos ou muito corruptos para 81% dos brasileiros, conforme pesquisa Ibope divulgada em 08.07.13, pela Transparência Internacional. Quatro em cada cinco pessoas não acreditam na representação política do País (O Estado de S. Paulo de 09.07.13, p. A4). O Congresso é corrupto ou muito corrupto para 72% dos entrevistados; Polícia: para 70% (é corrupta ou muito corrupta); Sistema de Saúde: para 55%; Judiciário: para 50%; Funcionalismo público: para 46%; Imprensa: para 38%; ONGs: para 35%; Militares: para 30%. A consequência drástica desse grave quadro de desconfiança é a seguinte: em primeiro lugar, rompe-se a coesão social. A fratura gerada pela desconfiança faz desmoronar o contrato social, quebrando os vínculos associativos, dando ao indivíduo a sensação de isolamento, de impotência, o que lhe conduz a lutar pela sua sobrevivência (quando tudo está se desmoronando, especialmente a esperança num futuro melhor, só resta ao cidadão acuado a luta individual pela sobrevivência). De outro lado, é de se presumir que a falta de confiança (no Brasil) possa afetar, no campo econômico, em primeiríssima mão, os investidores estrangeiros (que pensarão duas vezes antes de jogarem mais dinheiro no nosso país), assim como os turistas (em 2012 o Brasil, com 65 bilhões de dólares investidos, ficou em quarto lugar em volume de investimentos estrangeiros, atrás dos EUA – 168 bilhões -, China – 121 bilhões – e Hong Kong – 75 bilhões – Carta Capital de 03.07.13, p. 51). Um outro efeito da crise de confiança diz respeito aos votos nulo e branco. Eles podem chegar a mais de 15% (como fruto da desilusão) (veja a 114ª pesquisa da CNT/MDA, feita em julho de 2013). Todos os que perderem a esperança no futuro do País tendem a anular o voto. Tudo o que acaba de ser evidenciado vai demandar um choque de gestão eficaz dos governantes (ainda que seja uma gestão de emergências), pois do contrário perderão o poder, que jamais se sustenta sem boa reputação, sem gerar confiança na população, nos investidores, nos turistas etc.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Cultura política, ódio e baixaria na internet

R. J. Ribeiro (Valor 30/9/13, p. A8) manifesta desapontamento com nossa cultura política. Com razão. As redes sociais estão, até agora, cumprindo um ridículo e inócuo papel. Ideias e projetos para a sociedade se definham e se perdem em debates estéreis, polarizados e partidarizados (Fla-Flu irracional). Apesar do desencanto, não há como não imaginar a internet como a nova ágora (praça pública, segundo os gregos) onde possam ser discutidas e debatidas as grandes questões políticas e administrativas da nação (a isso estou chamando de Democracia Direta Digital no livro Por que estamos indignados?, Saraiva, que sai dia 4/10/13). É o único caminho que se mostra viável para fortalecer nossa cambaleante e corrupta democracia. Qual o problema? Odiamos discutir nossas ideias. Odiamos expor nossas ignorâncias. Preferimos morrer com elas a ceder um milímetro. Herança do nosso autoritarismo. Temos medo de que o debate sirva de palco para o ignorantismo, na sua forma de exploração da ignorância alheia (o mais astuto pode manipular o ignorante). Demagogias sofistas. Ainda, para nós, o debate público não passa de manipulação. Em geral, é mesmo. Mas temos que mudar. Acreditando que há muitos brasileiros adultos. Um Fórum Cidadão de debates não é uma televisão de entretenimento (veículo de demagogia e de manipulação). Não temos formação cultural para o debate (é verdade). Mas isso se aprende. Custa, mas aprende. O que não se pode é admitir que essa ausência seja preenchida pelo ódio espumante. Papel ridículo esse, às vezes cumprido também pelo brasileiro. O problema da nossa cultura política, conclui R. J. Ribeiro (Valor 30/9/13, p. A8), somos nós mesmos, que não estamos fazendo nossa parte. Sua proposta: “homens e mulheres de boa vontade, empenhados em melhorar nosso quadro político, deveriam assegurar um debate de qualidade. Isto não é abrir mão de convicções políticas, mas é reconhecer que há gente decente dos dois grandes lados de nosso espectro partidário, e que a vitória esmagadora de uma parte não é possível, nem desejável. Isso exige evitar palavras grosseiras como petralha e tucanalha, que desqualificam em bloco muitas pessoas boas que fazem trabalho bom (…) Desde 1985 estamos construindo uma democracia sustentável (…) que ela não fique só nas instituições, que se enraíze nos nossos corações”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Cura gay e a intolerância religiosa

Propostas pouco respeitosas às crenças das pessoas ou à diversidade, em pleno século XXI, como é o caso da “cura gay” da homossexualidade, deveriam ser sumariamente arquivadas (em razão da sua mais absoluta falta de consistência científica). O deputado João Campos (PSDB-GO), autor do texto arquivado, pediu sua retirada da pauta; mas o projeto pode ser reapresentado no ano seguinte. De que maneira devemos enfrentar questões polêmicas como essa? Martha C. Nussbaum (La nueva intolerância religiosa) invoca o auxílio de Sócrates, na antiga Atenas. A cidade de Atenas foi uma grande democracia, porém seu povo, muitas vezes, caia no canto dos demagogos irresponsáveis. Eram frequentes os erros humanos fundados na insensatez, no peso da tradição e na parcialidade egoísta. Foi nesse contexto de falácias coexistentes com as verdades que o filósofo Sócrates desafiou a sociedade ateniense para levar uma “vida examinada”. E o que significava (e significa ainda hoje) isso? O seguinte: que devemos criar uma democracia que seja reflexiva, não impetuosa (voluntarista, vulgar, impensada). Devemos ser mais deliberativos e menos irreflexivos, sobretudo nas questões que dão ensejo a uma confrontação mútua. Toda pessoa, para não ser idiota, deve participar da vida política, mas buscando razões para seus posicionamentos não meras afirmações; temos que ser coerentes em nossas opiniões. Nunca podemos nos considerar exceção aos argumentos que queremos que tenham valor para os outros. E o contrário também é verdadeiro: nunca devemos excetuar os outros em relação aos argumentos que nós achamos válidos para nós mesmos. Se a liberdade de crença é sagrada e todos nós temos que respeitá-la, indefectivelmente, o que vale para ela tem que valer para as crenças e formas de vida das outras pessoas. Ainda consoante Martha C. Nussbaum (La nueva intolerancia religiosa), para evitar a nefasta tendência de encurtar nossa visão sobre as coisas, sobretudo quando nos concentramos em nós mesmos, esquecendo-se do mundo, necessitamos assumir, antes de tudo, o compromisso socrático (que também é cristão e kantiano) de “examinar” as eleições que fazemos e verificar se são, ou não, egoístas e unilaterais. Não podemos nos converter em exceções privilegiadas aos princípios que queremos que sejam aplicados para todos os demais. Não podemos nunca ignorar o pleno e igual reconhecimento dos direitos de todas as pessoas, respeitando suas eleições de vida, enquanto elas não afetem interesses concretos de terceiros. Não podemos nunca dispensar o espírito interior que nos conduz à coerência, que nunca pode ser um propósito vazio. Necessitamos do espírito de progresso, de evolução, porém, antes de tudo, de boa convivência. Porque isso é civilização e não barbárie!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Donadon: síntese do Brasil que deu errado

Padre Antonio Vieira, no seu livro e Sermão do Bom Ladrão dizia: “O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (…) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administraçãoAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. – Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam” [eu agregaria: e se apoiam, e se absolvem, e se confraternizam, e se degradam juntos, e não se envergonham, e se horrorizam eticamente, e se igualam no parasitismo, se rivalizam na baixa estatura moral, se lixam para a população…]. Anexo 5 para a carceragem da Câmara dos Deputados Donadon retrata com perfeição uma das possíveis sínteses do Brasil parasitário, que é o Brasil que deu errado. Dizem que o problema (da preservação imoral do seu mandato) foi a votação secreta. Na verdade, o problema é muito mais profundo: é a falta de ética! Dizem que tudo foi engendrado pelo baixo clero: em matéria de moralidade está difícil distinguir (no Congresso Nacional brasileiro) o baixo do alto clero. Na hora da malandragem (“que rouba as cidades e os reinos”) todos se unem (salvo raras exceções). Se o Parlamento não viu quebra de decoro no comportamento corrupto e imoral de Donadon é porque o seu critério de decoro conta com elasticidade infinita. Para ser coerente a Câmara dos Deputados deveria construir o anexo 5 para a carceragem da Casa e aí pelos menos não gastaríamos mais com o transporte do parlamentar corrupto já condenado até o local do seu “honroso trabalho”. Parasitismo: um dos males de origem do Brasil Donadon não é apenas o primeiro deputado (depois da redemocratização) que se transformou em preso, sim, o primeiro preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos, por força do art. 15, III, da CF, que continua sendo deputado. Vergonha nacional e internacional! Com os direitos políticos suspensos (em razão de condenação criminal definitiva) não pode votar nem ser votado, mas continua sendo deputado federal! Incongruência absoluta! É a culminância da vulgaridade que marca o homo democraticus do século XXI, a confirmar que o nosso mal de origem, o parasitismo, continua mais presente do que nunca: “O Brasil nasceu sob o signo do arbítrio e foi destinado exclusivamente ao saque de suas riquezas: primeiro do pau-brasil, depois do açúcar, depois do café, depois dos seus minerais, da sua agricultura etc.: tudo isso feito pelos índios ou escravos, os parasitados, sem nenhum custo para o colonizador parasitário” (F. de Oliveira). O saque continua até hoje, sobretudo, do erário público, tendo como protagonistas principais os políticos mancomunados com potentes agentes econômico-financeiros. Pelo fim do voto secreto A solução para o voto secreto (que permitiu a preservação do mandato de Donadon) passa por dois caminhos, que devem ser conciliados: (a) voto aberto no Legislativo (deve ser a regra) e (b) perda automática do mandato em caso de condenação em alguns crimes. As duas coisas devem ser adotadas conjuntamente, ou seja: deve ser acolhida a proposta de Jarbas Vasconcelos que está tramitando no Senado Federal (onde Renan já foi salvo duas vezes em razão do voto secreto): réu condenado definitivamente em alguns crimes (especialmente quando se trata de corrupção) perde automaticamente o mandato e pronto! Fora desses casos (como seria só a falta de decoro, por exemplo), o voto deve ser aberto (para não ocorrer o que ocorreu com a deputada flagrada recebendo dinheiro sujo e mesmo assim foi “absolvida” pela Câmara dos Deputados). Descorporativização do voto O voto aberto, de qualquer modo, não é garantia de moralidade (porque a moralidade é pessoal, não instrumental). Mas pelo menos vamos saber os nomes e apelidos dos que apoiam a malandragem ou a estupidez. Pode haver (e disso muitos parlamentares brasileiros são capazes) voto aberto, porém, totalmente imoral e aético. A elite parasita tem cara de pau suficiente para não se envergonhar quando se trata de manter o privilegiado parasitismo. De qualquer modo, saberemos quem assim procede, com o voto aberto. O problema de todos os votos dentro da Casa Legislativa é que ele continua sujeito ao corporativismo, ou seja, quem é malandro tende a acobertar a malandragem alheia (solidariedade no parasitismo criminoso ou indecoroso). É preciso, então, descorporativizar a questão da perda do mandato (diga-se de passagem, o que já é possível hoje com o uso do art. 15, III, da CF). Basta a condenação penal (naquelas situações do art. 92 do CP). Se queremos mudança, se queremos construir um novo Brasil (esquecendo a pesada herança parasitária que vem do colonialismo português), ela só pode vir com a descorporativização da perda do mandato do parlamentar corrupto. Esse é o caminho correto e definitivo. Nas demais situações, o voto seria aberto, mas acompanhado pari passu pela democracia direta digital (DDD), a ser implantada numa plataforma em rede, que deveria ser chamada de Fórum Cidadão. Democracia direta digital Se a democracia direta digital (DDD) já fosse uma realidade no nosso país, a vigilância permanente sobre os parlamentares não teria permitido tamanha desfaçatez e imoralidade, que só ocorreu porque a causa de Donadon é também a causa de muitos outros políticos, que são frutos de outras gerações de políticos desonestos, que lembram os pais, avós, bisavós, tataravós de todos os que hoje enfocam a ética como coisa abstrata e desnecessária (tal como disse o senador Lobão Filho). Todos se igualam no parasitismo, aqui vigente desde o descobrimento, em 1500, que é a raiz do clientelismo, servilismo, patrimonialismo, feudalismo, nepotismo e fisiologismo. Pena de empobrecimento Donadon, invocando sua fé em deus, orou, implorou, discursou com “emotividade” e conseguiu sensibilizar seus pares, salvando seu mandato. Mais que isso: sem restituição da roubalheira, que é coisa que ninguém fala. Devolver tudo que foi amealhado no exercício do cargo público seria a melhor solução (como já dizia o padre Antônio Vieira no seu Sermão do Bom Ladrão). Porque no Brasil o corrupto é condenado, às vezes até vai para a cadeia, mas continua rico! Seria o caso de se trocar a cadeia pela pena de empobrecimento, destinando o dinheiro e bens para a educação de qualidade da população, com escola obrigatória das 8 às 18h diariamente, até os 18 anos. Parasitismo: um dos males de origem do Brasil atrasado Donadon fez a defesa da imoralidade e encontrou eco em seus pares. Os escrúpulos foram lançados aos escombros da podridão. Nada de construir um novo país, sim, temos que defender o que se transformou em “nosso patrimônio”. E tudo é feito sem nenhum sentimento de culpa ou de vergonha, porque tudo vem de 1500, da cultura e da tradição da espoliação, da expropriação, do aventurismo, do enriquecimento rápido, em síntese, do parasitismo (que é um dos males de origem do Brasil atrasado).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Embargos vão gerar impunidade?

Como cidadão ético também estou reprovando todas as formas de corrupção parasitária no Brasil, seja do PT (mensalão, ministérios podres, ONGs parasitas etc.), seja do PSDB (mensalão, compra de parlamentares para a reeleição, fraude na concorrência do metrô de SP etc.) ou de qualquer outro partido político. De qualquer modo, o Ministro Celso de Mello, em 16/9, disse que vai admitir os embargos infringentes, mas que isso não significa necessariamente redução de pena ou de regime ou mesmo impunidade (Folha, 16/9/13). A Veja,contrariando o ministro, está dizendo que tudo vai virar impunidade. Será? A Veja assustou muita gente neste final de semana a história da total impunidade. Vamos raciocinar: a quantos anos de prisão os doze réus do mensalão foram condenados? 178 anos de cadeia. Caso sejam admitidos os embargos (como o ministro Celso de Mello está dizendo), quantos anos de pena estarão em jogo? 31 anos. O que significa 31 de 178? 17,5%. Então, 82,5% das condenações já estão garantidas e vão significar cumprimento efetivo? Sim. Isso é muito ou pouco? No campo da justiça, depende de valorações de proporcionalidade. No campo minado e contaminado dos julgamentos ideológicos e partidários existem duas correntes: petistas dizem que é muito; os adversários dizem que é muito pouco! Para iluminar o debate: se o “novo jogo processual” acontecer, vai ser discutido menos de 1/5 do total? Sim. Então, mais de 4/5 do total já vão para execução sem nenhuma dúvida? Sim. E quanto significa isso? 147 anos de prisão. Por que estou eu fazendo todas essas contas? Para mostrar que não é verdade que o caso mensalão vá ser “melado” e que “tudo” vai para a impunidade, como a mídia ideologicamente podre está dizendo e assustando todo mundo, sobretudo os que ignoram o funcionamento da Justiça e o que já aconteceu até aqui no mensalão. José Dirceu pode até escapar do regime fechado, mas não vai deixar de cumprir quase oito anos de cadeia (no mínimo). Esse total de 147 anos já é certo? Sim. Logo, é exagero falar em “total” impunidade dos poderosos no caso mensalão (a afirmação é relativamente correta em termos gerais, de Brasil). Nossa escandalosa impunidade não é, no entanto, somente dos poderosos. Também das classes baixas e médias: menos de 2% dos crimes no Brasil são punidos. O Estado brasileiro funciona mal também nesse campo e deixa 98% dos crimes impunes? Sim. É difícil saber se proporcionalmente a impunidade é maior nas classes altas ou nas classes baixas. Não temos estatísticas a respeito. Em ambas existem muitos parasitários que vivem às custas do trabalho alheio, valendo-se para isso de violência, fraude, corrupção e outras tantas formas de parasitismo. Até onde pudermos, temos que procurar nos vacinar contra as idiotices difundidas pelas mídias (tradicional e social). Todo cidadão brasileiro deveria se preocupar com a qualidade das notícias e das informações, para não se converter num idiota: essa palavra grega veio de Idiotes, que “é o sujeito que nada enxerga além dele mesmo, que julga tudo pela sua própria pequenez” (O. de Carvalho). Ninguém pode ignorar que o mundo político e midiático (mídia tradicional ou social) se apresenta hoje, em geral (há exceções honrosas), como algo repugnante. Trata-se de um mundo ideologicamente envenenado, por ideologias e pré-conceitos. A Veja, independentemente do seu posicionamento ideológico e das suas reiteradas mentiras, no entanto, está muito certa em reprovar as malandragens do PT para garantir sua governabilidade. O próprio PT, já que muitas condenações não mais serão modificadas, deveria fazer autocrítica e dizer que não pode concordar com o errado, com o malfeito. Mas ela não tem o direito de manipular de forma tão descarada a opinião pública. O tempo todo, neste final de semana, ela ficou falando em impunidade (“tecnicidade ou impunidade”, “tudo vai virar impunidade”, “a certeza da impunidade para os ricos e poderosos” etc.). Esse tipo de mídia abjeta quando não mente deslavadamente, exagera. Uma vez ou outra produz algo decente. E o que ela faz de decente (informações na área da educação, por exemplo), eu admiro. O leitor apático, que não está bem antenado, acaba acreditando nas suas idiotices e reproduzindo-as (como vários artigos de jornal reproduziram). Pura idiotice! Vamos continuar nos vacinando contra essas idiotices, porque todos temos o direito de não sermos ludibriados pela podridão midiática.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ética, dignidade e esperança manipulam mente do eleitor

O povo brasileiro quer mudanças? Sim. O termômetro da saturação do povo brasileiro chegou ao seu limite máximo (conforme a 114ª pesquisa do CNT/MDA, realizada em julho de 2013, a insatisfação com a corrupção – principal causa dos protestos – chegou a 55%; insatisfação com a qualidade dos serviços de saúde: 47,2%; insatisfação com os gastos da Copa do Mundo: 43,7% etc.). Há, na sociedade brasileira, um profundo mal-estar e, em consequência, o desejo de mudança. Aliás, o mesmo desejo de mudança que levou o PT ao poder em 2002 (apesar de todos os medos que ele representava para a sociedade financista conservadora) passou a constituir o combustível das jornadas de junho. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PSDB não o teria trocado pelo PT. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PT não estaria fazendo protestos nas ruas e nas redes sociais (contra tudo e contra todos). Quais são os desafios do PT e do PSDB para manter ou reconquistar o poder? Eles, juntamente com os seus partidos coligados, têm pela frente uma longa jornada de luta para recuperar a confiança da população (os dois devem ser citados conjuntamente porque é difícil encontrar um desmando no governo petista que não tenha ocorrido também no governo tucano ou em qualquer outro governo precedente). Um exemplo: uso indevido de aviões da FAB – por Renan, Garibaldi, Henrique Alves, Aldo Rebelo etc.-; no tempo do PSDB houve um ministro que chegou a viajar de férias com a família toda para Fernando de Noronha. O PT e o PSDB (dissidente do PMDB de Quércia) nasceram como partidos discursivamente éticos. Por isso conquistaram o poder, mas, antes, o coração e a mente do povo, que depositou confiança neles (do contrário não teriam sido eleitos). Os partidos políticos deixaram de representar a ética, a dignidade e a esperança? Desgraçadamente, sim. Seguindo, em linhas gerais a análise de Renato Janine Ribeiro (Valor Econômico de 29.07.13, p. A6) temos o seguinte: quando o PT conquistou o que Gramsci chamava de hegemonia? Quando sustentou a ética e a justiça social como bandeiras. Como explica M. Castells (Comunicação e Poder), a persuasão é fundamental. Poder só fundado na coação é débil. A manipulação das mentes é mais eficaz que massacrar os corpos. Na nossa mente está parte do poder. Nossa mente se submete à comunicação, ela recebe sinais, que ativam nossas emoções e decisões. O poder não existe sem comunicação. Ele se constrói no espaço da comunicação. Os meios de comunicação não possuem o poder, sim, são meios da conquista e do exercício do poder. Ética, dignidade e esperança são as chaves da confiança? Sim. Voltando a Renato Janine Ribeiro (Valor Econômico, de 29.07.13, p. A6): o PT acertou quando fez da questão social uma questão ética (como efetivamente é). A conquista do poder pelos espíritos (pelas mentes) é mais importante que pela vitória das armas (Gramsci). Isso fez com que PT e PSDB crescessem. Também fez que fossem perdendo forças. Os intelectuais “das mentes” deixaram o PT. O partido deixou de ser a esperança do futuro e se tornou pragmático. O partido perdeu líderes, ganhou gestores. As questões sociais deixaram de ser consideradas éticas (nisso reside um grande erro). Nunca a miséria e a pobreza podem ser desconectadas da ética. Do “País rico é país sem pobres” deveriam estar falando em “País rico é país com ética, país digno”. Ética, dignidade e esperança possuem muito mais poder de manipulação das mentes do que a pragmaticidade dos governos.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – EUA invadem a privacidade do mundo inteiro

No outono de 2013, depois das denúncias de Snowden, confirmou-se (o que todos já sabiam ou pressentiam) que os EUA fazem espionagem do mundo inteiro. Milhões de e-mails e ligações, inclusive de brasileiros, foram captados pelo Guardião do Mundo! Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA dominaram o mundo pelo prazer do consumo (economia neoliberal de mercado livre), transmitindo a mensagem de que o bem estar material de cada cidadão (transformado em consumidor) constitui a finalidade última do ser humano. Quando o consumismo chegou à exaustão, elegeu-se o medo para ancorar a sua dominação. Vivemos a era da dominação pelo medo. O medo é o fator de integração dos EUA (e, em certo sentido, do planeta). Sem população amedrontada não se exerce o domínio autoritário. Um dos meios de manutenção do medo é o massacre. Mas todo massacre (para incrementar o medo) depende da eleição de um inimigo. Na Idade Média a Igreja católica elegeu como inimigo as bruxas. Nunca se achou uma bruxa. Mas a guerra contra elas aconteceu (cerca de 100 mil mulheres foram massacradas). Nos anos 60 e 70, o inimigo dos EUA era o comunismo (marxismo). Foi derrotado (o momento espetacular ocorreu em 1989, com queda do muro de Berlim). No final dos anos 70 o inimigo passou a ser o Estado de Bem-Estar social (Wellfare State). Foi derrotado, pelo capitalismo neoliberal de mercado livre (o desemprego ou sub-emprego, instabilidade salarial, destruição da natureza etc., são expressões dessa “vitória”). Concomitantemente a essa guerra contra o Estado providência eclodiu a guerra contra as drogas (1971, Nixon). Esta nunca foi vencida (nem nunca será). Depois vêm guerra do Golfo pérsico, guerra contra o Afeganistão, guerra contra o Iraque (as armas químicas estão para Sadam Hussein como as bruxas estavam para a Inquisição católica), guerra contra a Líbia, guerra contra Bin Laden, guerra contra o terrorismo islâmico etc. Sob o pretexto de que é preciso atacar o terrorismo, as ações do Tio San se estendem por todo planeta. Com ameaças e ataques contínuos mantém-se a estratégia da submissão da cidadania por meio do medo. O direito internacional não vale para os EUA, violações constantes aos direitos humanos são ignoradas, Guantánamo e suas humilhações estão mantidas, está justificada a tortura, paraísos de ilegalidades estão espalhados pelo mundo todo. Loïc Wacquant chama isso de “Era Torturante” (quem passou por algum aeroporto internacional nos últimos anos sabe bem o que é isso: humilhação e sensação de um perigo iminente; perante seus escâneres, toda nudez nunca será castigada). Nossos pertences (cintos, sapatos, carteiras, relógios, celulares, líquidos etc.), tal como ironiza Carlos París (Ética radical, p. 150), “são portados numa bandeja como se fosse uma oferenda ao deus protetor dos ameaçados cidadãos do globo terrestre”. São truques para a manutenção do medo. Todo mundo, nos aeroportos, deve recordar que existe uma ameaça planetária. O objetivo das encenações, claro, consiste em manter a cidadania amedrontada, porque é assim que se conquista sua submissão.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Fábrica de leis a todo vapor

O Congresso Nacional, mais uma vez, comprovou o vaticínio de Ulisses Guimarães: “O que mete medo no político é o povo na rua”. A máquina de fabricação de leis entrou em operação “full time”. Do legislador pode sair coisa boa assim como coisas indecentes, demagógicas e enganadoras. Temos que estar de olho neles e no produto feito por eles (e isso se chama “democracia vigilante”, sobretudo pelas redes sociais – a maior mudança na democracia brasileira). A Câmara dos Deputados aprovou ontem o projeto de lei 5.500/2013″que destina 75% dos royalties do petróleo para a educação e os 25% restantes para a área da saúde. Correta a medida, visto que educação e saúde são, dentre outras, duas prioridades absolutas no nosso país de 513 anos de desconsideração e abandono dos integrantes das “senzalas” nessas duas áreas. Medida de justiça social acertadíssima. Já o Senado aprovou projeto (do sen. Pedro Taques-PDT-MT) que torna a corrupção, o peculato, o excesso de exação, concussão e o homicídio simples crimes hediondos (aumentando também a pena dos primeiros crimes, porém, de forma a permitir penas alternativas – pena mínima de 4 anos) (o projeto agora vai para a Câmara dos Deputados). Pode dar a sensação de que todo mundo vai para a cadeia: não é bem assim. A pena mínima de 4 anos admite penas alternativas (substitutivas). E não há dúvida que aqui os juízes vão fazer isso, porque crime cometido sem violência não é nunca hediondo por natureza (por mais repugnante que seja, como a corrupção é). Pode ser por força de lei, mas não é na realidade. Mas temos que (sensatamente) prestar atenção num detalhe importante: de 1940 a 2012 o Congresso reformou o Código Penal 136 vezes e nunca jamais nenhum crime reformado diminuiu. Nunca, jamais! Todos os crimes reformados aumentaram, porque o Estado falido somente atua em pouquíssimos casos. Pode ser que os 20 centavos representem, para o trabalhador e o estudante, algo muito mais concreto e palpável! Se você tem uma casa que não lhe agrada e você a reforma 136 vezes e continua não gostando dela, o que seria melhor: mudar de casa ou reformá-la mais uma vez? Cabe ao sensato leitor verificar se, de todas as medidas conseguidas até aqui com os protestos nas ruas, essa não seria a de eficácia mais questionável (veja nosso livroPopulismo penal midiático: Saraiva, 2013). O sen. Wellington Dias (PT-PI) disse: “Não se pode ficar só nos três ´pês´: pobre, preto e puta”. Essa trilogia hoje, dentro dos presídios, já mudou: são 5 pês: preto, pardo, pobre, puta e policial. Aliás, agora, com a prisão do deputado Natan Donadon (determinada hoje pelo STF), passaremos a 6 pês: pobre, preto, pardo, puta, policial e político. Mais um dilema (que o equilibrado leitor deve refletir): é melhor o corrupto na cadeia, mas rico (com toda bufunfa na mão, porque é assim que funciona o sistema penal brasileiro), ou fora da cadeia e pobre (pena de empobrecimento, mais proibição de participar da política etc.)? Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Homicídios estão diminuindo… nos países desenvolvidos

De acordo com artigo da The Economist (20/7/13), uma pesquisa americana mostrou que os países desenvolvidos, ao contrário do que se previa na década de 90, tiveram uma considerável (impressionante até) queda na criminalidade nos últimos anos. Segundo a publicação, na década de 1990, John Diulio, um acadêmico conservador americano, afirmou que uma nova geração de “superpredadores”, (crianças que sem nenhum respeito pela vida humana e sem sentido de futuro), iriam aterrorizar os americanos por tempo indeterminado. E ele não era o único. Muitos especialistas estavam convencidos de que o crime iria continuar crescendo. Era um momento em que o neopunitivismo (ultraliberal) estava começando a ser implantado, logo, ideologicamente, havia necessidade de colocar muito medo na sociedade (porque, como se sabe, pelo medo se domina a população). As previsões alopradas da década 90 não se confirmaram. O crime caiu vertiginosamente… nos países desenvolvidos. Dizia-se em 90 que os cidadãos “cumpridores da lei” (ou nem tanto, em razão da quantidade enorme de canalhas que cometem crimes do colarinho branco como sonegação, lavagem, fraudes em licitações, compra de congressistas etc.) retirariam-se das cidades para comunidades fechadas, patrulhados por guardas de segurança. Políticos e chefes de polícia pouco poderiam fazer, exceto barulho e tentar manipular as estatísticas. Dr. Diulio retratou-se posteriormente, junto com os pessimistas que concordaram que estavam errados. Como ele mesmo escreveu, a onda de criminalidade da América estava vindo abaixo. As cidades estavam tornando-se muito mais seguras, e o resto do mundo desenvolvido seguiu a o mesmo modelo. A publicação da revista The Economist (20/7/13) mostra que do Japão até a Estônia (neste país os homicídios caíram 70%), as propriedades e as pessoas estão mais seguras hoje do que em qualquer outro momento desde a década de 1970. Confundindo as expectativas, a recessão não interrompeu a tendência de queda. Mesmo com o debate acirrado da América sobre os atiradores, novos dados mostram que a taxa de homicídios de jovens norte-americanos vem caindo nos últimos 30 anos. Alguns crimes estão desaparecendo. Muitos diminuíram 90% (sobretudo em Nova York, Chicago e Los Angeles). Manhattan tinha 29 assassinatos para cada 100 mil pessoas. Esse número caiu para 1,5, em 2012. Na contramão dos países desenvolvidos, o Brasil (e a América Latina) continua apresentando crescimento em diversos tipos de crimes, como os homicídios, estupros, latrocínios. De acordo com levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do Datasus – Ministério da Saúde, em 2011 houve uma leve queda no número de homicídios no Brasil, mantendo a estabilidade da taxa de mortes. Em 2010, foram registradas 52.260 mortes por homicídio em todo o país e, em 2011, essa taxa foi de 52.198, uma leve queda de 0,12%, que não compensou a média de crescimento anual de 2001 a 2011, que foi de 1,34%. No mesmo período, houve uma evolução de 8,8%. Até 2008 a taxa de homicídios vinha decrescendo, a partir desse momento começou a haver um novo crescimento até 2010-2011. Foram registradas 27,1 mortes para cada 100.000 habitantes, com uma estimativa populacional de 192.379.287 habitantes, segundo o IBGE. A média europeia é de 3 mortes para cada 100 mil. Brasil, 27,1! Apesar de atingir certa estabilidade, vivemos há décadas uma epidemia de homicídios no país, com taxas superiores a 10 mortes por 100 mil habitantes, que são consideradas como epidêmicas pela ONU. O mais terrível é saber que nossa “cegueira moral” (Peter Singer) não nos permite ver essa chocante realidade, que tem origem na cultura do parasitismo, trazida para cá em 1500! *Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Menos crimes… nos países desenvolvidos

A matéria de capa da revista The Economist (20/7/13), que mostra a redução dos crimes em todos os países desenvolvidos, evidencia o quanto o parasitismo depredador, praticado pelos criminosos pobres assim como do colarinho branco, faz toda a diferença na questão da violência e da corrupção. Quanto mais parasitas tem o país, mais crimes acontecem. Porque o parasitismo depredador vive de delitos. Diante da inexistência de uma política preventiva primária (melhores condições socioeconômicas), é grande a quantidade de jovens marginalizados que ingressam no crime por falta de oportunidades ou por ser a opção mais fácil (mais parasitária). Por falta de uma política preventiva secundária, que crie obstáculos ao crime do colarinho branco (corrupção, fraude em licitações, sonegação fiscal, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, compra de congressistas etc.), é muito grande a quantidade de parasitas sociais engravatados, incluindo-se aí, evidentemente, quase toda classe política, que se dedicam ao crime (à corrupção), como estilo permanente de vida. Ganham a vida parasitando, sobretudo as tetas do governo. Conclusão: no Brasil e na América Latina todos os crimes estão aumentando. Até dezembro de 2012, segundo o InfoPen, mais de 20 mil pessoas cumpriam pena no Brasil por estupro e atentado violento ao pudor. Desses, 20.426 era do sexo masculino e 197 do sexo feminino. Isso significa 3,7% da população carcerária, ou 3752 a cada 100.000 presos. Somente de janeiro a abril de 2013, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República recebeu 46.111 denúncias, sendo 28% delas (ou seja, 12.856) para relatar a ocorrência de violência sexual. Os crimes sexuais estão tendo aumento a cada ano (especialmente no Estado de São Paulo). Milhões são gastos anualmente na construção de presídios e unidades para adolescentes em conflito com a lei, investimentos que ultrapassam de longe a construção de escolas, centros esportivos e recreativos para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. A repressão tem mais atenção que a prevenção primária. Segundo o IPEA, estima-se que os gastos com segurança e com a violência no Brasil girem em torno de R$ 200 bilhões a cada ano para suprir os custos exigidos ao país pela escalada da criminalidade. Algo em torno de 5% de toda a riqueza gerada internamente. Um cálculo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que somente o segmento segurança representou quase R$ 50 bilhões em despesas em 2010, enquanto em 2003, significava menos da metade deste valor, R$ 22,6 bilhões. O problema é que grande parte desse investimento é destinado a ações de punição, como por exemplo, campanhas de bônus para policias que prendem mais. Falta polícia técnica para solucionar os crimes, juízes e tribunais para que os milhares de processos parados possam ser julgados, motivo pelo qual quase 40% da população carcerária brasileira é de presos provisórios, causando superlotação e condições precárias de vida para esses presos. Dentro dos presídios, são poucos os que exercem alguma atividade laboral ou educacional, dificultando sua reinserção na sociedade ao final da pena. Não há políticas eficientes no que tange as drogas, e milhares de usuários são presos por porte de drogas, quando poderiam estar reabilitados socialmente, se houvessem mais programas de reabilitação. Assume-se que aquele que está em privação da liberdade pagará pelos seus crimes enquanto lá estiver, mas não possibilitamos que esses presos sejam realmente reabilitados a voltar para a sociedade, ao contrário, nossa sociedade acredita que quanto pior o tratamento ao preso, melhor. Situação que pode levar, como já divulgado anteriormente, a um índice de reincidência que gira em torno de 70% no Brasil. Ao contrário do que vem acontecendo em diversos países, jamais vamos conseguir reduzir as altas taxas de criminalidade enquanto priorizarmos a punição em detrimento da prevenção, enquanto jovens crianças e jovens estiverem fora das escolas e com a ideia, típica de quem não tem escolaridade, de que bandido bom é bandido morto. Com essa mentalidade, os países desenvolvidos diminuem os crimes. Nós, fechamos escolas e abrimos presídios e cemitérios. *Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Mensalão e conchavos políticos corroem a confiança do cidadão

Em tempos de mensalões envolvendo vários partidos (PT, PSDB, PTB etc.), alguns como pagadores, outros como receptores, vale a pena uma reflexão de toda sociedade pensante, tendo como base noções elementares de política e de Ética. A política está no plano do ser (do que é). A Ética mora no plano do dever ser (como as coisas deveriam ser). Fazer política (no bom sentido) é, por exemplo, ir para as ruas e protestar civilizadamente contra as injustiças sociais e individuais. Fazer política no mal sentido é, por exemplo, usar o cargo público para “roubar” o dinheiro de todos. A Ética diz: não se comprometa com o erro, com o desvio, com o malfeito, com o tratamento desumano das pessoas. Em suma: não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você! Todos nós, que admiramos a Ética e os valores republicanos, gostaríamos que a política seguisse os princípios éticos citados. A desgraça é que, na prática, isso não acontece. Não existe coerência entre a teoria e a prática. Quem explicou tudo isso há 500 anos? Maquiavel. Ele disse que (a política) não é (ou nem sempre é) assim (em O Príncipe). O traço mais característico da política (diz Maquiavel) consiste na sua radical autonomia frente à ética e à religião. Entre o “ser” e o “dever ser”, o realismo político (Realpolitik) faz uma clara opção pelo “ser” (pelo que é). Quando coincide a prática com a Ética, tudo bem. Se não coincide, fica valendo o realismo político (porque está em jogo o poder, que deve ser conquistado, mantido e expandido, muitas vezes a qualquer preço, fazendo “o diabo”, se o caso). Ocorre que o exercício do poder, quando não é feito em nome dos interesses da nação, sim, dos ganhos privados ou partidários, entra em rota de colisão com a Ética. Um exemplo: quando Lula, para facilitar sua governança, forjou consenso com Sarney para livrá-lo da cassação no Senado (Marcos Nobre, Valor Econômico de 18.06.13, p. A8), pisoteou na Ética. Pode não parecer, mas isso vai minando as ligas de coesão da sociedade; vem daí um sentimento de revolta e de impotência, que costuma desaguar em manifestações populares. Enquanto a política não se adequar à Ética e enquanto a economia não se subordinar a uma política ética, de justiça social, o planeta terá pouca chance de evolução sustentável e de convivência pacífica (lá na Declaração de Filadélfia, de 1944, já estava escrito: “A pobreza, em qualquer lugar, constitui um perigo para a prosperidade de todos”). A podridão da política, de qualquer modo, não pode nos contaminar. As parábolas são sempre fontes de reflexão. São narrativas breves que explicitam ocorrências da cultura de um povo, que nos levam a raciocinar sobre questões morais, às vezes muito complexas. Conta-se (cf. Alexandre Rangel, As mais belas parábolas de todos os tempos) que um velho mestre vivia com seus discípulos em um templo muito arruinado. Viviam de esmolas e doações. Num determinado dia o mestre disse para seus discípulos: “Cada um de vocês devem ir à cidade e roubar bens que serão vendidos e, assim, arrecadaremos dinheiro para reformar nosso templo. Vocês não podem ser vistos por ninguém”. Os discípulos ficaram espantados, pensaram no quanto isso poderia manchar suas reputações. Foram orientados para praticar atos ilegais e imorais. Roubar é uma coisa muito errada! A causa é boa, mas o ato é extremamente imoral. No final, todos foram para a cidade, menos um deles. O mestre perguntou: – Por que você ficou para trás? O discípulo respondeu: – Eu não posso seguir as suas instruções para roubar onde ninguém esteja me vendo. Não importa aonde eu vá; sempre estarei olhando para mim mesmo. Meus próprios olhos irão me ver roubando”. O sábio mestre o abraçou e disse: “Eu estava testando a integridade dos meus discípulos e você é o único que foi aprovado”. Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Mensalão, embargos infringentes e duplo grau de jurisdição

Na seção de hoje (5/9/13) o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a possibilidade de embargos infringentes, contra decisão do STF, em caso de competência originária (casos julgados originariamente em razão do foro por prerrogativa de função). Fomos honrados, Valério Mazzuoli e eu, com a citação por ele da nossa doutrina a respeito do duplo grau de jurisdição (aliás, trata-se de citação feita originalmente pelo min. Celso de Mello, que foi reproduzida no voto do min. Joaquim Barbosa). Duas observações importantes: (a) eu, particularmente, apesar de todos os argumentos contrários, discordo do min. Barbosa e entendo que os embargos infringentes são cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande); (b) Valério Mazzuoli e eu afirmávamos na terceira edição do nosso livroComentários à CADH (RT) que o sistema europeu (europeu!) não admite o duplo grau de jurisdição quando o caso é julgado pela máxima corte do país. Vamos aos nossos argumentos e fundamentos: (a) Por que entendendo cabíveis os embargos infringentes? De acordo com a minha opinião, não há dúvida que tais embargos (infringentes) são cabíveis. Dois são os fundamentos (consoante meu ponto de vista): (a) com os embargos infringentes cumpre-se o duplo grau de jurisdição garantido tanto pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (art. 8 , 2, “h”) bem como pela jurisprudência da Corte Interamericana (Caso Barreto Leiva); (b) existe séria controvérsia sobre se tais embargos foram ou não revogados pela Lei 8.038/90. Sempre que não exista consenso sobre a revogação ou não de um direito, cabe interpretar o ordenamento jurídico de forma mais favorável ao réu, que tem, nessa circunstância, direito ao melhor direito. Haveria um terceiro argumento para a admissão dos embargos infringentes? Sim. A esses dois fundamentos cabe ainda agregar um terceiro: vedação de retrocesso. Se de 1988 (data da Constituição) até 1990 (data da lei 8.038) existiu, sem questionamento, o recurso dos embargos infringentes (art. 333 do RISTF), cabe concluir que a nova lei, ainda que fosse explícita sobre essa revogação (o que não aconteceu), não poderia ter valor, porque implicaria retrocesso nos direitos fundamentais do condenado. De se observar que tais embargos, no caso de condenação originária no STF, cumprem o papel do duplo grau de jurisdição, assegurado pelo sistema interamericano de direitos humanos. Pelos três fundamentos expostos, minha opinião é no sentido de que o Min. Joaquim Barbosa (que já rejeitou os embargos infringentes de Delúbio) não está na companhia do melhor direito. O tema vai passar pelo Plenário, provavelmente na próxima seção (de 12/9/13). A controvérsia será imensa (ao que tudo indica). (b) Cabimento do duplo grau de jurisdição Dentro de poucos dias sairá a 4ª edição do nosso livro Comentários à CADH(RT). Nela, sobre o cabimento do duplo grau de jurisdição no sistema interamericano de direitos humanos, esclarecemos (Valério Mazzuoli e eu) o seguinte: “As duas exceções ao direito ao duplo grau, que vêm sendo reconhecidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais europeus [europeus!], são as seguintes: (a) caso de condenação imposta em razão de recurso contra sentença absolutória; (b) condenação imposta pelo tribunal máximo do país. ([1]) Mas a sistemática do direito e da jurisprudência interamericana é distinta [agregamos essa parte na 4ª edição, porque agora sabemos o que pensa a CIDH]. Diferentemente do que se passa com o sistema europeu, vem o sistema interamericano afirmando que o respeito ao duplo grau de jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que se trate de condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas no sistema interamericano em relação ao duplo grau de jurisdição”. “A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF, ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Pacta sunt servanda: ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos”. “De forma direta a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão), porém, de forma indireta sim. No famoso “caso mensalão” o tema foi amplamente discutido. Pediu-se, no princípio do julgamento, a separação dos processos em relação aos réus que não contavam com foro especial por prerrogativa de função. Por maioria e contrariando sua própria jurisprudência, deliberou o STF não separar os processos. Todos foram julgados em instância única (no STF). E agora vão questionar essa decisão no sistema interamericano, com grande chance de sucesso. Por quê?” “Porque não é verdade que Corte não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF ou que as sanções da Corte seriam basicamente indenizatórias. Nada mais equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas, que revelam formação jurídica eminentemente legalista”. “No caso Barreto Leiva contra Venezuela a Corte, em sua decisão de 17.11.09, apresentou duas surpresas: a primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa”. “Esse precedente da Corte Interamericana encaixa-se como luva ao processo do mensalão. Mais detalhadamente, o que a Corte decidiu foi o seguinte”: “Se o interessado requerer, o Estado (Venezuela no caso) deve conceder o direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade. No segundo julgamento, caso se verifique que o anterior foi adequado ao Direito, nada há a determinar. Se decidir que o réu é inocente ou que a sentença não está adequada ao Direito, disporá sobre as medidas de reparação em favor do réu.” “A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função”. “A parte mais enfática da decisão foi a seguinte: “A Corte, tendo em conta que a reparação do dano ocasionado pela infração de uma obrigação internacional requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento da situação anterior, decide ordenar ao Estado que brinde o senhor Barreto Leiva com a possibilidade de recorrer da sentença citada”. *Texto longo. Continue lendo em: www.atualidadesdodireito.com.br/lfg

[1] . Cf. Jugo, Gabriela. El derecho de recurrir la sentencia penal condenatória… Los derechos humanos en el proceso penal. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2002, p. 249 e ss.(especialmente p. 290).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Mensaleiros vão ganhar, mas apanharão muito

Com placar empatado (5 a 5) o voto decisivo sobre o cabimento (ou não) dos embargos infringentes no caso mensalão será do ministro Celso de Melo, para quem tais embargos são cabíveis: “A garantia da proteção judicial efetiva acha-se assegurada, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal (…) pela possibilidade que o art. 333, inciso I, do RISTF [Regimento Interno do STF] enseja aos réus, sempre que o juízo de condenação penal apresentar-se majoritário. Refiro-me à previsão, nosprocessos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, de utilização dos ’embargos infringentes, privativos do réu, porque somente oponíveis a decisão ’não unânime’ do Plenário que tenha julgado ’procedente a ação penal’”(voto proferido em 2/8/12). Não há impedimento para ele mudar de opinião, mas esse não é o perfil do decano do Tribunal, ministro Celso de Mello, um dos mais brilhantes de toda a história do Judiciário brasileiro. A lei 8.038/90 revogou o art. 333, I, do Regimento Interno do STF? Veja o que o ministro escreveu:Entendo, não obstante a superveniente edição da Lei n 8.038/90, que ainda subsiste, com força de lei, a regra consubstanciada no art. 333, I, do RISTF [Regimento Interno do STF], plenamente compatível com a nova ordem ritual estabelecida para os processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal“. Em resumo, os mensaleiros devem ganhar os embargos infringentes, mas podem não levar nada, porque uma coisa é a forma, outra o conteúdo. Na forma Celso de Mello, ao que tudo indica, vai garantir os embargos infringentes. No conteúdo, no entanto, vai bater duríssimo no esquema organizado pelo PT, com a conivência de políticos sanguessugas, marqueteiros e banqueiros, que são (segundo as palavras do citado ministro) “quadrilheiros da república”, “bandidos que dilapidam a coisa pública”, “bandoleiros que confundem o partido com o Estado” e por aí vai. Que se preparem os réus já julgados como parasitários da coisa pública, que a governam para satisfação dos seus interesses partidários ou privados. Todo massacre contra suas desonestidades ainda não foram nada. Não se pode esquecer que 2014 é ano eleitoral. As novas sessões de tortura moral serão deprimentes para os réus, inequivocamente contundentes, verdadeiras devassas públicas, em pleno pelourinho televisado, porque essa é a maneira moderna de ritualizar a velhíssima cerimônia do “bode expiatório”, em seu significado original. Tratava-se de um ritual religioso do antigo povo de Israel, que consistia no seguinte: para purificar a nação, os pecados que todos cometemos, dois bodes eram levados ao sacrifício, anualmente. Um era sacrificado pelo sacerdote, junto com um touro, como oferenda a Deus; o outro (o “bode expiatório”) era sacrificado para descarregar todas as culpas do povo judeu. Era entregue ao Diabo e abandonado no deserto, mas acompanhado de insultos e pedradas. Ele carregava todos os pecados da comunidade, ou seja, carregava todos os desvios e malfeitos da população. A cerimônia do “bode expiatório” até hoje é vista como purificadora e necessária, para nos livrar das culpas que carregamos ao longo do ano pelos nossos pecados. Quanto mais massacrantes forem as novas sessões do STF (e o serão), mais sensação de purificação acontece (a mídia, claro, para “lavar a alma do povo”, cumprirá seu papel nessa profunda devassa moral, só iniciada ontem no plenário pelo Ministro Gilmar Mendes). Quais benefícios os mensaleiros podem obter com os embargos infringentes? Nenhum, se todas as condenações forem mantidas intactas. Absolvição, naqueles crimes em que foram condenados, mas com quatro votos favoráveis. Também pode haver mero ajuste da pena, sem nenhuma consequência maior (diminuição da pena em alguns meses) ou com a consequência da prescrição (se a pena for rebaixada para 2 anos ou menos). A chance de absolvição no crime de quadrilha ou bando, no entanto, é grande. Por quê? Porque aos quatro ministros que já votaram pela absolvição nesse crime (Lewandowsky, Toffoli, Cármen Lúcia e Rosa Weber) dois votos outros podem formar maioria: Teori Zavascki e Luís Barroso. Essa chance existe. Eliminando-se o delito de quadrilha, José Dirceu, Delúbio e João Paulo Cunha cumprirão suas penas em regime semiaberto. Todos os demais, mesmo com a absolvição nesse crime, cumprirão e pena em regime fechado. A perda do mandato dos parlamentares será mantida. Mas será automática ou depende de ato da Mesa da Casa Legislativa? Esse ponto vai ser muito debatido. Deve preponderar a mera declaração da Mesa da Casa da perda do mandato (voto último do Barroso).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Minirreforma eleitoral e novos protestos

Se nos faltassem motivos para retornar às ruas, o que não é o caso num país em que a confiança nas instituições está se desmoronando a cada dia, bastaria dar uma olhada na minirreforma eleitoral que está tramitando na Câmara dos Deputados. Já para as próximas eleições pretende-se flexibilizar as prestações de contas dos candidatos e das suas legendas e, ao mesmo tempo, liberá-los da demonstração detalhada dos gastos. Objetiva-se ainda mudar as regras da apresentação das contas para a Justiça, liberar as propagandas na mídia impressa, admitir propaganda paga na internet, imunizar o máximo possível os candidatos dos crimes eleitorais, a Justiça eleitoral só poder ver aspectos “formais” das contas apresentadas, dispensar da apresentação dos programas eleitorais, reduzir a multa para as doações ilegais etc. Tudo está sendo feito para favorecer a perpetuação do abuso do poder econômico-financeiro, isto é, para que ele continue instrumentalizando (manobrando) o poder político, com patente violação da sagrada regra da igualdade de oportunidades eleitorais. A desfaçatez das propostas constitui estímulo mais do que suficiente para irmos às ruas novamente, como reconheceu editorial do O Estado de S. Paulo de 02.08.13, p. A3. Um dos mais graves problemas dos países em processo de modernização (emergentes), como o Brasil, é que neles não faltam somente “alimentos, alfabetização, educação, riqueza, renda, saúde, produtividade e uma comunidade política forte assim como um governo com eficiência, autoridade e legitimidade” (Huntington, A ordem política nas sociedades em mudança, p. 14), sim, sobretudo, a emancipação moral e ética, que conte com força suficiente para reconquistar a confiança dos cidadãos. Nos tempos modernos, falta exemplaridade e sobra vulgaridade. A consequência nefasta do apagão ético dos políticos, que mina os tecidos unificadores das relações sociais, conduz inevitavelmente à inexistência do senso de comunidade política, o que leva cada dirigente, cada indivíduo, cada grupo, cada partido político e cada um dos políticos a buscar atingir apenas os seus próprios objetivos materiais imediatos, e a curto prazo, sem qualquer consideração pelo interesse público comum. Como adeptos do individualismo da tradição filosófica liberal, não veem a sociedade senão como resultado de átomos sociais, regidos pelo condutor egoísta do “cada um para si e Deus para todos”, perseguindo-se exclusivamente seus interesses particulares, que seriam suficientes para integrar e desenvolver a “polis”. Já com os primeiros sinais de refluxo dos protestos, os políticos começam a abandonar a agenda positiva (a que atende os clamores sensatos das ruas) para retornarem à tendencial negatividade da sua rotina frequentemente trambiqueira, ou seja, votação de privilégios e benefícios para eles mesmos. Alguns dirigentes políticos não estão entendendo que o termômetro da saturação do povo brasileiro chegou ao seu limite máximo (conforme a 114ª pesquisa do CNT/MDA, realizada em julho de 2013, a insatisfação com a corrupção – principal causa dos protestos – chegou a 55%).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ministro Barroso caiu numa armadilha e virou legislador

O passado do ministro Barroso não permite qualquer tipo de questionamento sobre sua competência e honorabilidade. Mas ele é um ser humano, logo, também pode se equivocar. Na verdade, ele se meteu numa grande enrascada ao decidir que o poder de decretar a perda do mandato, no caso de parlamentar corrupto condenado criminalmente, competiria ao próprio Parlamento (e não ao STF). No século 6 a.C., Esopo escreveu incontáveis fábulas morais. Dentre elas, esta (veja Folha de 1/9/13, Ilustríssima, p. 8): “Uma lebre sentiu sede e desceu num poço para beber da água. Após haver-se fartado da deliciosa bebida, ia sair de lá quando se deu conta de que estava confinada, pois não tinha como galgar a subida, e começou a ficar apreensiva. Nisso, uma raposa veio ter ali também e, ao deparar com ela, disse: ’Realmente você se meteu numa grande enrascada! Pois devia primeiro resolver como iria sair do poço e, só depois, descer dentro dele”. O ministro Barroso não podia imaginar que sua decisão geraria a confusão que gerou no caso Donadon, tendo a Câmara dos Deputados, malandramente, mantido o mandato do deputado que está preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos. Ou seja: não pode votar nem ser votado, mas continua deputado federal. Mais uma singularidade que só se encontra no Brasil, ao lado das jabuticabas, claro. O corporativismo, que é filho do parasitismo, não encontra limites éticos quando corruptos devem julgar malandros! Mas o ministro Barroso não é a lebre do conto de Esopo. A lebre não tinha como sair da enrascada que se meteu, salvo se se transformasse em raposa. O ministro, acuado pela imoralidade ímpar do Parlamento brasileiro, achou uma saída: assumiu as funções legislativas e passou a legislar. Vejamos os detalhes da sua técnica e construção legislativas: A competência para decretar a perda do mandado de parlamentar malandro já condenado criminalmente pelo STF é da Casa Legislativa respectiva (aqui o ministro já caminhava fora do melhor direito, mas ainda estava dentro dos binários interpretativos do ordenamento jurídico). Porém (agora vem a nova regra legislativa saída da cabeça do ministro), “quando se tratar de deputado cujo prazo de prisão em regime fechado exceda o período que falta para a conclusão do seu mandato, a perda se dá como resultado direto da condenação”. Onde está escrito isso no ordenamento jurídico brasileiro? Em lugar nenhum. Quem inventou essa nova regra jurídica? O ministro Barroso. Por que ele fez isso? Porque chegou no fundo do poço a imoralidade do Parlamento brasileiro ao manter o mandato de Donadon. Podia fazer isso? Jamais, porque ministro não é legislador. Houve ativismo judicial positivo ou substitutivo? Claríssimo. Mas tudo foi feito para se corrigir uma injustiça brutal? Sim. Mas os fins justificam os meios? Eis a questão. Qual a consequência da nova regra jurídica inventada por Barroso? A seguinte: se sua regra só vale para quem está em regime fechado, ela teoricamente beneficiaria José Genoíno, Valdemar Costa Neto e Pedro Henry, porque foram condenados ao regime semiaberto. Só teoricamente (porque eles perderam o mandato). Só para raciocinar: como pode casos substancialmente idênticos (dos mensaleiros, do senador Cassol, de Donadon), onde todos foram condenados criminalmente por desvio de dinheiro público, com violação grave de dever funcional, receber tratamentos diferenciados? Há alguma saída inteligente para tudo isso dentro do STF? Sim. Qual? Recolocar o assunto em pauta e redefinir a posição majoritária do STF, nos termos do que ficou decidido no caso mensalão (que coincide, em linhas gerais, com a proposta de emenda constitucional do senador Jarbas Vanconcelos, que tramita pelo Senado). A melhor coisa que um juiz deve fazer no exercício da jurisdição é seguir o ordenamento jurídico vigente e não ficar inventando regras novas, posto que trazem muita insegurança.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ministro Marco Aurélio e a opinião pública

Ao apelar para o quase consenso da opinião pública, no seu voto contra os embargos infringentes, o Ministro Marco Aurélio gerou muita polêmica no meio jurídico. Fora do mundo jurídico o apoio popular e midiático ao seu argumento foi generalizado. O problema é que a Lei Orgânica da Magistratura e a Constituição brasileira não autorizam que o juiz decida de acordo com a opinião pública. Com frequência o que ele decide está em consonância com a vontade da maioria. Mas pode ser o contrário. Quando o STF admitiu o aborto anencefálico ou a utilização de células tronco ele contrariou boa parte da população. E por que essas duas normas jurídicas (Lei Orgânica e Constituição) assim procedem? Porque a legitimação do juiz, como diz Ferrajoli (Derechos y garantias – La ley del más débil), “não deriva da vontade da maioria, cujas leis são dela expressão. Seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. Nisso reside a legitimidade democrática do juiz, derivada da sua função de garantia dos direitos fundamentais, sobre a qual se ancora a chamada ’democracia substancial’”. Nenhum debate jurídico no Estado democrático de direito, sob pena de grave ofensa aos próprios fundamentos da democracia evoluída, pode descambar para a desabrida argumentação política e populista (essa impossibilidade também está no nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013). Somente no sistema político tendencialmente demagógico, dizia Aristóteles, “a soberana é a massa, não a lei”. Todo o poder emana do povo, é verdade, mas a Constituição brasileira não aceita sua opinião como argumento jurídico porque o povo nem sempre é homo sapiens (o julgamento de Jesus Cristo basta como prova disso). Quando o juiz invoca a opinião popular como fundamento do seu voto ele necessariamente, nesse caso, considera o povo como totalidade, como se fosse uma realidade homogênea. Quando um juiz submete seu julgamento à opinião pública resta sempre saber a qual parte dela está se referindo, porque a opinião pública nunca é unânime (sempre fracionária, fragmentada). No caso mensalão formou-se quase um consenso contra os mensaleiros (que, na minha opinião, devem mesmo ser condenados, em razão do parasitismo que praticaram), mas no caso concreto da admissibilidade dos embargos infringentes cabe notar que o tema é extremamente polêmico, tanto que a votação chegou a 5 a 5. De acordo com a visão jurídica predominante, os regimes totalitários e populistas é que consideram a vontade da maioria mais influente como a opinião do “todo”. Os “chefes” despóticos é que falavam e ainda falam em nome do povo inteiro (como se o povo inteiro concordasse com ele): assim procederam, por exemplo, Hitler, Mussolini, Franco, os militares na ditadura brasileira etc. Quando um juiz invoca a vontade popular (a famosa “opinião pública”) como fundamento de um voto ele consegue “a homologação dos condescendentes” (sobretudo as primeiras páginas dos jornais alinhados), mas isso avilta a inteligência dos dissidentes, que não pensam como ele e que passam a ser vistos como inimigos e traidores do “consenso forjado” pela momentânea maioria (Ferrajoli, Poderes selvagens). Essa é a razão pela qual a Constituição brasileira não permite que nenhum juiz, na discussão de um processo sob sua jurisdição, fuja das estreitas margens do ordenamento jurídico, aprovado pelos representantes do povo. Nisso está sua legitimação democrática. Do contrário, comporta-se o juiz como um político e discursa como tal, correndo o risco de se enlamear na falta de credibilidade e de honorabilidade inerente a esta desqualificada classe, o que pouca gente no Brasil contesta (81% dos entrevistados pelo Ibope acham a classe política brasileira corrupta ou muito corrupta).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – No circo econômico há faíscas, mas ainda não está pegando fogo

Normalmente os protestos massivos, inclusive em rede, nascem para derrubar um ditador (luta pela liberdade: foi isso que ocorreu no Egito, por exemplo, contra Mubarak; isso também ocorreu no Brasil contra a ditadura militar) ou por causa de uma grave crise econômica local (luta pelo pão, pela sobrevivência imediata). Nossos protestos (na jornada de junho) não se encaixam nesses figurinos (nesses leitos de Procusto). Quem não captar a singularidade da nossa indignação massiva terá muita dificuldade em pensar nas soluções para nossos problemas. Considerando que minha preocupação é entender e desvendar todas as nuances dos protestos massivos de junho, não tenho intenção nem interesse em defender os petistas, mas, neste ponto, uma análise isenta e sincera nos conduz a afirmar que não parece correto (ou totalmente correto) assinalar que estamos vivendo uma séria crise econômica. Há problemas vários (sendo muito acertadas algumas críticas contra a condução da economia: muito centralizadora, intervencionista em excesso, protecionista, eleitoreira, populista, clientelista etc.), mas ainda não atingimos o estágio de uma grave crise econômica (como a do Egito, por exemplo). Luís Eduardo Assis (O Estado de S. Paulo de 08.07.13, p. B2), desde uma perspectiva prudente e sensata, foi ao ponto: “A economia brasileira não está em crise [ao menos não está em crise aguda; a prova disso é que ninguém saiu às ruas para pedir a queda do ministro da economia; nem a queda do governo pela ingovernabilidade econômica]; a inflação não escapou do controle [está sob sério risco de descontrole, visto que os mais pobres já sentem o seu peso no bolso, mas ainda está dentro dos patamares previstos]; não existe ameaça imediata de recessão [pode ser que o PIB não cresça o que se esperava – 3% -, mas ninguém está afirmando que o trem da economia, que está lento, vai começar a andar para trás]; Nem mesmo o economista mais infausto deixa de admitir que o PIB de 2013 crescerá mais do que no ano passado [por ora, esse é o quadro; o PIB baixo, aliás, não foi o alvo central dos protestos]; a taxa de desemprego aberto (5,8% em maio) é uma das mais baixas da história e causa inveja aos países ricos [mas os sinais de maio indicam que vamos ter complicação nesse item]; A inflação mensal acumulada nos últimos 12 meses é alta (6,5%), mas nos últimos dez anos ela superou esse patamar nada menos que 32 vezes. O saldo líquido de contratações e admissões com carteira assinada aponta a criação de 533 mil novos empregos em 2013. O custo da cesta básica em São Paulo representava 50% do valor do salário mínimo em maio, a mesma proporção registrada para a média dos últimos cinco anos. O rendimento médio real das pessoas ocupadas em 2013 ficou em R$ 1.864,44 nos primeiros quatro meses de 2013, 5,5% maior que o rendimento médio de 2010, ano de forte crescimento do produto. A inadimplência das pessoas físicas vem caindo sistematicamente depois de ter alcançado 6% dos empréstimos em maio do ano passado. O trem da economia não parou, mas está andando devagar Conclusão do articulista (Luís Eduardo Assis): “Devidamente torturados, portanto, os dados recentes da conjuntura confessam que não estamos diante de um quadro agudo de crise econômica. Mas isso não significa que tudo vai bem. Desde 2012 estamos vivendo uma forte reversão de expectativas. O trem continua andando para frente, mas a velocidade se reduziu drasticamente, forçando as pessoas a reagendarem seus compromissos. O PIB no período Dilma crescerá cerca de 6%, contra 43% na primeira década deste século. É muito pouco. A evolução do produto per capita desde 2010 está em 1,2% ao ano. Nesse ritmo demoraremos 60 anos para alcançar a renda per capita da Grécia, país que pouco serve para o imaginário do brasileiro”. A falta de confiança no futuro, em razão das baixas perspectivas de crescimento, sobretudo das classes D e C, constitui um dos fortes motivos dos protestos. O país do futuro, de repente, mostra uma roupagem de país sem futuro. Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – O novo paradigma da polícia conciliadora

Em um artigo anterior escrevi o seguinte: se alguém quiser conhecer uma polícia conciliadora de primeiro mundo já não é preciso ir ao Canadá, Finlândia, Noruega, Dinamarca ou Suécia. Basta ir a Bauru, Lins, Marília, Tupã, Assis, Jaú e Ourinhos (todas no Estado de São Paulo) (veja meu blog: blogdolfg.com.br). A polícia conciliadora está sendo desenvolvida pelo Necrim, que significa Núcleos Especiais Criminais. Pertencem à polícia civil do Estado de São Paulo. Paralelamente à clássica função judiciária (de investigação), foram instalados vários Necrims nas cidades mencionadas. É uma revolução no campo da resolução dos conflitos penais relacionados com os juizados especiais criminais (a conciliação é feita nos casos de infração de menor potencial ofensivo que dependa de ação privada ou pública condicionada). Os percentuais de sucesso são alvissareiros: Assis: 73,23%; Bauru: 90,28%; Jaú: 89,20%; Lins: 90,88%; Maríalia: 90,68%; Ourinhos: 92,79%; Tupã: 82,30% (veja monografia de L. H. Fernandes Casarini). Diante das profundas mudanças sociais ocorridas nas últimas três décadas, seria um erro crasso (das instituições públicas e sociais) continuar fazendo as mesmas coisas do mesmo jeito o tempo todo. Na atual sociedade pluralista, multiétnica, da informatização e das comunicações assim como das diversidades, impõe-se pensar em novos paradigmas, inclusive para as funções policiais. À velha cultura da investigação e da repressão, urge que se agregue (às polícias) a cultura integradora, que consiste em buscar solução para os conflitos de forma pacificadora e reparadora (restaurativa). Esse novo paradigma se distancia claramente dos outros, que são: (a) paradigma dissuasório (confiança de que a pena seja suficiente para prevenir delitos); (b) paradigma da ressocialização (prisão, com finalidade de readaptação do preso) e (c) paradigma do populismo penal (confiança no incremento das penas e do sistema penal como solução para problemas sociais – veja nosso livroPopulismo penal midiático: Saraiva, 2013). Vários países e organizações policiais já captaram os sinais dos novos tempos e estão utilizando a mediação ou a conciliação como método de gestão de conflitos (veja Rosana Gallardo e Elene Cobler, Mediacion policial, Valencia: Tirant lo blanch, 2012). Por que a adoção (ou o incremento) de um novo paradigma na função policial? Em primeiro lugar e desde logo porque a polícia conciliadora abre novo horizonte para a profunda insatisfação das corporações policiais, que já começam a perceber que a repressão não pode ser a única resposta para a gestão dos conflitos penais. Impõe-se descobrir as virtudes do “direito ao melhor direito”. A prevenção é muito mais eficaz que a repressão. “É melhor prevenir os crimes do que puni-los” (Beccaria). O que se pretende? É uma polícia eficaz que, paralelamente às suas clássicas funções, adote também (em relação a alguns crimes) a linha pacificadora, e que, por esse caminho, se legitime para a resolução dos conflitos. Com isso vai ser restaurada, antes de tudo, a autoestima do próprio policial, que precisa, desde logo, ter coragem para promover a mudança. “É insanidade ficar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes” (Einstein). A polícia conciliadora, feita sempre sob o acompanhamento de um advogado: ganha respeito da comunidade que, ao mesmo tempo, passa a colaborar mais com a função policial; ela está integrada na comunidade (sendo expressão da polícia comunitária); promove a interação entre as pessoas, ou seja, busca a paz, a pacificação social; dessa maneira consegue prevenir futuros delitos, cuidando-se, assim, de uma polícia de prevenção especializada; permite um melhor funcionamento da polícia judiciária (investigativa); alivia a sobrecarga da Justiça e do Ministério Público; restaura a força do controle social informal; inaugura um novo serviço de qualidade para a cidadania, difundindo valores éticos; não destrói a velha polícia investigativa e, mais importante, rompe o velho paradigma militarizado e hierarquizado da polícia que, muitas vezes, em lugar de uma conciliação olho a olho, continua seguindo o parâmetro da obediência cega. Polícia conciliatória, no entanto, existe tempo (exige boa formação, boa capacitação profissional), dinheiro (não muito), um espaço adequado para seu funcionamento (respeito às pessoas envolvidas no conflito), sólida estruturação jurídica e, sobretudo, mudança de mentalidade. Com nova mentalidade podem ser vislumbrados novos horizontes. Temos que ter uma postura otimista em relação aos projetos nos quais confiamos. Nenhum deprimido triunfou no mundo todo. Num mundo tão desencontrado, não há como não buscar algo melhor, mais compreensivo e mais dialogante. Vale aqui repetir uma história bastante conhecida: perguntaram a um velho e sábio índio de que maneira são compostos os seres humanos. Ele respondeu: “de um lado bom e de um lado mal”. Qual vence? “Aquele que você mais alimenta”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – O que leva um adolescente a matar sua família e se suicidar?

Quando imaginamos já ter visto tudo no campo da violência, eis que um adolescente, de 13 anos, surge como suspeito de ter matado os pais (policiais militares), a avó e uma tia-avó. Depois pegou o carro da mãe e foi à escola. Mais tarde retorna para sua casa e se mata. Tudo feito com uma habilidade que muitos adultos não possuem. A tendência primeira, de praticamente todo mundo, é não aceitar que tudo isso tenha ocorrido. Contraria a natureza imaginar que um filho possa matar seus pais. As investigações prosseguem, mas agora encontraram no carro um par de luvas, que pode fechar o item do exame residuográfico (nas mãos do adolescentes nada foi achado). As luvas podem ajudar a explicar os fatos. Caso tenha mesmo sido o menor o autor da tragédia, fica a pergunta: como pode um adolescente ser capaz de tamanha violência. Os psicólogos e criminológos têm um amplo campo de trabalho. Nós só temos condições de levantar hipóteses. A primeira: havia uma abundância enorme de armas de fogo na casa em que ele habitava. Se ele tinha contato frequente com essas armas, isso pode começar a nos oferecer pistas explicativas. Uma segunda tese: o mal está banalizado em toda América Latina (continente mais violento do planeta). Nossa sociedade é tida por alguns como a sociedade pós-moral. Não se ensina ética mais em praticamente lugar nenhum: nem em casa, nem nas escolas, nem nas instituições e muito menos nas televisões e na internet. A quantidade de informações que qualquer criança hoje possui não era comum nem sequer em adultos de 50 anos, há três décadas. As crianças estariam ficando adultas antes do tempo? O discurso do ódio teria tomado conta de praticamente todos os lares? Que importância tem na formação de uma criança esse discurso do ódio, se e quando praticado pelos pais? As polícias, no Brasil, diante da nossa guerra civil, são treinadas para matar. Antigamente esse era um apanágio do exército. Agora, todas fazem o discurso da morte (o Bope, inclusive, sai pelas ruas cantando suas canções do caveirão). Esse tipo de discurso teria influenciado o adolescente? A morte está banalizada na TV, na internet e, muitas vezes, na própria família. Os velhos valores da autoridade, da religião, da pátria, do coletivismo estão fora de moda. Não falamos mais em valores em praticamente lugar algum. Ao contrário. O que as TVs mostram, por exemplo, pode estar influenciando as crianças? Se vivemos na era da comunicação e da informação (Manuel Castells), faz todo sentido perguntar se grande parte da programação da mídia, destacando-se a policial e a sanguinária, poderia (ou não) estar concorrendo para o incremento da violência. Quanto dessa (muitas vezes nefasta) programação interfere na formação da personalidade das crianças? A criança que vê (muita) violência na TV será um adulto violento? Nos países mais avançados (ou seja: nos países em que “a besta humana já está se transformando num animal domesticado”, como dizia Nietzsche (A genealogia da moral, p. 46), tudo isso está sendo discutido diuturnamente: fala-se em “código deontológico”, respeito à ética, legislação dura, controle estatal etc. Nos países menos evoluídos e, em consequência, mais violentos e menos controlados (em que a “besta humana” ainda está longe de se ter transformado num “animal domesticado”), a polêmica raramente é posta em pauta, não tendo a população em geral muita consciência da problemática. Para se saber se a programação violenta interfere ou não na personalidade das crianças vale a pena ler o livro “Handbook of Children and Media”, de Dorothy Singer e Jerome Singer (org.), que é uma extensa coletânea de artigos sobre a relação da Criança com as Mídias. Gilka Girardello (veja no google “mídia e criança”) sublinhou (em relação ao livro), dentre outros aspectos, os seguintes: a) a relação das mídias com os medos, ansiedades e percepções de perigo das crianças, que é discutida por Joanne Cantor no capítulo 10. A autora conclui que de acordo com a somatória das pesquisas recentes, os conteúdos das mídias podem, sim, ter efeitos prejudiciais consideráveis sobre o bem-estar emocional das crianças. Ela lista as implicações disso para pais e educadores, e aponta a necessidade de medidas institucionais mais fortes para a proteção das crianças quanto aos efeitos adversos das mídias; b) os efeitos da violência televisiva sobre a agressividade das crianças,que é o tema do capítulo 11, escrito por Brad Bushman e L. Rowell Huesmann. Para eles, a violência nas mídias não é a causa central da agressividade e da violência social, nem mesmo sua causa mais importante. Eles afirmam, porém, que “as evidências cumulativas de pesquisa revelam que a violência nas mídias é um dos fatores que contribui significativamente para a agressividade e a violência em nossa sociedade” (223-4). No capítulo 12, Jo Groebel relata um estudo realizado pela UNESCO sobre aviolência nas mídias de uma perspectiva transcultural, a partir de um questionário proposto a 5 mil crianças de 12 anos de idade, em 23 países. O objetivo do estudo era identificar possíveis diferenças culturais, assim como a influência de diferentes experiências agressivas no ambiente real (guerra e criminalidade) e de diferentes ambientes midiáticos, sobre a relação entre as mídias e a violência. Dentre as muitas e importantes conclusões deste estudo, que é um dos mais amplos e profundos sobre o tema, destacam-se as seguintes: a) 91% das crianças da amostra tinham acesso a um aparelho de TV; a televisão é ainda a fonte de informação e entretenimento mais importante para as crianças do mundo, se desconsiderarmos a interação face-a-face; b) as crianças do mundo passam em média 3 horas por dia diante da TV; c) quando solicitadas a indicar o nome de um adulto exemplar, a maioria das crianças (26%) citaram heróis de filme de ação, seguidos por astros pop e músicos (18,5%). Cerca de 90% das crianças disseram acreditar em (um) deus; d) o maior desejo de 40% das crianças era ter uma família (…) estável; e) cerca de um terço das crianças entrevistadas viviam em contextos sociais problemáticos e com altos índices de agressividade. Cerca de 1/3 das crianças que viviam nesses ambientes disseram acreditar que a maioria das pessoas no mundo é má (em comparação com pouco mais de 1/5 das crianças das áreas menos violentas); f) um efeito unidirecional entre as mídias e a violência “real” não pôde ser determinado a nível global, nem poderia ser testado empiricamente. Mas o estudo focalizou o papel das mídias “no complexo sistema da cultura e das experiências pessoais” (p. 265). As crianças das áreas mais violentas relataram uma maior semelhança entre sua realidade e o que veem na televisão; g) um herói tipicamente transcultural é “O Exterminador”, vivido por Arnold Schwarzenegger: cerca de 88% das crianças do mundo – a julgar pela amostragem da pesquisa – o conhecem. Das crianças em contextos violentos, 51% gostariam de ser como ele; nos contextos menos violentos, apenas 37% das crianças gostariam de ser como ele. Em suma, concluem os autores, “Combinada com a violência real que muitas crianças experimentam, existe uma alta probabilidade de que orientações agressivas e não pacifistas estejam sendo promovidas. Mas mesmo em contextos de baixa agressividade o conteúdo violento das mídias é apresentado em um contexto que o valoriza. Apesar de as crianças lidarem de formas diferentes com esse contexto em diferentes culturas, a presença transcultural do problema reflete o fato de que a agressão é interpretada como uma boa solução para os problemas em diversas situações.” (p. 267) As programações violentas da mídia brasileira, incluindo-se a exploração dramatizadora dos seriados policiais, transmitem “orientações agressivas e não pacifistas”, ou seja, não pregam a cultura da não-violência, ao contrário, incrementam a cultura da violência. Se isso já é muito sério em países mais pacíficos (que adotam a cultura do “tabu do sangue”, como é o caso da Europa onde a taxa de homicídios é de 3 para cada 100 mil habitantes), é de se imaginar algum tipo de efeito negativo turbinado quando se trata de um país como o Brasil (27,3 mortes para 100 mil habitantes), que desde sua origem é extremamente violento – veja F. Weffort, Espada, cobiça e fé, que afirma: “Herdeiros da última Idade Média, somos fruto de um dinamismo renascentista ibérico cuja peculiaridade foi a de se expressar na conquista do mundo mais do que nas obras de arte. Nos primeiros tempos deste novo mundo nascido da violência, da cobiça e da fé, o que mais surpreende é o quanto sua história ajuda a compreender os tempos atuais” (p. 11).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – O tsunami dos protestos massivos não foi captado antecipadamente

Na presidência da República o serviço de inteligência não antecipou absolutamente nada sobre as manifestações populares de junho de 2013 (J-13). O serviço de inteligência não funcionou (O Estado de S. Paulo de 23.06.13, p. A4). A jornada de junho tampouco foi prevista pelos meios de comunicação, partidos, instituições governamentais ou privadas. “A multidão, como sublinhou Suzana Singer, com seus gritos de protesto, deu um ’looping’ nessas certezas – de que o país estava bem – e deixou evidente que os canais de imprensa são insuficientes para captar as mudanças de humos na sociedade. Os jovens se sentem mal representados na mídia tradicional; há um abismo geracional” (Folha de S. Paulo de 30.06.13, p. A8). Ou seja: ninguém antecipou a revolta popular mais contundente e eletrizante, depois da redemocratização (1985). Por quê? Porque os órgãos de pesquisa encarregados de fazer flutuar o modelo econômico-financeiro injusto e desigual, que tomou conta de praticamente o mundo inteiro, mostravam, à primeira vista, um cenário favorável para os países emergentes. Pesquisa divulgada no dia 23.05.13, pela Pew Researcher Center, que é um instituto de pesquisa americano especializado em temas políticos, econômicos e sociais, apontava o seguinte: a maioria dos países centrais (com algum grau de desenvolvimento) estava insatisfeita com a sua economia; já os países emergentes se mostravam satisfeitos com os rumos que as suas economias vinham tomando. Foram aplicados questionários em 39 países, separados por três diferentes categorias – economias avançadas, mercados emergentes e países em desenvolvimento econômico, baseado nos grupos de renda do Banco Mundial, tipo de economia e classificação de especialistas. Em maio de 2013 a pesquisa dizia que, em média, 53% dos países com mercados emergentes acreditavam que suas economias iam bem, em comparação com 33% dos países pouco desenvolvidos e 24% de países com economia avançada. Estão particularmente negativas (as economias) em países Europeus como a França (9% de satisfação positiva), Espanha (4%), Itália (3%) e Grécia (1%). Participantes em mercados emergentes como China (88%) e Malásia (85%) disseram que a economia vai especialmente bem. No Brasil, 59% dos participantes da pesquisa se disseram satisfeitos com o país em termos econômicos. A Espanha foi o país entre os de economia avançada com maior diferença entre os anos de comparação. Em 2007, 65% dos entrevistados consideravam que a economia ia bem, já em 2013, apenas 4% tinha a mesma opinião, uma variação de 61 pontos percentuais. O Reino Unido que em 2007 tinha 69% de entrevistados satisfeitos com a economia, em 2013 teve uma queda de 54 pontos, registrando apenas 15% de satisfação. Já a Itália teve uma queda de 22 pontos, passando de 25% de satisfação para apenas 3%. A média de satisfação entre os países Entre os países em desenvolvimento também há um pessimismo. O Paquistão que em 2007 teve um nível de satisfação da economia em 59% apresentou uma variação de 42 pontos, registrando em 2013 apenas 17% dos entrevistados satisfeitos. O Egito, que teve uma diferença de 30 pontos, passou de 53% de satisfação em 2007, para 23% em 2013. Gana passou de 57% para 37%, registrando queda de 20 pontos na satisfação. Entre os países em desenvolvimento a média de satisfação foi de 49%, em 2007, e 25% em 2013, uma variação negativa de 24 pontos. Entre os países de mercado emergente, a maior variação foi do México, que registrou uma variação negativa de 13 pontos, passando de 51% em 2007 para 38% de satisfação em 2013. A Argentina passou de 45% em 2007 para 39% em 2013, quando registrou uma diferença de 6 pontos. A Rússia teve uma queda de 5 pontos na satisfação, passando de 38% em 2007 para 33% em 2013. Contudo, a China que teve o maior índice de satisfação, 82% em 2007 e 88% em 2013, teve um aumento de 6 pontos. Turquia, Malásia, Chile e Indonésia também tiveram alta. A Indonésia registrou o maior crescimento, 14 pontos entre 2007 e 2013. O Brasil registrou um índice de 59% de satisfação da economia em 2013, porém, foi impossível fazer uma comparação, já que não houve dados do país para 2007, assim como África do Sul que registrou 44% de satisfação em 2013. Embora tenha tido uma queda de 2 pontos, a média atual de satisfação dos países emergentes é a mais alta, 48% em 2013.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Organização criminosa: um ou dois conceitos?

Hoje (19/9/13) entra em vigor no Brasil a Lei 12.850/13, que cuida do crime organizado, que consiste em integrar, promover, participar ou financiar uma organização criminosa. Esta lei trouxe também o conceito de organização criminosa e a primeira polêmica é a seguinte: ela revogou ou não o conceito dado pela Lei 12.694/12? Que se entende por organização criminosa? Por força da Lei 12.850/13 a organização criminosa foi regrada da seguinte maneira (veja as primeiras considerações de Rômulo de Andrade Moreira, Fabrício da Mata Corrêa, Eduardo Cabette, Cezar Bittencourt e tantos outros no especial organizado pelo portal atualidadesdodireito.com.br; veja ainda os livros de R. Sanchez e Guilherme Nucci): “§ 1 Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. Está atendido o princípio da legalidade (porém, com reservas, em razão das expressões vagas que utiliza; o descumprimento da garantia da taxatividade parece evidente). De acordo com nosso entendimento esse novo conceito revogou o da Lei 12.694/12. A primeira definição de organização criminosa veio com a Lei 12.694/12? Sim. O art. 1 da Lei 12.694/12 criou a possibilidade de julgamento colegiado em primeiro grau, nos crimes praticados por organizações criminosas. No seu art. 2 está contemplada a definição de organização criminosa: “Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.” Esta lei não cominou nenhum tipo de sanção penal, logo, não criou o crime organizado. Deu o conceito de organização criminosa, para fins processuais, mas não criou o crime respectivo. O conceito de organização criminosa dado pela Lei 12.694/12 continua válido? Não. Num primeiro momento cheguei a imaginar o contrário (que os dois conceitos continuariam vigentes, tal como pensa Rômulo Moreira). Refletindo um pouco mais, estou concluindo que houve revogação do primeiro pelo segundo. O conceito dado pela Lei 12.694/12 visava a permitir o julgamento colegiado em primeira instância. Essa possibilidade (de julgamento colegiado em primeiro grau) continua. Mas, agora, o juiz tem que se valer do conceito de organização criminosa da Lei 12.850/13, pelo seguinte: é com esta nova lei que veio, pela primeira vez no Brasil, o conceito de “crime” organizado. O processo (julgado por juiz singular ou por juiz colegiado) existe para tornar realidade a persecução de um crime (ele é o instrumento da persecutio criminis in iuditio). O julgamento colegiado em primeiro grau é instrumento, não a substância. É a forma, não a matéria. Se o instrumento processual existe para tornar realidade o material, o substancial (o essencial), claro que esse instrumento deve estar conectado ao principal. O acessório segue a sorte do principal. Quando os juízes se reúnem coletivamente é para apurar e julgar um “crime organizado”. Eles não se reúnem para julgar a organização criminosa, isoladamente, que constitui apenas uma parte do crime organizado. O que importa para fins penais e processuais é o crime (não a parte dele). Se o conceito de crime organizado está dado pela nova lei, aos juízes competem seguir a nova lei, respeitando o seu conceito de crime organizado, que nada mais é que a soma dos requisitos típicos do art. 2 com a descrição de organização criminosa do art. 1 . Em síntese: doravante, somente pode haver julgamento colegiado em primeira instância quando presentes os requisitos do crime organizado dado pela nova lei (Lei 12.850/13). Desapareceu do ordenamento jurídico válido o conceito dado pela Lei 12.694/12. Concordamos com a tese de Cezar Roberto Bittencourt, Márcio Alberto Gomes da Silva, Sydney E. Dalabrida etc. A nova lei regulou a matéria (organização criminosa) de forma integral. Essa é uma das formas de revogação da lei anterior. Dois conceitos sobre a mesma essência só gera confusão. Também por esse motivo é melhor a interpretação do conceito único: o novo. Agregue-se um outro argumento, de política criminal: se o legislador, por razões de política criminal, optou na nova configuração legal pelo número mínimo de 4 pessoas, é preciso respeitar essa decisão política. E se ela integra o conceito de crime organizado, não como o juiz aplicar o conceito anterior da Lei 12.684/12, que foi construído sob a égide de outras escolhas de política criminal. A posterior derroga a anterior. Quais seriam as diferenças principais entre os dois conceitos de organização criminosa? Três se destacam: a Lei 12.694/12 fala em associação de três ou mais pessoas; a Lei 12.850/13 exige quatro ou mais pessoas. A primeira é aplicável para crimes com pena máxima igual ou superior a 4 anos; a segunda é aplicável para infrações penais superiores a 4 anos. Note-se: a primeira fala em crimes (que não abarcam as contravenções penais). A segunda fala em infrações penais (que compreendem os crimes e as contravenções penais). De qualquer modo, morreu o conceito da Lei 12.694/12. Mas essas diferenças perderam sentido na medida em que o conceito da Lei 12.850/13 revogou (de acordo com nosso entendimento) o dado pela Lei 12.694/12.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Origens dos protestos massivos

O Brasil e o mundo capitalista/consumista/neoescravagista estão enfrentando várias crises (do capitalismo radical e aético, do Estado-nação, da cultura e da ética, de representatividade, do Estado de direito e de confiança). Cada uma da sua maneira prestou sua contribuição para a eclosão do mais expressivo movimento social no Brasil, depois da redemocratização (o movimento está sendo batizado de jornada de junho). Como nos ensina M. Castells, (Redes de indignação y esperanza, p. 29), as raízes mais profundas desses movimentos globais estão na injustiça fundamental de todas sociedades, que são frustrantes da expectativa de justiça das pessoas, expressadas na “exploração econômica, pobreza desesperada, desigualdade iníqua, política antidemocrática, estados repressores, justiça injusta, racismo, xenofobia, negação cultural, censura, brutalidade policial, belicismo, fanatismo religioso (com frequência contra as crenças religiosas dos demais), negligência em relação ao nosso planeta (que é nossa única casa), indiferença pela liberdade pessoal, violação da privacidade, gerontocracia, intolerância, sexismo, homofobia e outras atrocidades presentes na extensa galeria de retratos que representam os monstros que somos (…) cabe agregar a dominação absoluta dos homens sobre as mulheres e crianças como base fundamental de uma injusta ordem social”. Quem está por detrás dos protestos massivos? Pessoas de carne e osso, e no plural (Castells), porque cada uma tem suas razões para ir às ruas. Pessoas com diferentes visões de mundo, crenças, filosofias, mas que, de repente, encontraram algo em comum. O quê? Na tentativa de buscar um eixo comum entre todos os manifestantes das ruas ou, pelo menos, uma explicação para essa surpreendente fenomenologia de massa, talvez nos ajudem palavras como insatisfação, frustração, indignação, ruptura, impotência, falta de esperança, ira, ansiedade, medo etc. Saem às ruas (falo daqueles que lutam por uma causa justa, não dos vândalos) os indignados (com sua situação pessoal, com o momento em que vive o país, com a economia local e mundial, com o péssimo funcionamento dos serviços públicos, com a descrença nas instituições, com a falta de futuro etc.) que querem exteriorizar sua ira, sua insatisfação, ainda que assumindo riscos enormes de um enquadramento penal – muitas vezes injusto – ou de uma violência policial descomunal e bárbara. Os protestos massivos são movimentos emocionais? Sem sombra de dúvida, sim. Como todos os movimentos sociais, o nosso tanto pode se arrefecer (perder força) como pode ganhar contornos progressivos inimagináveis (no campo político, social, econômico, trabalhista, institucional, cultural, educacional, jurídico etc.). De qualquer modo, não há como deixar de reconhecer que ele somente se tornou realidade porque sentimentos e emoções foram transformados em ação. Saiu da teoria e se transformou em algo prático (protestos nas ruas). Precisamente porque esses movimentos espontâneos constituem manifestações de sentimentos e emoções, no seu princípio, não existe mesmo um programa ou uma estratégia política (Castells). São movimentos apartidários, porque refutam os partidos políticos estabelecidos (o que não significa anti-partidário). Na verdade, como movimentos de contrapoder, eles tendem a recusar todos os poderes, sobretudo suas barbáries. São movimentos que possuem liderança, porém, sem líderes (ao menos no princípio). Quando surgem os líderes, o normal passa a ser construção de programas e estratégias políticas (porque é assim que as instituições funcionam dentro do estado democrático de direito).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Parasitismo

O trabalho escravo constitui o exemplo mais evidente de parasitismo social. O Brasil, onde a escravidão durou mais tempo (388 anos), continua sendo um país escravocrata (logo, parasita). Desde 1995 (diz o site da PEC do trabalho escravo), quando o governo federal criou o sistema público de combate a esse crime, mais de 42 mil pessoas foram libertadas do trabalho escravo no Brasil. No mundo, a estimativa da OIT é que sejam, pelo menos, 12 milhões de escravos. Não há estimativa confiável do número de escravos no país. Por isso, o governo não usa nenhum número. Na zona rural, as principais vítimas são homens, entre 18 e 44 anos. Na zona urbana, há também uma grande quantidade de sul-americanos, principalmente bolivianos. Nos bordéis, há mais mulheres e crianças nessas condições. Dos libertados entre 2003 e 2009, mais de 60% eram analfabetos ou tinham apenas o quarto ano incompleto. Ou seja, eram adultos que não estudaram quando crianças. Trabalho escravo também é filho do trabalho infantil. O Maranhão é o principal fornecedor de escravos e o Pará é o principal utilizador (sugador). As atividades econômicas em que trabalho escravo mais tem sido encontrado na zona rural são: pecuária bovina, desmatamento, produção de carvão para siderurgia, produção de cana-de-açúcar, de grãos, de algodão, de erva-mate, de pinus. Também há importante incidência em oficinas de costura e em canteiros de obras nas cidades. Uma das formas clássicas do parasitismo é o (parasitismo) social, que ocorre quando uma classe dominante (por exemplo: senhores de engenho), valendo-se dos seus privilégios, de forma indevida (injusta e/ou imoral, seja por meio da violência, seja por intermédio da fraude) suga (se enriquece ou obtém vantagem), mediante a apropriação ou a exploração, o trabalho (por exemplo: dos escravos) ou os bens da classe dominada (parasitada). Há várias outras formas de parasitismo, como o empresarial, o funcionarial, o situacional, o político etc. Sobre este fenômeno é fundamental a leitura de M. Bomfim, A América Latina. Desgraçadamente o parasitismo (em suas várias modalidades) faz parte da nossa formação cultural. É um dos males de origem do Brasil. Enquanto não eliminado ou drasticamente reduzido estamos condenados ao atraso, às barbáries, em suma, à ausência de civilização.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Passe livre para uso dos aviões da FAB

O Sapo e o Escorpião Certa vez, um escorpião aproximou-se de um sapo que estava na beira de um rio. O escorpião vinha fazer um pedido: “Sapinho, você poderia me carregar até a outra margem deste rio tão largo?” O sapo respondeu: “Só se eu fosse tolo! Você vai me picar, eu vou ficar paralisado e vou afundar.” Disse o escorpião: “Isso é ridículo! Se eu o picasse, ambos afundaríamos.” Confiando na lógica do escorpião, o sapo concordou e levou o escorpião nas costas, enquanto nadava para atravessar o rio. No meio do rio, o escorpião cravou seu ferrão no sapo. Atingido pelo veneno, e já começando a afundar, o sapo voltou-se para o escorpião e perguntou: “Por quê? Por quê?” E o escorpião respondeu: “Por que sou um escorpião e essa é a minha natureza.” A Folha de S. Paulo de 04.07.13, p. A11, cumprindo seu papel vigilante, noticiou que Henrique Alves mandou um avião buscar sua família em Natal (RN) para assistir ao jogo do Brasil no Rio de Janeiro. Renan Calheiros usou um avião para ir a um casamento. O Ministro Garibaldi Alves também foi ao jogo. São escorpiões. É da natureza deles o uso o da coisa pública, como se fosse bem privado. Patrimonialismo. Grande parcela do Brasil está mobilizada contra esse tipo de malversação do dinheiro público. Mas nada adiantou. É da natureza dos escorpiões políticos cravar o seu ferrão nas contas públicas, para satisfação de prazeres privados. Por conta disso tudo, não podemos esmorecer. No livro Ejemplaridad pública (Madrid: Taurus, 2009), Javier Gomá Lanzón procurou descrever as virtudes do político e do administrador público [para não incorrer em improbidades puníveis pelas leis], sublinhando que o “eu” (o estilo, o desempenho desse gestor da coisa pública) depende (a) dos costumes da polis (das cidades, das urbes) assim como (b) da orientação (de vida, de liberdade) que é dada em direção à virtude: mores (costumes) e virtus (virtudes). De uma certa maneira tudo isso já estava presente na obra de Aristóteles (Ética a Nicômaco), que gira em torno da seguinte ideia: “toda ação está dirigida a um fim, como toda função se inclina para um bem; o fim supremo do homem, perfeito e suficiente, é a felicidade; a ação humana que tem como finalidade a felicidade é a virtude perfeita ao longo de toda vida”. Se é dos costumes que nasce a ética, não se pode esperar do homem público vulgar um comportamento ético (e exemplar) se o seu meio, se o seu ambiente vital e profissional, respira maus costumes (corrupção, malandragem, apadrinhamento, patrimonialismo, nepotismo, fisiologismo, ganhos por fora, enriquecimento ilícito, compra de votos etc.). Como esperar virtuosidade [probidade] do homem público vulgar se a virtude não reside num só ato, sim, num estilo de vida, numa forma de “viver e de envelhecer”? A “polis” (para Aristóteles), mais que local para se assegurar a sobrevivência, seria o lugar para se viver bem e para praticar a virtude. Mas como esperar virtude de quem não é favorecido por um ambiente são, reto, correto? Uma das maiores crises da moderna democracia reside justamente na ausência (quase total) de costumes sãos, virtuosos, na “polis”. Diante da ausência de costumes moralizadores, que por si sós poderiam gerir a vida em comunidade, surge a necessidade da elaboração das leis, regidas pela lógica da coerção, da sanção (não porém da observância espontânea, que derivaria de um conjunto de bons costumes). Houve uma época em que não havia direito escrito (ius non scriptem, sine litteris). Hegel afirmava a superioridade dessa época, em relação à atual (onde abundam as leis). Rousseau afirmou: “Licurgo estabeleceu costumes que quase dispensavam agregar a eles leis. As leis (…) contêm os homens, sem mudá-los”. O que muda (ou orienta) o comportamento humano em profundidade não é a lei, sim, o costume (a ética). Faltando os costumes (a moralidade social) só resta esperar que a lei cumpra o papel de punir (coerção) as desviações assim como a de irradiar entre a população a sua força (“pedagógica”) moralizadora. Os costumes retos são muito mais profundos porque, mais que orientar o comportamento individual ou coletivo, “educam o coração”. Houve um período histórico em que os costumes chegavam a derrogar as leis (“vincere rationem et legem“, como afirmava o Imperador Constantino). Mas não é esse o momento que vive o direito na atualidade, sobretudo depois do Iluminismo (século XVIII), que deu ênfase à legalidade (todo direito está fundado na lei) e à codificação (esta sendo obra, sobretudo, de Napoleão). Pouco espaço ficou reservado para os costumes, como fonte do direito, depois da eclosão do legalismo estatal (ou estatalismo legalista), que foi secundado por Kelsen (que identificava a lei com a democracia, a lei com o direito, a legalidade com a legitimidade). A função pedagógica que a lei (com pretensão de durabilidade) deve desempenhar, agora mais que nunca (tendo em vista as sociedades complexas que vivemos), inclusive nas democracias modernas, só se consegue quando os seus termos estão em consonância com as aspirações (razoáveis) arraigadas da população. Neste caso a lei desenvolve pautas de conduta louvadas por todos, sendo suas desviações não só juridicamente senão, sobretudo, moralmente reprovadas. Se a lei de improbidade administrativa no Brasil não atingiu ainda seu potencial máximo de efetividade seguramente é porque, dentre tantos outros fatores, falta-lhe uma sólida base consuetudinária. “As leis são sempre vacilantes quando não se apóiam nos costumes; os costumes formam o único poder resistente e duradouro do povo” (dizia Tocqueville). “As leis, sem os costumes, são vãs”, dizia Horácio. Mas que tipo de costumes deve orientar a boa aceitação das leis? Claro que os costumes genuinamente democráticos (construtivos, cívicos, civilizadores). No que diz respeito à virtude, Javier Gomá Lanzón propõe, como hipótese de trabalho (como tese), a sua redefinição: de “virtude-participativa” (de Aristóteles) para “virtude-exemplaridade”. Não lhe parece correto separar a vida privada da vida pública, a casa e o trabalho da gestão pública. Cícero inseria, dentro do conceito de honestidade, quatro componentes: (a) sabedoria, (b) magnanimidade, (c) justiça e (d) decoro – decorum. Javier Goma propõe dar ao decoro o sentido de exemplaridade, como “uniformidade de toda vida e de cada um dos atos” (como dizia Cícero). Do administrador público (eleito ou concursado) o que se espera hoje, no mundo moderno e complexo que vivemos, é que seja sábio, magnânimo, justo e honesto, ou seja, exemplar. Quem foge deste padrão não só quebra a confiança que lhe foi depositada (pelos titulares da soberania democrática), como incorre em desviações sancionadas pela lei (pena que a lei, no nosso país, não tenha a eficácia que se espera dela).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – PEC 37 foi rejeitada. E o que fazer com o crime organizado S.A.?

A rejeição da PEC 37 representa mais uma vitória histórica do movimento pró-moralização do nosso país, mas muitas lacunas continuam. Apesar do oportunismo do legislativo, o certo é que o povo unido, em torno de propósitos sensatos (não aloprados), tem uma força insuperável (nos estados democráticos). Ulisses Guimarães (pai da Constituição cidadã) disse: “o que mete medo em político é o povo na rua”. Estamos saboreando, prazerosamente, mais uma vitória. Primeiro foram os 20 centavos. Depois foi a vez do governador de SP cancelar o aumento dos pedágios. Agora chegou a vez da rejeição da PEC 37. É grande a emoção que muita gente está sentindo, mas, coisas muito sérias ficaram pendentes: (a) hoje o MP investiga por meio de uma resolução e resolução não é lei. É isso que sempre defendi, inclusive naquele meu artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 2012. Eu penso que, hoje, sem lei, o MP não pode presidir investigação. No Estado de Direito, a lei é uma garantia de todos. Logo, a rejeição da PEC 37 exige a elaboração urgente de uma lei que discipline com clareza essa investigação pelo MP, de forma a evitar todo tipo de abuso por parte dele, a começar pela falta de controle no arquivamento (acabar com o crime, na medida do possível, sim, porém, não de forma abusiva ou criminosa; não se pode matar um mostro e criar outro; todos que contam com poder tender a abusar dele; logo, limites, contenção, lei); enquanto não aprovada lei nesse sentido os advogados vão continuar contestando as investigações do MP (e, hoje, sem lei, com forte chance de anular tudo): (b) é imprescindível que todos os órgãos investigativos (Polícia federal, Polícia estadual, polícia científica, Coaf, Ministério Público, Banco Central, agentes da receita federal etc.), todos, estabeleçam (assim que possível) um consenso, bem como parcerias de esforços (complementares ou concomitantes) para combater o crime organizado, que está enraizado no poder público brasileiro corrupto até o último fio de cabelo. A CPI do Cachoeira, arquivada com um documento indecente de 2 páginas, é a prova inequívoca de que grande parcela dos políticos (bem grande mesmo) não é parte da solução do problema da corrupção, sim, parte do problema, porque está comprometida até à medula com o crime organizado, que é a fonte direta do indecente serviço público prestado para a humilhada e indignada população. É político desse tipo, ainda que tenha votado contra a PEC 37, que tem que ser varrido do Congresso Nacional. Constitui um erro sem precedente (no campo das investigações criminais) não ver que todos os órgãos públicos (polícia, Ministério Público, receita federal, Coaf, Banco Central etc.) devem somar suas energias, não se dividir, diante do crime organizado S.A. Todos os esforços de todas as instituições devem ser somados, porque é grande o desafio de combater o crime organizado privado ou público-privado. No mundo da economia submetida (em grande parte) ao crime organizado e à lavagem de capitais, lavagem essa que é feita, sobretudo (mas não exclusivamente), por alguns bancos norte-americanos e europeus, que internalizaram (naturalizaram) seus procedimentos lucrativos por meio de métodos duvidosos ou criminosos, tornou-se difícil distinguir o que é ganho lícito do que é ganho ilícito. Somente uma equipe muito especializada e afinada pode fazer frente a esse imenso poder econômico-financeiro que, sob a égide do capitalismo neoliberal ou de tradição escravagista (como é o caso do Brasil), levou a desigualdade e a desgraça a milhões de seres humanos hoje completamente excluídos da possibilidade de uma vida com mínima dignidade. Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Perfil dos presos no Brasil em 2012

Os ricos também são delinquentes? Se olharmos para as pessoas que estão recolhidas nos presídios brasileiros rapidamente chegamos à conclusão (falsa) de que não. A prisão não é um referencial confiável para se saber quem comete crime no Brasil. Ela serve de referência para se saber quem vai para a cadeia. O mensalão (que envolve o PT), a corrupção na concorrência do metrô em SP (que envolve o PSDB), um milhão de outros casos criminais (que envolvem todos os demais partidos políticos, os políticos, grande parcela dos empresários etc.), as lavagens de dinheiro (que envolvem praticamente todos os bancos do planeta), os governos e ministérios (que envolvem as classes dominantes), o banco do Vaticano, sim, esses casos nos revelam que os ricos também são criminosos, gerando danos incomensuráveis para uma multidão de vítimas. Está crescendo no Brasil a taxa de encarceramento? Sim. Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do Ministério da Justiça, apontou um crescimento de 21,4% na população carcerária brasileira no período de 2008 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para cada 100mil habitantes, em uma população de 190.732.694 habitantes, de acordo com o IBGE. A taxa de presos por 100mil habitantes, que em 2008 era de 238,1 por 100mil habitantes, também apresentou crescimento de 20,6% no período. Há um grande déficit de vagas no sistema prisional? Sim. Muito inferior ao crescimento da população carcerária foi o crescimento no número de vagas no sistema penitenciário no mesmo período. Em 2008 existiam 296.428 vagas, número que em 2012 chegou a 310.687, um crescimento de apenas 4%, resultando em 1,8 presos por vaga. Mais de 240 mil presos estão recolhidos sem a vaga correspondente. Superlotação é o que caracteriza o sistema. Entre 2008 e 2012 houve aumento no número de presos provisórios? Sim. Outra taxa que continuou em ascensão em 2012 foi o número de presos provisórios. Dos 513.713 detentos custodiados no sistema penitenciário, 195.036 eram presos provisórios, ou seja, 37,9% do total de custodiados. Houve um crescimento de 25,1% no número de presos provisórios entre 2008 e 2012. Em 2012, essa população era de 94,5% de presos do sexo masculino e 5,5% do sexo feminino. No que tange o sistema de vagas a situação é ainda pior. Esses 195 mil presos estão distribuídos em 94.540 vagas, cerca de 2 detentos para cada vaga, um déficit de mais de 100 mil vagas. Quem são os presos? Em 2012, o sistema penitenciário brasileiro manteve o mesmo perfil de presos que nos anos anteriores. No que diz respeito à raça, cor ou etnia, os pardos eram, em 2012, maioria no sistema penitenciário com 43,7% de presença nas prisões brasileiras. Os de cor branca 35,7%, os negros 17%, a raça amarela 0,5% e os indígenas 0,2%. Outras raças e etnias apontaram 2,9% de presença. Segundo o próprio relatório do InfoPen, há um erro de cálculo nessa estática, registrando uma inconsistência de 28 mil pessoas no valor automático. Qual é o nível de escolaridade do preso? O nível de escolaridade entre a maioria dos presos, em 2012, era o Ensino Fundamental Incompleto (50,5%). Do restante, 14% eram alfabetizados, 13,6 tinham Ensino Fundamental Completo, 8,5 haviam concluído o Ensino Médio, 6,1% eram analfabetos, 1,2% tinham Ensino Médio Incompleto, 0,9% haviam chegado a universidade mas sem conclusão, 0,04 concluíram o Ensino Superior e 0,03 chegaram a um nível acima de Superior completo. Os jovens são a maioria dos presos? Sim. Os jovens de 18 a 24 anos eram maioria nas penitenciárias brasileiras em 2012 (29,8%). Entre a faixa etária dos 25 a 29 anos essa taxa foi de 25,3%. Do restante, 19,1% tinham entre 30 e 34 anos, 17,4% entre 35 e 45 anos, 6,4% entre 46 e 60 anos, 1% acima de 60 anos e 1,2% não informaram. O perfil do preso brasileiro se mantém há anos entre os jovens, pardos e de baixa escolaridade. Essa situação permanece, pois não são apresentadas políticas públicas realmente eficazes de inserção do jovem na atual sociedade, ao contrário, economiza-se em escola para construir presídios. É preciso trabalhar a base da sociedade ampliando as possibilidades de participação social e no mercado de trabalho, a fim de se evitar que nossas crianças e jovens vejam como única saída, já que quase sempre ela sempre se apresenta como fácil a entrada para criminalidade. Outra dificuldade é a falta de meios, dentro das cadeias, para que o detento que está ali, não volte a reincidir. Mas o cenário, de celas amontadas de gente, presídios em situações precárias e sem acesso ao trabalho e a escola não favorecem a volta do preso ao convívio social. *Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Perda de mandato: vergonha nacional corrigível

No julgamento do mensalão o STF acertou ao determinar a perda do mandato de todos os parlamentares condenados por abuso de poder ou violação de dever funcional. Neste ponto essa é a única interpretação justa e sensata da Constituição Federal. No julgamento do senador Ivo Cassol o STF errou (data vênia) ao não decretar a perda do seu mandato, transferindo essa responsabilidade ao Senado Federal. Sobre o tema há uma regra e uma exceção (ambas previstas nas leis e na CF). Nas leis e na CF, não na cabeça de cada Ministro! A única tarefa interpretativa consiste em saber o que entra na regra (perda decretada pelo STF) e o que vai para a exceção (cassação determinada pela Casa Legislativa). Aos parlamentares condenados no caso mensalão (João Paulo Cunha, José Genoíno, Pedro Henry e Valdemar Costa Neto), o STF (por 5 votos a 4) aplicou a regra (perda do mandato decretada pelo STF). Ao senador Cassol, também condenado pelo STF, diante dos votos dos dois novos ministros (Barroso e Teori), aplicou-se a exceção (perda do mandato a ser decretada pela Casa Legislativa). De acordo com minha opinião, os dois casos entram na “regra” (não na exceção). Dois casos substancialmente idênticos (atos corruptivos praticados no exercício da função), com tratamentos distintos. Errou o STF nesta última decisão. Estão equivocados (data vênia) Barroso e Teori. A regra do jogo já estabelecido pelas leis vigentes é a seguinte: Ao STF, quando condena criminalmente uma pessoa, compete decretar a perda do cargo ou do mandato eletivo em duas hipóteses: (a) quando se trata de crime cometido com abuso de poder ou violação de dever funcional ou (b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos. É o que diz o art. 92, I, do Código Penal. Os réus do mensalão foram enquadrados nessa lei (porque abusaram do poder, violaram dever funcional e ainda foram condenados a mais de 4 anos). É incompreensível que ela não tenha sido aplicada inclusive para o senador Cassol, que também foi condenado por violar o dever funcional (fraude em licitações, que significa corromper o mandato público). Nos casos de agentes públicos ou políticos que atuam contra a administração pública, que corrompem sua função, a decisão sobre a perda do mandato não pode ser corporativa. Esse campo é do controle jurídico, não político. A lógica constitucional já descorporativizou o assunto, que retrocedeu com os votos de Barroso e Teori. A decisão do STF, no caso mensalão, está em conformidade com o art. 15, III, da CF, que prevê a suspensão dos direitos políticos de quem é condenado criminalmente em sentença definitiva. Como desdobramento natural, diz o art. 55, IV, que, nesse caso, a Casa Legislativa apenas declara a perda do mandato, não tendo nada que decidir (visto que a decisão aqui é judicial, ou seja, exógena ou externa). Essa é a regra geral que comanda o assunto. Não se pode deixar por conta do Parlamento a decisão de decretar ou não a perda do mandato (quando há condenação criminal por crimes funcionais) porque ele é capaz das maiores atrocidades morais imagináveis (em incontáveis vezes isso já ocorreu: caso Donadon, caso Renan, caso da deputada filmada com do dinheiro da corrupção na mão etc.). Um covil de malandros parasitas (salvo exceções, claro) não titubeia um segundo para acobertar a malandragem alheia (desde que algum benefício parasitário extra lhe mostre possível). É esse dado relevantíssimo que escapou da percepção dos ministros Barroso e Teori, cujos votos colocaram o galinheiro nas mãos e nas (ir) responsabilidades das raposas. Qual é a exceção? A regra citada comporta uma única exceção: quando o STF condena o parlamentar e ausentes os requisitos do art. 92, I, do CP (por exemplo: quando o condena a pena alternativa ou substitutiva, em razão de um acidente de trânsito), a decisão de decretar ou não a perda do mandato é endógena ou interna, ou seja, exclusiva da Casa Legislativa (CF, art. 55, VI). Essa é a exceção à regra geral dos arts. 92,I, do CP c.c. art. 15, III e art. 55, IV, da CF. Critério da regra-exceção O conflito aparente de normas, no caso da perda do mandato parlamentar pelo STF, se resolve pelo critério interpretativo da regra-exceção. A regra é a prevista no art. 55, IV, c.c. os arts. 15, III, da CF e 92, I, do CP, enquanto a exceção está prevista no art. 55, VI, da CF. O caso mensalão se encaixava na regra, não na exceção. O caso do senador Cassol, que corrompeu o exercício da sua função pública, também entra na regra (não na exceção). O caso Donadon, da mesma maneira, entra na regra e não na exceção (porque estamos falando de crimes graves contra a honorabilidade do cargo, patente abuso de poder e violação de dever). Todos compõem a regra. Todos devem seguir a mesma regra, já pela atual legislação e Constituição brasileira (repita-se: 92,I, do CP, c.c. art. 15, III, e art. 55, IV). Competente exclusivo para decretar a perda do mandato (no caso de condenação criminal por crime funcional) é o STF, não a Casa Legislativa respectiva. Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello votaram acertadamente pela regra. O controle da corrupção na administração pública, em caso de condenação judicial fundada no art. 92, I, do CP, é jurídico, não político. Quando o poder jurídico não faz o devido controle do agente político, fundado no devido processo legal, o poder jurídico convalida a “vulgarização do mundo” e dohomo democraticus. O recado que se transmite é o seguinte: nossa sociedade (pós-moderna) parece estar de acordo com a tese de que devemos prescindir da virtude dos seus cidadãos, especialmente quando agentes públicos. Dá a sensação de que a virtude da honestidade (e exemplaridade) não seria necessária. Claro que o juiz não pode fazer juízos morais para condenação ninguém. Toda condenação tem que ter amparo jurídico. Mas quando há amparo jurídico torna-se uma imoralidade não reprovar quem fez uso indevido da coisa pública, que consiste numa extensão inadequada da liberdade. Quem se presta a praticar e exercer as vulgaridades contemporâneas, no campo político, não pode receber nenhum tipo de aprovação, sob pena de convalidarmos incorretamente as flexibilizações éticas do mundo atual, tal como fez, por exemplo, o senhor Lobão Filho (ao dizer que a ética não é relevante). Essa nos parece a interpretação correta do assunto em debate. É a interpretação, de outro lado, que respeita não só o conteúdo das normas envolvidas (art. 92, 1, do CP, e arts. 15, III, 55, IV e 55, VI, da CF), senão também todos os poderes constituídos. Porque será uma grave ofensa ao STF se ele declarar a perda do mandato (nos termos do art. 92, I, do CP) e a Câmara dos Deputados não acatar (desautorizar) essa decisão. Ficaria uma decisão judicial sob o crivo do Poder Legislativo. Nada mais disruptivo e assistemático. Decisão de juiz se cumpre (depois da coisa julgada, quando então não cabe mais nenhum recurso). Os poderes são independentes e é fundamental que se respeite essa independência, mas devem ser harmônicos. Daí a necessidade de se delimitar com precisão quando o STF decreta a perda do mandato do parlamentar (decretação exógena) e quando essa tarefa é da própria Casa Legislativa (decretação endógena). Ministro Barroso caiu numa armadilha e virou legislador O passado do ministro Barroso não permite qualquer tipo de questionamento sobre sua competência e honorabilidade. Mas ele é um ser humano, logo, também pode se equivocar. Na verdade, ele se meteu numa grande enrascada ao decidir que o poder de decretar a perda do mandato, no caso de parlamentar corrupto condenado criminalmente, competiria ao próprio Parlamento (e não ao STF). No século 6 a.C., Esopo escreveu incontáveis fábulas morais. Dentre elas, esta (veja Folha de 1/9/13, Ilustríssima, p. 8): “Uma lebre sentiu sede e desceu num poço para beber da água. Após haver-se fartado da deliciosa bebida, ia sair de lá quando se deu conta de que estava confinada, pois não tinha como galgar a subida, e começou a ficar apreensiva. Nisso, uma raposa veio ter ali também e, ao deparar com ela, disse: ’Realmente você se meteu numa grande enrascada! Pois devia primeiro resolver como iria sair do poço e, só depois, descer dentro dele”. O ministro Barroso não podia imaginar que sua decisão geraria a confusão que gerou no caso Donadon, tendo a Câmara dos Deputados, malandramente, mantido o mandato do deputado que está preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos. Ou seja: não pode votar nem ser votado, mas continua deputado federal. Mais uma singularidade que só se encontra no Brasil, ao lado das jabuticabas, claro. Mas o ministro Barroso não é a lebre do conto de Esopo. A lebre não tinha como sair da enrascada que se meteu, salvo se se transformasse em raposa. O ministro, acuado pela imoralidade ímpar do Parlamento brasileiro, achou uma saída: assumiu as funções legislativas e passou a legislar. Vejamos os detalhes da sua técnica e construção legislativas: *Artigo extenso: leia o texto completo em www.atualidadesdodireito.com.br/lfg

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Policial mordeu o cachorro

Num acidente de trânsito (BR 174) uma pessoa morreu degolada pelo cinto de segurança. Todos os jornais noticiaram. Não noticiaram quantas pessoas foram e são salvas por ele. Como sempre, notícia não é o cachorro que morde o policial, sim, o policial que morde o cachorro. Para o imprevidente motorista brasileiro (há exceções, claro) seguem dez dados sobre segurança viária (OMS): 1 – Mais de 1,3 milhão de pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito em todo o mundo. 2 – Cerca de 50 milhões de pessoas se ferem ou ficam com sequelas permanentes de acidentes de trânsito em todo o mundo. 3 – Metade das vítimas são os usuários mais vulneráveis das vias: pedestres, ciclistas e motociclistas. 4 – Acidentes de trânsito custam até 4% do Produto Interno Bruto de muitos países. 5 – Quando corretamente utilizados, cintos de segurança podem reduzir o risco de morte em um acidente em 61% (dos ocupantes internos do veículo). 6 – O uso obrigatório de assentos especiais para crianças nos veículos podem reduzir a morte de crianças em 35 %. 7 – Capacetes diminuem até 45% os ferimentos fatais ou severos na cabeça. 8 – Reforçar leis sobre bebida e direção em todo mundo poderia reduzir em 20% os acidentes relacionados ao álcool. 9 – Para 1 km/h reduzido na velocidade média, há uma queda de 2% no número de acidentes. 10 – Medidas simples e baratas de engenharia nas vias, como faixas de segurança, podem salvar milhares de vida. * Fonte Organização Mundial da Saúde.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – População carcerária e trabalho nas penitenciárias

Segundo levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, apenas 17% do total presos brasileiros exerciam algum tipo de atividade laboral dentro do sistema penitenciário, em 2012. Dos quase 550.000 presos cerca de 92.000 trabalhavam em atividades dentro dos presídios, 167 para cada grupo de 1.000 presos. Nos últimos 5 anos, o número de presos que trabalham dentro das prisões cresceu 6%, mas a média ainda é baixa, 164 presos cada 1.000 habitantes. As mulheres, respeitando as proporções dos números, geralmente trabalham mais que os homens, 25% do total de presas estão desenvolvendo alguma atividade laboral dentro dos presídios, enquanto entre os homens a taxa é de 16%. As atividades internas que mais foram desenvolvidas pelos presos em 2012 foram: apoio ao estabelecimento penal (42%), parceria com a iniciativa privada (32%), artesanato (16%), atividade industrial (4%), parceria com órgãos do Estado (4%), parceria com paraestatais (ONGs e Sistema S) (1%) e atividade rural (0,9%). O estado que apresentou um melhor panorama para esse quesito foi Santa Catarina, onde, na média dos 5 anos, 490 presos para cada grupo de 1.000 estavam em atividades laborais internas. No ano de 2012, 39% dos presos estavam trabalhando, 51% entre as mulheres e 38% entre os homens. Já o Ceará foi o estado que apresentou a pior taxa. Em média, de 2008 a 2012, apenas 21,8 em cada 1.000 presos estava desenvolvendo alguma atividade laboral dentro das penitenciárias. Apesar disso, segundo os números apresentados nesses anos pelo InfoPen, foi o que teve maior crescimento, passando de 2 para 26,3 presos para cada grupo de 1.000 habitantes. Apenas 3% do total de presos estavam em atividades em 2012, 4% das mulheres e 3% dos homens. Contudo, se a comparação a ser feita for dos últimos 4 anos, o Rio de Janeiro é o estado com pior desempenho (o ano de 2008 não teve os números disponibilizados). Nesse estado, em média, 17,7 de cada 1.000 presos estava desempenhando alguma atividade laboral dentro dos presídios entre 2009 e 2012. Em 2012, apenas 2% da população carcerário estava trabalhando internamente, 9% das mulheres e 1% dos homens. São Paulo, estado com a maior população carcerária do país (190.818 presos até junho de 2012), apresentou uma média de 234 presos em cada 1.000 que estão desenvolvendo atividades laborais dentro dos presídios nos últimos 5 anos. Em São Paulo, em 2012, do total da população carcerária, 22% estavam em atividades laborais, entre as mulheres esse número era de 31% e entre os homens 22%. Confira o infográfico: http://atualidadesdodireito.com.br/iab/files/info-atividade-laboral-brasil.jpg

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Primeiro trimestre de 2013 é o segundo mais violento em 6 anos

Ao contrário do que foi declarado pelo governador Geraldo Alckmin em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, na qual disse reconhecer que os índices de criminalidade no estado estavam altíssimos, entretanto, vinham apresentando queda mês a mês (Alckmin reconhece que índices de criminalidade estão altos em SP), os números apresentados pela Secretaria de Segurança de São Paulo mostram que no primeiro trimestre de 2013 relação ao mesmo período nos últimos 5 anos, ele vem sim, crescendo. Só no primeiro trimestre de 2013 foram registrados 1.276 homicídios no estado de são Paulo, número quase equiparado aos 1.302 mortos em 2010, ano mais violento desde 2008. Isso significa que de 2008 a 2013 houve um crescimento de 6,6% no primeiro trimestre. Em 2008, foram registradas no primeiro trimestre 399 mortes por mês em média, 13,3 por dia, sendo uma morte a cada 1 hora e 48 minutos. Já em 2013, o estado de São Paulo registrou 425 mortes por mês, 14,2 por dia, ou seja, uma morte a cada 1 hora e 41 minutos. Veja a tabela clicando aqui Efeito um pouco diferente aconteceu, por algum tempo, com a cidade de São Paulo. A cidade, que no primeiro trimestre de 2013 registrou 325 homicídios, em 2008, no mesmo período, havia registrado 336 mortes, obtendo uma queda de 3,2%. Mas, apesar da aparente queda, desde 2011 essas taxas vêm apresentando uma alta considerável. O número de homicídios que no primeiro trimestre de 2011 foi de 236, apresentou, no mesmo período em 2013 um crescimento de 37,7%. A Capital foi responsável, em 2013, por 108 mortes por mês em média, 3,6 mortes por dia, ou seja, uma morte a cada 6 horas e 39 minutos. Esse índice, em 2011 era de 78,7 mortes por mês, 2,6 por dia, ou uma morte a cada 9 horas e 9 minutos. Observe a tabela clicando aqui É preciso rever com urgência as políticas de segurança públicas adotadas pelo governo do Estado de São Paulo. Tomando como base o ano de 2011, percebe-se que é possível sim reduzir o número de mortes. Mas convém entender quais as carências do estado que levaram a um crescimento como o que vem ocorrendo nos últimos anos. De qualquer modo, já se sabe desde a antiguidade que não é com violência que se combate a violência. * Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Por que passamos a odiar o serviço público, o Estado, a política e os políticos?

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do portal atualidadesdodireito.com.br. Estou noblogdolfg.com.br Quando um jovem domesticado pelo consumismo contemporâneo conversa com pessoas sexagenárias ele escuta histórias incríveis, como a da boa qualidade da educação nas escolas públicas, que antigamente a polícia e a Justiça funcionavam bem (ou muito melhor que hoje), que os presídios não eram tão deteriorados, que se podia despreocupadamente andar à noite pelas ruas da cidade etc. O serviço público ou, pelo menos, alguns setores do serviço público funcionam bem. O que caracterizava esse bom serviço público? A padronização, que facilita o gerenciamento burocrático assim como a realização do ideal de igualdade (mesmo serviço para todas as pessoas), que está na raiz da distribuição dos bens públicos nos estados com baixa desigualdade. Ocorre que, a partir dos anos 80, para salvar o modelo capitalista que entrava em recessão, desenvolveu-se uma nova cultura, a do consumismo individualista, personalizado, egoísta, que promove a socialização material do indivíduo assim como sua diferenciação, conferindo-lhe “status”; essa nova cultura conflita radicalmente com o serviço público padronizado, generalizador, burocratizado. O serviço público, prestado pelos agentes e autoridades do Estado, caiu em desgraça, porque não atende o desejo (a lei) de diferenciação do consumidor, que passou a ser oferecido pelo mercado (veja W. Streeck, emPiauí, 79, p. 61). A partir do momento em que nossos desejos começaram a se dirigir para o produto ou o serviço personalizado, individualizado, estratificado ou sofisticado, que não é evidentemente prestado pelo Estado, passamos a odiá-lo (ou a refutá-lo), até por uma questão de diferenciação de grupos ou classes (dá “status” ter um carro, especialmente quando personalizado, um atendimento médico distinguido, colocar o filho numa escola cara, frequentar lugares ricos etc.). Primeiro caiu em desgraça o Estado, depois o serviço público (os serviços privados seriam mais eficientes); logo a contaminação alcançou também a política e os políticos (que enfrentam uma brutal senão a pior crise de credibilidade). Tudo que é estatal é visto, hoje, com desconfiança, com descrédito. Isso se passa com a educação, saúde, polícia, Justiça, agências públicas, infraestrutura governada pelo poder público (aeroportos, portos, estradas, hospitais) etc. Não há como não reconhecer que as democracias ocidentais passaram por uma profunda transformação neoliberal, que resultou mais acentuada em países com tradição escravagista (como o Brasil). O que Albert Hirschman escreveu sobre as ferrovias estatais da Nigéria (veja W. Streeck, em Piauí, 79, p. 65), bem sintetiza a nossa atual realidade: “conforme os mais ricos perdem o interesse pelo serviço coletivo, e se voltam para as alternativas privadas – mais caras, mas, para eles, acessíveis -, sua saída acelera a deteriorização dos trens públicos e desestimula o seu uso, mesmo entre aqueles que dependem deles porque não podem pagar por alternativas privadas”. Ou seja: o serviço público (educação, saúde, segurança etc.) consegue manter um certo nível de satisfação enquanto é utilizado também pelos ricos. Aquilo que não é usado pelos ricos se deteriora. Isso explica, adequadamente, a razão pela qual os presídios nunca constituíram um bom serviço público. Quando os ricos (os que podem pagar) deixam de utilizar um determinado serviço ou bem público, em razão da lei da diferenciação do consumidor, vem o colapso. Esse é o motivo pelo qual o BNDES tem vida longa.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Profunda insatisfação do povo

O termômetro da saturação chegou ao seu limite máximo (conforme a 114ª pesquisa do CNT/MDA, realizada em julho de 2013, a insatisfação com a corrupção – principal causa dos protestos – chegou a 55%; insatisfação com a qualidade dos serviços de saúde: 47,2%; insatisfação com os gastos da Copa do Mundo: 43,7% etc.). Há, na sociedade brasileira, um profundo mal-estar e, em consequência, o desejo de mudança. Aliás, o mesmo desejo de mudança que levou o PT ao poder em 2002 (apesar de todos os medos que ele representava para a sociedade financista conservadora) passou a constituir o combustível das jornadas de junho. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PSDB não o teria trocado pelo PT. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PT não estaria fazendo protestos nas ruas e nas redes sociais (contra tudo e contra todos). PT e PSDB, juntamente com os seus partidos coligados, têm pela frente uma longa jornada para recuperar a confiança da população (os dois devem ser citados conjuntamente porque é difícil encontrar um desmando no governo lulista que não tenha ocorrido também no governo dos tucanos. Um exemplo: uso indevido de aviões da FAB – por Renan, Garibaldi e Henrique Alves -; no tempo do PSDB houve um ministro que chegou a viajar de férias com a família toda para Fernando de Noronha). Sendo isentos e honestos, não há como ver nos protestos massivos de junho um movimento contra o capitalismo como sistema. Não é isso que está sendo postulado nas ruas. Ninguém está querendo destruir o capitalismo para colocar no seu lugar o marxismo ou o socialismo real ou o comunismo (praticamente não se viam bandeiras ou cartazes com a imagem do Che Guevara, Fidel etc.). Os protestos, mais propriamente, são contra os excessos e os abusos do modelo econômico-financeiro e político vigentes (seus exageros é que devem ser corrigidos). Note-se que nem sequer foi pedida a destituição de qualquer político (ou governante). Simplesmente se contesta o malfeito, o abuso, a injustiça, a desigualdade de tratamento, a humilhação dos usuários do serviço público (dos transportes, da saúde, da educação etc.). Em suma, não se trata de revolução, muito menos de um movimento de burgueses opulentos. Os manifestantes de junho são pessoas indignadas que estão perdendo a esperança de um país melhor, que querem protestar contra os rumos, a tradição e o dia-a-dia do sistema governamental e político.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – PT mensaleiro, PSDB carteleiro e Joaquim Barbosa “barraqueiro”

Joaquim Barbosa começou o mês de agosto com 15% das intenções de voto para a presidência da república. Deve fechar agosto beirando os 20%. Assim que os políticos (do PT, sobretudo), banqueiros, marqueteiros e adjacentes começarem a ir para os presídios (regime fechado ou semiaberto), vai se aproximar dos 30%. Tudo isso se confirmando, sua candidatura se tornará irreversível (o povo manda e se ele pede…). No mínimo, irá à vice-presidência da república. JB conta com o maior prazo de desincompatibilização do país. Pode deixar o cargo de juiz e se filiar a um partido político somente em abril de 2014. Até lá, tem todo tempo do mundo para armar, da sua maneira, outras confusões, firmar sua personalidade assim como seu louvado personalismo.Self-made man com personalismo forte + apoio midiático = ídolo nacional (assim surge um novo Messias, salvador da pátria). A mídia desancou JB nesta semana: “com seu temperamento instável e agressivo, se tornou um irremediável criador de polêmicas”; “usa palavras inadequadas (como chicana)”; não é um exemplo de serenidade; não mantém o decoro que ele exige dos pares; perde as estribeiras; seu destempero se volta contra ele mesmo e contra seu trabalho (Estadão de 18.08.13, p. A3). Mas ninguém superou uma “amiga” na nossa rede social, que disse: “por meio dos seus frequentes barracos ele não só nos alegra como nos impressiona”. Transmite a sensação de comando, de voz imperativa (aqui quem manda sou eu). Atributos que os brasileiros foram treinados a adorar (desde as donatarias em 1532 e o governo geral de Tomé de Souza, em 1549). Tal como na mitologia grega, das vísceras do mensalão o PT jamais podia imaginar que sairia, contra seus planos de governo eterno, uma víbora de ferocidade incomensurável. O presidenciável Joaquim Barbosa é fruto desse engendramento petista e primo dele é a cartelização do metrô de SP, nos governos do PSDB. União espúria e mancebenta dos donos do capitalismo neoliberal (multinacionais) com os políticos podres locais. Mensalão, cartelização e “barracos”, sobretudo os televisivos (que tanto agradam o canhestro homo videns) protagonizam três maneiras vivenciais do circo da vulgaridade que nos dá o enredo do ser humano do século XXI. A esperança única que nos anima é que, se foi o ser humano que se perdeu em tão nefastas vulgaridades, distanciando-se completamente da ética e da emancipação moral, está nas mãos dele mesmo, não de uma força sobrenatural, corrigir tudo, voltando-se para os interesses da “polis”, entendida como uma nação decente onde se possa viver sem violência, corrupção e extravagâncias.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Que se entende por Estado de Bem-Estar social?

O Estado de Bem-Estar social, tão demonizado pelo neoliberalismo midiático-financeiro, é uma organização ou um sistema político e econômico que vê o Estado como protetor e defensor social e organizador da economia. O Estado, nesse modelo, diferentemente do Estado mínimo postulado pelo neoliberalismo, é o regulador de toda vida e saúde social, política e econômica do país e faz isso em parceria com várias outras forças, sobretudo dos sindicatos e das empresas privadas. O que o distingue de forma clara é que ele assume o papel de garantidor dos serviços públicos de qualidade e de proteção da população. Esse modelo de Estado teve origem na Europa, sob o império da ideologia da social-democracia, que se distinguia antigamente tanto do capitalismo liberal confiante no mercado como do socialismo real (comunismo). Onde esse modelo de Estado foi implantado com mais força? Deu certo? Nos Estados escandinavos (chamados de países nórdicos), como Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia. E quem foi o responsável pela implantação e subsistência desse modelo? Foi o economista e sociólogo sueco Karl Gunnar Myrdal. Os países nórdicos juntamente com alguns outros raros países do planeta (como o Canadá) formam a última “ilha” (no planeta) de resistência e de relativa prosperidade. Nem tanta prosperidade como antigamente (em virtude da crise econômica mundial), mas resistente até hoje (tudo quanto pode) aos excessos do neoliberalismo norte-americano. São os países com menores taxas de homicídio, com melhores colocações no IDH, com menores desigualdades, com melhores índices de bem-estar, com as melhores notas relacionadas com a sua economia etc. Mas diariamente são atacados pelo neoliberalismo, que nasceu para “liquidar” com esse modelo de Estado. No entanto, nada melhor o ser humano inventou do que a forma de governança dos países escandinavos, Canadá e outros poucos territórios. Quando vemos tantas desgraças e crises disseminadas pelo mundo inteiro, marcado pelo progresso, mas também pela injustiça, pela fome e pela miséria, por que não paramos para refletir melhor sobre os oásis remanescentes do Estado de Bem-Estar social? Não chegou o momento de levantar nossa voz, deixando de praticar o delito de silêncio? (Federico Mayor Zaragoza). Que diz o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos? “Que é a aspiração mais elevada do homem o advento de um mundo em que os seres humanos, liberados do medo e da miséria, desfrutem da liberdade de palavra e da liberdade de crença”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Quem é o psicopata/canalha dos nossos tempos?

Convido o estimado leitor a ler o texto abaixo (trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, no prelo, com notas de minha autoria) para bem compreender quem é o psicopata/canalha dos nossos tempos. Trata-se de um perfil mais comum do que parece. Está presente, por exemplo, em todo crime organizado, seja no privado (tipo PCC), seja no misto (que envolve os interesses privados e os públicos, tal como o que acontece nas concorrências públicas). Por detrás do crime organizado sempre tem um canalha, que manipula a vontade de outras pessoas. No campo político a canalhice se apresenta de forma mais sorrateira: é canalha, por exemplo, o político que faz um duro discurso punitivo (chicote em todo mundo), que propala aos quatro ventos a festa da vingança (Nietzsche), com o único propósito de manipular a vontade da opinião pública, muito suscetível a esse tipo de discurso, para ter o prazer de ver outras pessoas castigadas. Vamos ao imperdível texto de Juan Pablo Mollo (O delinquente que não existe, no prelo), observando-se que tudo que está entre colchetes é de minha autoria: “O canalha é aquele que, sabendo captar as crenças e o ponto de satisfação do outro, exerce promessas, ameaças ou expectativas em forma explícita ou implícita por meio das quais consegue o consentimento e a cumplicidade do outro. Por isto, propõe-se como um líder nato para hipnotizar ao neurótico vacilante, que prontamente se converterá religiosamente ao regime do psicopata e suas ambições pessoais. Sem dúvida, o canalha não faz a cooptação de voluntários repressivamente, mas com seu carisma e capacidade de persuasão atrás de seus pretextos discursivos variáveis. O canalha bem-feito não crê em nenhum ordenamento social ou cultural e consegue uma postura de certeza para conseguir sua própria satisfação à custa dos outros”. “Um canalha que sempre encontra justificações para seus atos, sem culpa nem responsabilidade alguma, pode ser perfeitamente compatível com a normalidade social, a política e o poder. Torna-se frequente que o canalha se mascare atrás de uma autoridade em que não crê, e a partir daí comece a exercer uma influência sobre o outro. Certamente, os indivíduos manipuladores do desejo não se correspondem com o delinquente comum nem com o assassino criminoso, mas com pregadores, pastores, dirigentes, terapeutas, líderes, políticos etc. A respeito, pode se distinguir o pequeno e ambicioso canalha imerso numa lógica de êxito e fracasso de um canalha maior que, sobre o império e destruição do desejo próprio e alheio, estrutura-se no exercício do poder para manejar as realidades dos outros. O perfeito grande canalha é um poderoso como Stalin, o homem de aço, intocável, fechado em si mesmo, sem escrúpulos nem decência, sem vacilação nem defeito em vida [nessa mesma linha está Hitler]. O esplendor do canalha e seu brilho maléfico provêm de não aceitar nem o Outro com maiúsculas, que não é mais que uma ficção, nem os outros semelhantes, que não valem nada”. “Assim, o canalha de nossos dias é o líder de organizações criminosas cuja atitude é introvertida, misteriosa e planejada. Portanto, não é o delinquente comum que rouba o automóvel, mas o administrador do desmanche e do dinheiro daqueles que trabalham para ele ou o delegado de polícia corrupto que manipula o delinquente a partir da autoridade estatal. A pessoa de colarinho branco oculta detrás dos ilícitos é o psicopata que não age, senão que faz agir os demais [como se vê, o delinquente comum não é o canalha que está por detrás da organização, que manipula a vontade dos outros]”. “Por outro lado, ofuscado pela ambição, o político corrupto não deixa de camuflar-se nos governos democráticos, nem de delinquir, nem de fingir ser um homem trabalhador e honesto para aprisionar o desejo dos outros. O psicopata de nossos dias é compatível com a figura do homem de negócios, o homem mundano, o cientista, o juiz ou o psiquiatra: sua fachada é normal, porém é a típica máscara do psicopata. A máscara vela o interesse particular oculto. Assim, atrás das sublimes frases ideológicas do líder político, da demonstração objetiva do especialista ou da hipnose grupal do pastor, ocultam-se os interesses ególatras, a violência e as brutais pretensões do poder. O psicopata político, o homem do poder ou o narcotraficante extraem um ganho pessoal sobre o sacrifício dos demais”. “Em suma, e para além das figurações, o psicopata ou canalha é aquele que sabe que o Outro da lei é um semblante e não se detém na manipulação dos outros, nem em seus interesses, ambições ou ações de prazer (Lacan). Um canalha bem-feito realiza suas ações sem sustentar-se em nenhum ideal e sem impedimentos, isto é, não se situa como sujeito de nenhuma lei ou posicionado como culpado/culpável, mas que avança sem obstáculos nem inibições para sua condição absoluta de prazer. É aquele indivíduo que, independentemente de qualquer distinção social, pretende existir por fora de toda lei ou norma, na que não crê, exceto quando ocupa um lugar de poder e impõe as regras para os demais”. “Então, a grande canalhice é a ciência estabelecida totalmente como verdade pelo mercado multinacional, captando o desejo de todos e propondo-se como o novo chefe globalizado sob a forma tecnológica. E não parece existir alguma política que apresente as condições para estabelecer um limite ao desencadeamento da tecnociência e o sistema avaliativo na construção da realidade. Por outro lado, existe a canalhice filosófica como um saber sistemático que se propõe como verdadeira para os demais, e também a canalhice jurídico-penal, que mediante intelectualizações acadêmicas sobre a pena tem ocultado desde sempre a irracionalidade do poder punitivo para sustentar uma ordem desigual e injusta”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Questão da Esaf enaltece o PT: prática abominável

Num concurso do Ministério da Fazenda, cujas provas foram aplicadas no dia 25/8/13, pela Esaf, cita-se o PT e suas propostas para a reforma política (alternativa correta, segundo o gabarito divulgado ontem). O concurso está sendo acusado de tendencioso, de falta de isonomia e de fazer campanha política através da pergunta proposta. Confira abaixo: 34- Tema recorrente na história do Estado brasileiro, a reforma política ganha destaque no complexo cenário surgido das manifestações de rua que explodiram pelo Brasil afora em junho de 2013. Entre os pontos colocados em debate está a proposta de mudança do sistema eleitoral hoje vigente no país. Relativamente a esse tópico, assinale a opção correta. a) Há consenso entre os membros do Congresso Nacional acerca da adoção do sistema distrital puro, em que cada deputado é eleito por um distrito pelo voto proporcional. b) O Partido dos Trabalhadores (PT), atualmente no comando do Executivo Federal e com forte bancada na Câmara dos Deputados, defende o financiamento das campanhas eleitorais com recursos públicos. c) O voto em lista fechada, em que o eleitor não escolhe candidato a deputado específico do partido, foi unanimemente rechaçado pelos partidos com representação no Congresso Nacional. d) O fim das coligações para eleições proporcionais é tese defendida, sobretudo, por partidos políticos médios e pequenos, que regularmente dispõem de candidatos “puxadores de voto”. e) O fim da suplência no Senado Federal, bem como a proibição da presença de parentes entre os suplentes, foi decisão assumida consensualmente. Nossos comentários: para a banca (ou comissão examinadora), a resposta correta seria a “b”. A pergunta e a resposta estariam enaltecendo o PT. Isso não é recomendável, visto que dá margem para censuras, inclusive sobre a credibilidade da prova. Não importa qual seja o partido político. Em provas públicas que, teoricamente, existem para aprimorar a democracia, por meio da meritocracia, nos parece totalmente desaconselhável vincular respostas às posições assumidas pelos partidos políticos. Com tantas milhares de outras indagações possíveis, para aferir o conhecimento do candidato, porque colocar a credibilidade do concurso em risco, valendo-se de um expediente totalmente evitável? Questões envolvendo política, ideologia, religião etc. são absolutamente desaconselháveis em concursos públicos, que foram inventados há mais de dois mil anos pelos chineses, para seleção dos melhores interessados na carreira pública. Trata-se de um excelente instrumento de seleção dos mais preparados para ocuparem cargos públicos, porém, isso deve ser feito dentro da mais absoluta lisura, impessoalidade, objetividade, moralidade etc. Que não são valores menores, dentro do arcabouço constitucional. Questões que envolvem partidos políticos dão ensejo à alegação de que ou está contra ele ou está a favor dele, fazendo-lhe apologia. Nada mais infeliz do que a iniciativa citada. Dá a impressão de estar usando a instituição séria do concurso público (teoricamente é o meio mais apropriado para cooptação de novos servidores) como forma de difusão de cabresto ou de tendência ideológica. Banca de concurso tem que se comportar igualmente à mulher de César: não basta ser honesta, é preciso mostrar isso. Afinal, ela tem todo tempo do mundo para preparar as questões. Os assuntos são infinitos. Um milhão de questões podemos formular em qualquer área do conhecimento humano. Para que arranhar a seriedade de uma prova enfiando dentro dela temas relacionados com a política partidária (que, diga-se de passagem, é a mais desprestigiada no nosso país)?

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ricardo Teixeira e o parasitismo nacional

“Eu não me interesso por um clube que me aceite como sócio” (Groucho Marx) O ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, transferiu sua residência (de Miami) para o principado de Andorra, que fica nos pés dos Pirineus (entre França e Espanha). Reportagem do Estadão (Jamil Chade) revelou que um terço da renda dos amistosos da seleção brasileira acabava depositado nas contas (em Andorra) de Sandro Rosell, amigo de Teixeira e hoje presidente do clube Barcelona. A cada ano Teixeira terá de passar 150 dias no principado, que é conhecido por ser um paraíso fiscal, que nada mais é que o ancoradouro daquilo que normalmente é obtido no mundo todo de forma parasitária (mais precisamente, por meio do parasitismo depredador). Para ser aceito no clube parasitário de Andorra é preciso depositar pelo menos 400 mil euros nas contas de um banco do principado. Teixeira negociou sua transferência para o paraíso fiscal depositando no banco AndBank 4,9 milhões de euros (que estão sendo lavados pelo banco citado). Paraíso fiscal não tem acordo de extradição com o Brasil Vivendo em Andorra, Teixeira não teria como ser extraditado ao Brasil caso fosse convocado pela nossa Justiça. Andorra e Brasília não contam com acordo de extradição. O Estadão revelou uma série de informações exclusivas sobre Teixeira e como seus esquemas dentro da CBF permitiam que os amistosos da seleção fossem usados para desviar recursos da CBF para contas de amigos do cartola. Dentre eles está Rosell, presidente atual do Barça. A reportagem também revelou como, em 2010, a Justiça suíça constatou que Teixeira recebeu milhões de euros em propinas de empresas ligadas à Fifa, justamente em contas em Andorra. Bola redonda Com Ricardo Teixeira na presidência da CBF a bola não rolou somente no gramado. Ele não comeu bola em nenhum momento, aceitou-a (ou a solicitou, senão a exigiu). Andorra agora diz que foi a Polícia Federal do Brasil que informou, em 2012, que ele não teria nenhum antecedente. A melhor maneira de encerrar este artigo consiste em parafrasear o diálogo transcrito por Manoel Bonfim em seu livro A América Latina – Males de Origem (p. 75): LADRÃO PEQUENO: (…) E vós mesmos, que tendes feito até hoje? LADRÕES GRANDES: Temos vivido como heróis: os mais bravos entre os bravos, os mais nobres entre os nobres e os mais poderosos dos conquistadores. E tu, ladrão miserável, que andas fazendo? LADRÃO PEQUENO: Tudo que fiz com algumas dezenas, vós o fizestes com centenas de milhares, sobre nações inteiras. LADRÕES GRANDES: Mas nós somos conquistadores. LADRÃO PEQUENO: Mas o que vem a ser um conquistador? Não percorrestes em pessoa toda a terra, como um gênio mau ou astuto, destruindo ou se apropriando dos frutos do trabalho alheio… pilhando, matando, surrupiando, sem lei e sem justiça, simplesmente para satisfazer uma sede insaciável de domínio, de posse, de enriquecimento sem causa? LADRÕES GRANDES: Nós somos pessoas diferentes. LADRÃO PEQUENO: Onde está a diferença, senão no nascimento e nas oportunidades desiguais? A discriminação e o parasitismo fizeram de vós reis, imperadores, presidentes, parlamentares, e, de mim, um simples mortal. Sois ladrões mais poderosos do que eu… Uma outra diferença é que nós vamos para a cadeia e vós não, salvo raras exceções.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Siemens daria aula para procuradores e vai para cadastro ético

O presidente da Siemens (empresa que confessou fraude nas licitações do metrô de São Paulo nas gestões do PSDB), que já foi punida em vários países por atos de corrupção (EUA, Alemanha), foi convidado pelo MPF para dar palestra na Procuradoria-Geral sobre o seu sistema de compliance (observância de regras contra a corrupção). Depois da divulgação do evento (Estadão 30/8/13, p. A9), foi desconvidado. O parasitismo (enriquecimento injusto e/ou imoral, que suga o trabalho escravo ou sub-humano ou o erário público) também se aplica, claro, para o mundo empresarial, sobretudo quando ele se vale da corrupção, da fraude nas licitações, dos conluios nos pagamentos por obras não realizadas, dos reajustes de contratos sem causa, da sonegação etc. Uma das desgraças do parasitismo licitatório (conluios, fraudes, maracutaias) é que se elimina a concorrência, a decantada concorrência da meritocracia pregada pelo neoliberalismo, que tem como consequência o atrofiamento da inteligência, a ausência de criatividade, a desnecessidade de aprimorar diariamente seu serviço ou seu produto (eclipse das inovações), a despreocupação com a oferta de algo inigualável no mercado, a não busca de produtividade, o emburrecimento empresarial; tudo isso sem contar o embotamento moral, a falta de ética, a apologia da “dialética da malandragem” (Antonio Candido) etc. Mas tem coisas mais horríveis nessa história. Há sempre o oculto do aparente (te conto no próximo post). O oculto do aparente na história da Siemens é o seguinte: por ato da Controladoria Geral da União (CGU), do governo PT, a Siemens, que juntamente com várias outras empresas estão sendo investigadas, depois da sua confissão, por atos de corrupção em licitação de trens, sobretudo na administração do PSDB em São Paulo – gestões de Covas, Alckmin e Serra, foi mantida em 6/9/13 no grupo de empresas classificadas como comprometidas com a ética (Cadastro Pró-Ética). Está difícil o poder público brasileiro compreender, mesmo depois das jornadas de junho/13, que grande parcela da população brasileira quer ver algum tipo de progresso moral. Como seres humanos nós ainda estamos no “grande meio-dia” (de Nietzsche), ou seja, nem somos os primitivos do amanhecer, nem ainda chegamos no além-homem ou super-homem (super-ser humano) do anoitecer. Embora no “meio-dia”, em termos evolutivos, é chegado o momento de experimentarmos alguns progressos no campo da moralidade.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – THREE STRIKES AND YOU’RE OUT E (NOVAMENTE) A PROPOSTA MIDIÁTICA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

Luiz Flávio Gomes. Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Coeditor do www.atualidadesdodireito.com.br. Doutor em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha) e Mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me: www.professorlfg.com.br. Débora de Souza de Almeida. Doutoranda em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid – UCM (Espanha). Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Especialista em Ciências Penais pela mesma instituição. Advogada. Autora de livros e de artigos em periódicos especializados em âmbito nacional e internacional. Recentemente foi lançada por um agente midiático nova proposta para o combate da criminalidade juvenil no Brasil: a implementação da Three Strikes and You’re Out (três faltas e você está fora). A proposta, que inclusive será levada à discussão no Plenário do Conselho Federal da OAB[1], consistiria no seguinte: O delinquente tem direito a dois crimes, quase sempre pequenos. No terceiro, vai para a cadeia com penas que variam de 25 anos de prisão a uma cana perpétua. Se o primeiro crime valeu dez anos, a sociedade não espera pelo segundo. O sistema vale para criminosos que, na dosimetria judiciária, pegariam dois anos no primeiro, mais dois no segundo e, eventualmente, seis meses no terceiro. […] Seria o caso de se criar o mecanismo da “segunda chance”. A maioridade penal continuaria nos 18 anos. No primeiro crime, o menor seria tratado como menor. No segundo, receberia a pena dos adultos. Considerando-se que raramente os menores envolvidos em crimes medonhos são estreantes, os casos de moleza seriam poucos[2]. Em razão dos poucos dados estampados na coluna, constata-se que o modelo defendido não é totalmente coincidente com o norte-americano. Diante disso, é necessário esclarecer no que consiste a Three Strikes Law para depois, então, podermos nos posicionar a respeito de sua aplicação. A Three Strikes and You’are Out (que é uma alusão a uma regra do beisebol, que determina a expulsão do jogador no cometimento da terceira falta – na terceira falta o jogador está fora), impõe a retirada de circulação daquele que reitera pela terceira vez na prática criminosa. Continue lendo o texto em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/?p=26218

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Uso indevido de aviões da FAB “não é nada”, diz Comissão de Ética

Sobre o uso indevido dos aviões da FAB por ministros, que foram assistir ao jogo do Brasil no RJ, o presidente da Comissão de Ética da Presidência da República disse que “o caso não foi ’muito grave’ nem houve ’agressão ao patrimônio’. Ele reconhece que, na prática, isso “não significa nada”. “O Garibaldi foi advertido pelo uso do avião para ir para o Rio, mas não houve recomendação de demissão coisa nenhuma porque não foi também uma coisa assim muito grave. Mas foi advertido para não fazer mais, levou um puxão de orelha”. “Não houve agressão ao patrimônio público, nada disso. Simplesmente uma imprudência, né, acho que foi advertido”, completou”. É muito grave o embotamento moral de toda sociedade parasitária. Vivendo parasitamente (dizia M. Bomfim, em 1903, A América Latina), “uma sociedade passa a viver às custas de iniquidades e extorsões; em vez de apurar os sentimentos de moralidade, que apertam os laços de sociabilidade, ela passa a praticar uma cultura intensiva dos sentimentos egoísticos e perversos”. É de estarrecer a que ponto de degeneração chegou a classe dominante parasitária no Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Vandalismos e violência policial: barbárie infinita

O entusiasmo insuperável (energizante, rejuvenecedor) que nos proporcionaram os protestos civilizados nas ruas (por mais justiça social, ou seja, melhor transporte público, melhores hospitais, educação de qualidade etc., assim como pelo moralização dos poderes públicos e dos políticos), conta com a mesma dimensão e proporção da nossa repugnância à violência, seja privada, seja pública, que é contra a democracia (ou melhor: a violência é inimiga da democracia). Os autores da violência gratuita (desnecessária), de vulgaridade inexcedível, lembram o que escreveu Tocqueville (nobre francês que foi estudar a democracia norte-americana), em 1840: “Vejo [na democracia] uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que giram, sem descanso, sobre si mesmos para procurarem pequenos e vulgares prazeres com os quais preenchem suas almas”. O homo democraticus, quando não comprometido com a ética (a arte de viver bem humanamente – Savater) nem com a causa da democracia (bem geral de todos), resulta mesmo regido pela vulgaridade, que significa duas coisas: mediocridade moral e decadência do bom gosto. Os moralistas, os árbitros da elegância, os aristocratas e os burgueses da elite nunca aceitaram a cultura da vulgaridade, mas não se pode esquecer que ela é coirmã da cultura da igualdade e marca registrada da democracia, quando o ser humano se despreocupa com seus deveres éticos. O Ocidente inventou muitas coisas fantásticas nos últimos três séculos: as ciências, o Estado de Direito e a democracia estão dentre essas inovações (Weber). Democracia (igualdade, liberdade e fraternidade, da Revolução francesa) significou a derrubada da aristocracia e da monarquia. A desigualdade formal e material era a regra, no Antigo Regime. Com a democracia veio a igualdade (formal). Com a cultura da igualdade (formal) eclodiu, paralelamente, naqueles que não cultivam a ética, a cultura da vulgaridade, que ganhou força inigualável com o advento da televisão, em meados do século XX. O ser humano do século XXI tem bons motivos para comemorar a evolução fantástica ocorrida em relação às liberdades (o progresso moral, nesse campo, é inequívoco), mas, com frequência, por falta de uma estrutura ética e moral sólida, cai na tentação de não fazer bom uso dessa liberdade, gerando excentricidades e grosserias típicas do mundo medieval. Nessa descrição se enquadra a violência protagonizada, nos últimos dias, pelos vândalos radicais e alguns policiais, que se mostraram totalmente despreparados para o exercício da função (recordando os jagunços do sertão assim como os capitães do mato do tempo da colônia e do Império escravagista). O pernicioso na violência excrescente (excessiva, desnecessária) é que ela acaba sendo reproduzida (centenas de vezes) na televisão ou mídia impressa. Aliás, quando não tem matéria-prima de boa qualidade de espetacularização, a mídia mesma se encarrega de protagonizar (de inventar) barbáries indescritíveis, como as do News of the World, na Inglaterra, em 2011. Os anunciantes foram os primeiros a tirar o time de campo (marcando distância desse grotesco jornal, de propriedade de Rupert Murdoch, que retrata a podridão do sistema econômico-financeiro aético e nada civilizado). Agora que temos as redes sociais, é chegado o momento de nos emanciparmos de nós mesmos (da nossa democrática e igualitária vulgaridade), buscando o status de cidadãos envolvidos com o destino da polis e da democracia, por meio da exemplaridade (Javier Gomá), dando vida a um novo modelo de democracia, como projeto de uma civilização igualitária, fundada em bases finitas, de cunho ético. Podemos nos valer das redes sociais para nos posicionarmos de várias maneiras: exercício da vulgaridade ou a construção de uma nova paideia (formação cultural), que censure os abusos da liberdade (especialmente a de expressão – esse é o caso da censura deplorável imposta, via judiciário, pela família Sarney ao jornal O Estado de S. Paulo) e que lute pelo desenvolvimento de sentimentos e costumes coletivos fundadores de uma saudável e viável vida comunitária (fundada na ética e na justiça social). O ser humano democrático contemporâneo (como sublinha Javier Gomá) deveria refletir seriamente sobre a necessidade de autolimitação do seu “eu” subjetivo dotado de direitos e liberdades, dominando os seus instintos corporais mais animalescos e eliminando do seu cotidiano as excentricidades e extravagâncias nefastas, dando evidências da sua urbanização, que consiste na eleição da civilização com a recusa, ao mesmo tempo, da barbárie. E tudo isso só ser feito por meio da Ética.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Violência dos “black blocs” e guerra civil

Ufanisteu: O brasileiro, fisicamente, como dizia o conde Afonso Celso (Por que me ufano do meu país?), “não é um degenerado; (…) quanto ao seu caráter, ainda os piores detratores não lhe podem negar afeição à ordem, à paz, ao melhoramento”. Eu acredito piamente nos ensinamentos e ufanismos deste livro; vou invocá-los em todas as partes dos nossos diálogos e procurar difundi-los para o mundo todo! Barbarum: Sempre fiquei impressionado, Ufanisteu, com o quanto você vangloria o seu povo e o seu país, atribuindo-lhes méritos fora do comum, excepcionais. Mas seria bom saber que nem sempre a imagem que fazemos de alguém ou de um território corresponde parcial ou totalmente à realidade. O ser humano erra muito nas suas valorações e convicções. Agathon: Enaltecer as belezas de um país ou o caráter reto de um povo é algo admirável, mas sempre existe o risco dos exageros, que podem ser interpretados como pura vaidade ou jactância. Quando a realidade não se corresponde à imagem criada, esta pode se transformar numa piada (numa basófia). Ufanisteu: Quando falo muito bem do meu povo e do meu país, Agathon, não tenho outro propósito que o de dar exemplos e conselhos que possam ser úteis às famílias, à nação e à espécie humana, tornando-os fortes, bons, melhores e felizes. Barbarum: Lamento informar, Ufanisteu, que o brasileiro, tanto quanto os demais habitantes do planeta, em maior ou menor medida, não é tão pacífico quanto à imagem que lhe fora forjada. Caso você duvide disso, convido-o a ver a atuação dos “black blocs” nas manifestações dos últimos meses. Agathon: O que se descobriu sobre a violência aberrante deles? Barbarum: Dois pesquisadores (Esther Solano e Rafael Alcadipani, Folha de S. Paulo) ouviram todos os envolvidos (manifestantes, policiais, “black blocs”) e chegaram à conclusão de que eles querem chamar a atenção sobre a ausência do Estado, que arrecada como país de primeiro mundo e presta serviços públicos de péssima qualidade. “Protesto pacífico não adianta nada, só com violência é que o governo enxerga nossa revolta” (diz um “black bloc”). Ufanisteu: Passageiros episódios de violência não podem nos impedir de levantar a cabeça transbordante de nobre ufania! Barbarum: A razão da quebradeira geral seria o descaso do poder público. Os integrantes do grupo dizem que não são vândalos, que vândalo é o Estado, que deixa as pessoas morrerem nas filas do SUS, que deixa as crianças na ignorância, não oferecendo ensino de qualidade, que transformou o transporte público em lata de sardinha etc. Agathon: A você, Ufanisteu, digo (com base em Baltasar Gracián, A arte da sabedoria) que não é recomendável se vangloriar ou falar de si mesmo, nem para elogiar-se, o que é vaidade, nem para criticar-se, o que é humildade ultrajante. Qualquer um dos dois é enfadonho para quem ouve. Barbarum: E o que você, Agathon, diz sobre a violência dos “black blocs”? Agathon: Que, invertendo a clássica lição de Maquiavel, os fins, por mais nobres que sejam, não justificam o emprego de meios violentos, especialmente quando colocam em perigo as pessoas. Violência só gera violência. A polícia militar vai reagir, porque foi humilhada (como instituição). É mais que previsível uma espiral intensa de violência. O pior é que esse método, para além de destrutivo, é ineficaz, porque não abre nenhuma negociação para avanços nos direitos individuais ou sociais. Outra coisa: a violência está afastando das ruas os manifestantes do bem, que estão deixando de apoiar os movimentos (que sem força popular não conseguem progressos). Se o enfraquecimento dos movimentos sociais pode trazer benefícios para setores econômicos conservadores e políticos, há quem esteja torcendo pelo incremento da violência. Quanto pior, melhor. Mais ainda: depois da reynaldização da PM (agressões físicas contra PMs, como a ocorrida contra o coronel Reynaldo Rossi), é factível que o revide seja a “amarildização” também das classes médias “black blocs” (ou seja: a eliminação física de alguns deles). Essa é a linguagem (o referencial semântico) que a massa brasileira assimilou e entende (depois de anos e anos de propaganda midiática). O terreno se tornou favorável, após as declarações de guerra (civil) de integrantes da PM e do governador, para tratar os “black blocs” como os inimigos pobres segregados e balcanizados das periferias, cujo destino, nos confrontos com a polícia, é a mutilação decorrente da tortura, o hospital (se sobreviver) ou o cemitério. A situação pode ficar fora do controle estatal, com repercussões internacionais e econômicas incalculáveis.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Vivemos hoje uma reversão de expectativas?

A resposta é positiva. A nova classe média (que não é privilégio do Brasil, sim, de todos os países emergentes), depois da lua de mel com seu novo “status” de consumidor (e de devedor também: a conta do crédito um dia tem que ser paga), agora quer mais, mas sabe que, no atual contexto de crises profundas, pouco poderá ser alcançado. A reversão de expectativas é notória (Marcus A. de Melo, Valor Econômico). Os manifestantes querem qualidade de vida, daí os protestos por justiça social e contra os excessos do capitalismo neoliberal e neoescravagista; querem melhores serviços públicos bem como governantes e políticos honestos, que nunca se dispuseram a enfrentar com determinação e ética as clássicas mazelas decorrentes da nossa formação cultural (corrupção, clientelismo, nepotismo, fisiologismo, patrimonialismo, empreguismo, uso perdulário do dinheiro público etc.). Em suma, querem o fim do ineficientismo do Estado, do fisiologismo (loteamento do Estado), do mau-caratismo de quem atua em nome do Estado ou que se relaciona com ares publica, do consumismo material (visto como horizonte único do ser humano pelo capitalismo neoliberal) e do desenvolvimentismo arcaico (fundado no excessivo controle estatal bem como na proteção de uma parte do empresariado nacional). Mas se acham pessimistas em relação ao futuro, daí a reversão de expectativas (que gera insatisfação, que gera insegurança, que gera medo, que gera ansiedade, que gera ira etc.). Quem busca serviço público de primeiro mundo (educação, saúde, justiça rápida etc.) já sabe que não o encontra no Brasil. Daí a frustração da classe emergente, que se transforma muitas vezes em humilhação, que é a causa da indignação e da sensação de impotência. A nova classe emergente, para além de constituir um forte motor econômico do país, é portadora de novas ideias e quer ter maior protagonismo na construção de uma nova sociedade (mais justa, mais equitativa, menos violenta, em suma, mais qualidade de vida). Mas as atuais expectativas em relação ao Brasil (e ao mundo) se acham em declínio. Houve uma reversão, que é fonte de muita insatisfação. Tudo isso também explica a rebelião de junho.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Voto secreto e democracia no Brasil

Reagindo ao deplorável escândalo da manutenção do mandato do deputado Donadon, a Câmara dos Deputados aprovou o fim do voto secreto, em todas as situações, em todas as casas legislativas. Isso não vai passar no Senado. Algum termos será consensuado. De qualquer modo, já se trata de uma reação da parasitária classe política à reprovação nacional de norte a sul contra seu corporativismo que retrata a dialética da malandragem. Democracia e voto Democracia (desde a antiga Grécia) significa participação do povo nas decisões mais importantes do país (da polis). Essa participação pode ocorrer de forma direta (plebiscito, referendo, iniciativa legislativa popular) ou indireta (por eleições). O voto é o instrumento do cidadão que viabiliza a democracia. Quanto mais livre e consciente o voto, mais democrático o país é (e vice-versa). Em democracias ou conglomerados humanos atrasados, ora falta o voto, ora são poucos os que votam, ora o voto é comprado, ora o voto do legislador é secreto (foi esse voto que beneficiou escandalosamente Donadon). Todos os vícios que maculam o voto contaminam automaticamente o nível da democracia. Ou seja: quando falta ética no voto, conspurca-se a estética da democracia. Para aprofundar: Breve história do voto no Brasil No Brasil Colônia (1500-1821) não havia eleições (nem democracia, nem organização governamental própria etc.). Ninguém votava. Mandava o senhor de engenho, o dono da Casa-Grande, o parasita do trabalho dos índios e dos escravos, que governava seu território como um monarca despótico. A partir do Brasil Imperial (1822) o problema passou a ser “quem pode votar” (veja Laurentino Gomes, 1889). Para a Constituinte de 1823 só podiam participar: homem (mulher não), proprietário de terra ou outro bem de raiz (escravos não, índios não, embora fossem os donos de todas as terras (!), assalariados não, ou seja, brancos pobres não), com idade mínima de 20 anos. Também foram excluídos os estrangeiros e os que não professavam a religião católica. Ou seja: votavam fundamentalmente os parasitas, que são os que não colocam a mão no trabalho duro, gerador original da riqueza, tendo para fazer isso escravos, índios e brancos pobres, sob o chicote do feitor. Voto significa democracia; mas se os votantes são somente os parasitários do país, tínhamos no Império uma democracia liberal parasitária (retrato perfeito dos dois brasis: o parasitante que vota e o parasitado que não vota). A situação se agravou com a Constituição de 1824, visto que ela aumentou a idade do votante para 25 anos e introduziu no Brasil o critério da renda mínima para votar (voto censitário). Ou seja: foi reduzido o número dos votantes parasitários (que são os que vivem do trabalho escravo ou do trabalho assalariado vil, ignóbil e imoral). Para os cargos mais importantes, a renda mínima exigida era maior (é dizer: somente a elite parasitária podia eleger seus pares parasitários para os cargos mais importantes da monarquia constitucional). O voto direto para as eleições legislativas só aconteceu em 1881 (mas somente os parasitários votavam, porque foram excluídos os parasitados analfabetos). Resultado: na eleição de 1886 apenas 0,8% da população votou (Laurentino Gomes, 1889). Nos primeiros anos da Primeira República (a partir de 1889) ainda era baixíssimo o número de votantes. A elite brasileira (agroexportadora) continuava parasitária, mas não mais fundada na escravidão (abolida formalmente em 1888), sim, no neoescravagismo (trabalho assalariado vil, ignóbil e imoral, que foi recusado por muitos estrangeiros que para cá vieram para trabalhar). Neoescravagismo, analfabetismo, concentração de riquezas (nas mãos dos parasitários) e exclusão da imensa maioria da população do processo eleitoral: esse era o sistema eleitoral nos primeiros anos da república, que se caracterizava também (e sobretudo) pelo voto manipulado, fraudado, roubado e comprado. O voto do eleitor, num determinado período, foi aberto. Isso deu margem para a fraude. Também foi (e ainda é) uma prática corrente, nesse período, o voto de cabresto, comandado pelo coronelismo (veja Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto). Nas duas ditaduras (1930-1945 e 1964-1985) não se falava em voto (ao menos para o executivo federal). No período democrático de 1946-1963 continuava o voto roubado, comprado, roubado, fraudado. As eleições, ao longo do século XX, foram se universalizando, mas sem nenhuma garantia de limpeza no processo eleitoral. É dizer: continuávamos sob o império do voto viciado. Já na redemocratização, com a CF de 88, além do abuso do poder econômico (que é generalizado), veio o voto secreto dentro do parlamento, que acaba de contribuir para a “absolvição” do presidiário Donadon (o primeiro presidiário com os direitos políticos suspensos que continua sendo deputado federal). O voto secreto para o eleitor é garantia de boa democracia. O voto secreto do Parlamentar é contra a democracia, porque todos temos o direito de saber o que pensa o nosso representante. A “absolvição” de Donadon pela Câmara dos Deputados (em agosto de 2013), por isso mesmo, entra para os anais da nossa história como uma síntese perfeita do Brasil parasitário (do Brasil que não deu certo), que é produto, como disse Darcy Ribeiro (na apresentação do livro de Manoel Bomfim, A América Latina – males de origem), “da mediocridade do projeto das classes dominantes que aqui organizaram nossas sociedades em proveito próprio, com o maior descaso pelo povo trabalhador, visto como uma mera fonte de energia produtiva, que ele podia desgastar como bem quisesse”. Mas o aspecto mais espetacular da obra do sergipano Manoel Bomfim, escrita em 1903, é o concernente à sua oposição ferrenha contra todos os “pensadores” (muitos europeus) que apoiam as elites atrasadas que mantém o Brasil na rabeira do desenvolvimento, do progresso e da ética. Manifestou toda sua indignação com a injustiça, mas sem perder a esperança de um Brasil despojado dos seus vícios originais. Brasil: futuro sem parasitismo (essa é a saída) O Brasil é um país viável, mas para isso tem que fazer um corte profundo nas suas tradições parasitárias, que transmitem o vírus (de geração em geração) de que podemos, sem nenhuma vergonha, nos enriquecer à custa da corrupção, da malandragem, do trabalho escravo ou da servidão neoescravagista. Não podemos continuar com os olhos fechados para as barbáries parasitárias dos primeiros cinco séculos. Enquanto não colocarmos sobre a mesa nossos graves males de origem nós não conseguiremos evoluir rumo à civilização. O poder de decisão não pode mais ficar nas mãos exclusivas das classes dominantes, muitas parasitárias, visto que elas são infecundas, avaras, conservadoras e crueis. Se já estivesse funcionando a democracia direta digital (DDD), que sustentamos no nosso livro Por que estamos indignados? (no prelo), democracia ancorada numa plataforma em rede, que é o Fórum Cidadão, nós não teríamos de forma nenhuma permitido que a Câmara dos Deputados deliberasse o acobertamento imoral e escandaloso de um dos seus notáveis malfeitores. A votação na Câmara tinha que ter sido acompanhada paralelamente (em tempo real) pela vigilância do Fórum Cidadão (Fórum do Povo), que estaria dialogando com cada parlamentar, narrando, em seguida, nas redes sociais, a postura de cada um (para a devida avaliação de todos os eleitores). Os interesses do país (se é que queremos construir uma verdadeira Nação, com o mínimo e dignidade) não podem mais ficar nas mãos exclusivas das elites parasitárias. Isso é conditio sine qua non para nossa evolução, para nossa civilização.

ARTIGO: Professor Luiz Flávio Gomes – Nova lei seca: “mais rigor, menos violência no trânsito”. Você acredita nessa mentira?

LUIZ FLÁVIO GOMES, 55, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no institutoavantebrasil.com.br Com 43 mil mortes no trânsito em 2010 (cerca de 46 mil em 2012, consoante projeções do Instituto Avante Brasil), 3 país do mundo em acidentes fatais (passamos EUA e Rússia, assim como toda a União Europeia reunida), é evidente que todos queremos que algo seja feito para nos tirar desse buraco trágico e tanatológico. Sou favorável à tolerância zero! Concordo que a última reforma da lei seca era necessária! Mas é chegado o momento de dizermos NÃO aos excessos autoritários da sua despótica interpretação, dada pela Resolução 432/13. É correto punir o infrator que bebe e depois dirige. Alguma sanção ele tem que sofrer. Mas o critério quantitativo (a partir de 0,34 mg/L de ar expelido) para distinguir a infração administrativa da criminal é absolutamente inconstitucional, incorreto e aberrante, porque cada pessoa reage de uma maneira frente ao álcool. O critério generalista é o atalho de que se valem os intérpretes da repressão para se afirmar que estamos diante de um perigo abstrato presumido. Com “x” quantidade de álcool no sangue presume-se a alteração da capacidade psicomotora. Com isso a prisão fica facilitada. O enquadramento como crime de um fato que não passa de infração administrativa mancha o condenado pelo resto da vida, dificultando arrumar emprego bem como passar em concursos públicos. Além de injusta, imagina-se que é com essa interpretação que serão reduzidas as mortes no trânsito. E o governo ainda divulga isso como algo verdadeiro. Fabrica-se uma nova lei e acredita-se que ela faça mágica! O Poder Político (Executivo e Legislativo), no campo criminal, sempre se comporta como nossos ancestrais, que pintavam os bichos nas cavernas e acreditavam que, com isso, já detinham a posse desses animais. Publica-se uma nova lei no Diário Oficial (versão moderna das paredes das cavernas) e acredita-se que esse conjunto de palavras mal escritas e despoticamente interpretadas possa mudar a realidade! Quando apareceu o novo Código de Trânsito brasileiro, em 1997, o Datasus já registrava 35.620 mortes no trânsito. Logo que esta lei parou de surtir o efeito desejado, modificou-se o CTB em 2006 e aí já contávamos com 36.367 mortes. Não tendo funcionado bem essa nova lei, veio a Lei Seca de 2008, quando alcançamos o patamar de 38.273 mortes. De 2009 para 2010, logo depois de passada a ressaca da lei seca de 2008, aconteceu o maior aumento de óbitos no trânsito de toda nossa história: 13,96%. A propaganda enganosa e populista do governo diz: “Mais rigor, menos violência no trânsito”. Os números comprovam essa mentira: houve rigorismo penal em 1997 (quando tínhamos 35.620 mortes), em 2006 (agora já contávamos com 36.367 mortes) e 2008 (quando chegamos a 38.273 mortes). Depois da Lei Seca alcançamos, em 2010, quase 43 mil mortes. Que eficácia é essa da lei penal nova mais rigorosa? Em todo momento produzimos nova lei penal, mas as mortes, logo que a fiscalização fraqueja, voltam a aumentar. Até quando vão continuar nos mentindo, imaginando que não sabemos do fracasso das três leis penais anteriores à nova lei seca, todas no sentido do maior rigorismo penal, como solução para o problema da irresponsável necro-política viária brasileira? O funciona é a fiscalização não o engodo da lei penal mais dura.

ARTIGOS: Prof. Luiz Flávio Gomes – Menores, como os bezerros, jamais abandonados nas ruas

Nos últimos dias a sociedade civil tem se mobilizado publica e midiaticamente para demandar a diminuição da maioridade penal. O fracasso dessa medida é mais do que previsível, porque o Brasil vem com essa política populista desde 1940 e seus problemas sociais só estão agravando (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva: 2013). Tal mobilização se deve a um sentimento de insegurança e de impotência, que se transforma em espasmódica sensação de potência quando se pede “justiça”, depois da morte de um jovem, vítima de latrocínio, por um rapaz de 17 anos. Alimentada (a população) com a programação dramatizadora da mídia que passa a divulgar todos os dias casos e “cruzadas” envolvendo adolescentes, podemos chegar a uma reação emocional (longe da racionalidade). Claro que todas as bestas não domesticadas (Nietzsche) e violentas devem ser punidas duramente, de acordo com cada crime e cada idade, colocando-as (para a tutela da sociedade) em estabelecimentos seguros. Mas a emoção não pode dominar a razão. A solução para o problema consiste em colocar (obrigatoriamente) todas as crianças e adolescentes nas escolas, das 8 às 18h, dos 6 aos 18 anos. Fazer com elas o que a sociedade brasileira faz com os bezerros, que jamais são vistos abandonados nas ruas (porque possuem valor econômico). Tomados pelo sentimento de revolta, o indivíduo (telespectador) comum raras vezes busca informações sobre qual a verdadeira realidade que está por trás da alteração da maioridade penal. Segundo dados da Fundação Casa, a Instituição abriga hoje, em suas 143 unidades, 9.016 internos. Desses internos, 661 têm entre 12 e 14 anos; 6.614 estão na faixa etária dos 16 anos 18 anos e 1.740 já têm 18 anos ou mais. Roubo e Tráfico de entorpecentes são as principais causa de internação com 44,1% e 41,8%, respectivamente, de internos. Ao contrário do que é exposto pela mídia em geral, os número de crimes violentos cometidos por adolescentes até os 18 anos é muito menor do que o alardeado. Os latrocínios são responsáveis por 0,9% das internações, ou seja, 83 internos, sendo que 49 são menores. Já os homicídios são responsáveis por 0,6%, ou 54 jovens internados na Fundação. Pouco mais de 1% dos menores estão recolhidos por crimes violentos com morte. Já entre os adultos do sistema penitenciário, que abriga 549.577 presos segundo informações do Depen, até junho de 2012, o número de homicidas era de 60.792, ou seja, 11% de todo o sistema prisional brasileiro. Os latrocínios eram responsáveis pela prisão de 15.191 presos, ou 2,8%. Quase 14% dos adultos estão recolhidos por crimes violentos com morte. Vejamos:
Adolescentes em conflito com a lei internados na Fundação Casa Presos do sistema carcerário
Tipo de crime Internos % Tipo de crime Internos %
Latrocínio 83 0,9 Latrocínio 15.191 2,8
Homicídios 54 0,6 Homicídios 60.792 11
Total de internos 9016 Total de Presos 549.577
Queremos “combate” feroz e bestial (tal como o propagado pela mídia) justamente contra quem menos mata! Imaginar que a redução da maioridade penal seria a salvação para questão da criminalidade é um grande erro, já que ao misturar jovens que cometeram roubos, furtos e pequenos tráficos com grandes homicidas, estupradores e traficantes comandados pelo crime organizado é transformar a prisão numa escola do crime ainda mais perversa, já que a atual situação das penitenciárias brasileiras está longe de ser reabilitadoras. O problema da criminalidade juvenil tem que ser combatido já, agora, imediatamente (não temos que ficar esperando mudanças legislativas), colocando todas as crianças e adolescentes nas escolas, dos 6 aos 18 anos (e das 8 às 18h). E toda população tem que fiscalizar isso diariamente. Hoje mesmo essa medida pode ser adotada e fiscalizada por todos. Cada criança na escola, um marginal a menos na rua. Cada adolescente educado, um latrocida a menos nos atacando. Investir em educação, lazer e trabalho (imediatamente, prontamente, hoje mesmo!), tirando todas as crianças e adolescentes da rua e fazendo com que esses jovens não sejam compelidos a enveredar pela vida criminosa, dando-lhes oportunidades na vida, com uma educação de qualidade. Cada jovem na escola, um criminoso a menos da rua. Quem topa esse (aparentemente utópico) desafio? * Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

LUIZ FLÁVIO GOMES COMENTA: Garoto de 17 anos que diz ser autor do disparo com sinalizador no jogo do Corinthians prestou depoimento

Veja abaixo o vídeo do professor Luiz Flávio Gomes sobre o caso: http://www.youtube.com/watch?v=oU0FbyZFagM&feature=youtu.be Hoje (25), por volta das 15h, o adolescente de 17 anos que afirma ser o autor do disparado com sinalizador que ocasionou a morte de um menino na partida entre Corinthians e San José foi até a Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos, na Grande São Paulo, e prestou seu depoimento Acompanhado de seu advogado, por cerca de duas horas, foi ouvido por promotores. Em entrevista concedida ao Fantástico, o garoto afirmou ter adquirido o sinalizador naval na Rua 25 de Março, no Centro de São Paulo, ressaltando que queria apenas fazer “uma festa para o Corinthians”. Na mesma entrevista o jovem ainda falou que integrantes da Gaviões da Fiel o instruíram a não procurar a polícia na Bolívia. “O pessoal me recomendou: ’não, é melhor não se entregar porque nós estamos na Bolívia, você veio com a gente, você é nossa responsabilidade’”. A defesa do adolescente acredita que ele irá responder por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Do Portal Atualidades do Direito – Por Mário Luiz Ramidoff

Luiz Flávio Gomes lança livro “Lei de Drogas Comentada”

Novas questões polêmicas foram trazidas e respondidas pelos autores, tais como: a infração do porte de drogas para uso próprio pode ser caracterizada como mau antecedente? Vale para o efeito da reincidência? Luiz Flávio Gomes, em parceria com os juristas Alice Bianchini, Rogério Sanches Cunha e William Terra de Oliveira, acaba de lançar o livro Lei de Drogas Comentada, pela Revista dos Tribunais. A obra versa sobre a Lei de Drogas, publicada no dia 24.08.2006, em vigor desde 08 de outubro do mesmo ano. Lei de Drogas (trecho retirado do livro) Na quinta edição de Lei de Drogas Comentada os autores buscam brindar a comunidade jurídica com a doutrina e a jurisprudência mais atualizadas sobre os temas ali propostos, tal como a questão do princípio da insignificância. Com efeito, no dia 11.11.2010 o Plenário do STF, no julgamento do HC 94.685, reafirmou seu entendimento de que a posse de reduzida quantidade de substância entorpecente por militar, em unidade sob administração castrense, não permite a aplicação do chamado princípio da insignificância penal. Seguindo a linha evolutiva do Direito nacional, o livro acompanha a atual tendência da ciência jurídica, mostrando-se rico em evidenciar a jurisprudência das principais Cortes jurisdicionais do País, em especial decisões do STF e do STJ. Discute-se no RE 635.659 (SP) a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que tipifica como crime (segundo o entendimento espelhado no RE 430.105-RJ) o porte (ou posse) de drogas para consumo próprio. Sugestão de entrevista: Luiz Flávio Gomes – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Prof. Luiz Flávio Gomes – Medo da inflação, da infração e da infusão

Tirando os integrantes do grupo destemido (1%), todos os demais paulistanos possuem algum tipo de medo (Folha de S. Paulo de 01.05.13, p. 1). Repetindo pesquisa feita em 1983, o Datafolha constatou o seguinte: que hoje os paulistanos têm pouco medo da inflação (7%; em 1983, 26% se preocupavam com a alta do custo de vida). O que mais assusta é o medo de que os jovens da família se envolvam com drogas (45% hoje, contra 23%, em 1983). O medo da infusão de drogas é o campeão. Isso sinaliza que as políticas públicas repressivas de “combate” às drogas não estão produzindo o efeito desejado (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013). Basta compararmos essa política repressiva (norte-americana) com a política socio-educativa de prevenção do tabaco: em São Paulo, os fumantes caíram pela metade em 27 anos (40% em 1986, contra 21% hoje; a média nacional é de 14,8% – Datafolha). Quais são os segredos desse sucesso? Não foi a prisão, sim, a conscientização; não foi a repressão, sim, a educação; não foi o direito penal, sim, medidas de controle e de restrição; não foi o populismo punitivo, sim, a contrapropaganda nos maços de cigarro; não foi a dramatização televisa, sim, o fim da propaganda; não foi o processo criminal, sim, a divulgação dos malefícios do fumo; não foi a reprovação da sentença, sim, a vergonha individual; não foi a política de mão dura, sim, a motivação de parar de fumar. No mundo todo o tabaco está em baixa: EUA: 53% dos homens fumavam em 1960, contra 22% em 2010; Japão: 81%, contra 28%; Reino Unido: 61%, contra 22%; em relação às mulheres (respectivamente): EUA: 34%, contra 17%; Japão: 13% contra 11%; Reino Unido: 42% contra 21%. É a vitória (praticamente mundial) da razão sobre a emoção (da saúde sobre doença, da vida sobre a morte). Em relação às drogas, no entanto, prepondera o contrário: emoção sobre a razão, proibição sobre a conscientização, cadeia sobre a educação, repressão sobre a prevenção. Enquanto seguimos com políticas públicas tendencialmente equivocadas, que não estão produzindo efeitos concretos benéficos para a população, só temos a contabilizar fracassos, dramas, sangue, cadáveres antecipados e narcodólares. No que diz respeito ao medo do crime (da infração penal) a alta é mais do que evidente: medo de ter a casa invadida por assaltantes: 22% em 1983, contra 26% em 2013; medo de ser assaltado na rua: 9% em 1983, contra 16% em 2013. Os dois medos somados chegam a 42%. O alto índice de medo do crime relacionado com as drogas e com os roubos revela que as políticas públicas repressivas (populistas) dão sinais de fracasso a cada dia. Quando pedimos (a sociedade e a mídia) solução repressiva para o problema da criminalidade ao Estado, sobretudo para a delinquência dos menores, caímos na “trampa da diferenciação do consumidor”, porque repentina e equivocadamente imaginamos que um serviço público quebrado, falido e derrotado (pelo capitalismo neoliberal e escravagista), que nós, por razões de “status”, antes de tudo, rejeitamos diariamente (sempre que nossas posses permitem substituí-lo), venha resolver nossa carência coletiva de segurança. Certa vez um professor estrangeiro disse para Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo) que “invejava os historiadores brasileiros porque eles podem assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado”. Eis um exemplo: trabalho escravo (ou análogo) em pleno século XXI no aeroporto de Guarulhos (Estadão 26/9/13, p. B7). Construímos dois Brasis: o avançado e o atrasado. O que deu certo e o que deu errado. Pessoas aliciadas no Nordeste (111, sendo 6 indígenas) foram cooptadas (pela OAS e GRU Airport) para trabalhos em condições insalubres. Já pagaram multas, indenizações e dizem que vão colaborar com as investigações, inclusive criminais. Outras grandes obras podem estar fazendo a mesma coisa (diz o representante do governo). R$ 15 milhões de bens de cada empresa foram bloqueados. Em pleno século XXI vemos as mesmas barbáries do século XVI. Depois de 513 anos de história, continua firme o parasitismo social (classes dominantes sugando as classes dominadas). Foi assim que os senhores de engenho e fazendeiros da colônia e do Império se enriqueceram. Até 1888 (ano da Abolição) falava-se em escravagismo (o nosso foi o mais longo de todos os tempos). Depois de três séculos após o Iluminismo, a prática prossegue, sob formas novas (neoescravagismo). O historiador brasileiro é mesmo um privilegiado: consegue ver em 2013 o que se passava no princípio no Brasil colonial. Perecer ou modificar-se, esse era o dilema brasileiro na data da sua independência (1822). O Brasil se renovou, cresceu, se interiorizou, se urbanizou, mas de forma desorganizada e discriminatória. São muitas as vicissitudes e também os defeitos. Há males de origem que não se apagaram: parasitismo social (exploração de uma classe por outra), selvagerismo (violência) e ignorantismo (exploração da ignorância). Três povos se mesclaram: portugueses, índios e negros. Nasceu um tercius. Criou-se algo novo (um povo mestiço, hoje preponderantemente pardo). O território semideserto foi povoado (Caio Prado Júnior). Mas o processo ainda não acabou. Não passamos do grande meio-dia de Nietzsche. O passado colonial ainda está presente. Diz o historiador citado: “Observando-se o Brasil de hoje (dizia isso em 1942, mas continua atual), o que salta à vista é um organismo em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em linhas definidas: que não tomou forma” (Formação do Brasil contemporâneo). O trabalho escravo ou neoescravagista é uma realidade muito antiga (já no princípio do século XV os portugueses foram buscar os primeiros escravos negros na África), que marcou o parasitismo do tempo colonial, mas nunca desapareceu dos nossos costumes. Ainda não podemos dizer (depois de 513 anos) que o trabalho livre e digno já se tornou uma realidade em todo país. Pelo menos não no coração de uma das regiões mais desenvolvidas, aeroporto de Guarulhos. É de se imaginar o que anda se passando pelos sertões. O Brasil ainda conserva traços vivos da era escravagista. Não foi por acaso que aqui a escravidão durou mais tempo. Não está concluída a evolução da economia colonial para a economia moderna. O Brasil ainda tem seu lado muito atrasado: no campo econômico, no social e no moral. A ética não autoriza a exploração de seres humanos. Nem sequer o tratamento indigno. Reminiscências anacrônicas de um passado que se recusa a morrer retiram nosso país do concerto das nações prósperas e evoluídas plenamente. Continua pendente nossa regeneração política. Dificultada pela degeneração ética. Desse mister não pode escapar nenhum cidadão que cultive a moral. Em 1823, na Assembleia Constituinte (depois abortada por D. Pedro II), José Bonifácio de Andrada e Silva (Patriarca da Independência), dizia (Projetos para o Brasil): “Proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos. E de promover a sua progressiva emancipação (…) é preciso que cessem de uma vez por todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território (…) Para evitar revoluções, e melhorar progressivamente os governos, cumpre que as diversas classes da nação se instruam e se moralizem em razão inversa desde a nobreza até a plebe”. A escravatura não acabou, a Constituinte foi dissolvida, seis deputados (dentre eles J. Bonifácio) foram presos e depois deportados e a Constituição foi outorgada (1824) depois do golpe de Estado de Pedro I. Assim começou o Brasil. Mas não podemos perder a esperança de que termine bem.

ARTIGO – Prof Luiz Flávio Gomes – Macarrão seria o culpado de tudo?

A relação de amor e ódio entre Macarrão e Bruno tem tudo para se transformar no centro dos debates orais que acontecerão após concluída a fase instrutória (probatória). No julgamento anterior, Macarrão, sentindo-se visivelmente isolado e desprotegido, confessou o crime e delatou Bruno, que não estava presente para fazer o contraditório. Seu interrogatório, portanto, será totalmente decisivo: pode se calar ou confessar ou tentar desconstruir a delação precedente, protestando pela inocência. Hoje, em vários momentos, sobretudo no depoimento de Célia (prima de Bruno), a culpa foi descarregada em Macarrão. O jogo de empurra ficou bem desenhado. Vamos ver qual das partes (acusação ou defesa) levará mais convencimento aos jurados, com base nas provas produzidas. Se no primeiro dia do julgamento tudo se mostrava morno, apático e pouco conflitivo, sobretudo depois que a defesa desistiu da oitiva de todas as suas testemunhas, o segundo conta com cenário bem diferente. Para o plenário vieram a reconstituição do crime, contradições, incriminações recíprocas e confirmações de alguns indícios de autoria. Com os vídeos, o julgamento ganhou vibração e muita emoção, que chegou a provocar lágrimas nos acusados, na mãe de Eliza e na namorada de Bruno. Em vários momentos o salão do júri foi preenchido exclusivamente pelo silêncio profundo, sobretudo dos jovens jurados (de 22 a 30 anos), que observavam tudo muito atentamente.

ARTIGO: Por que sou CONTRA a PEC 37 (conhecida como PEC da impunidade – o próprio “apelido” já sugere)

Quero atuar num Ministério Público efetivamente autônomo e independente, um órgão em condições de defender a sociedade contra a criminalidade e a violação da lei. Como titular privativo da ação penal pública, exerço, como Promotor de Justiça, parcela de soberania, e nada mais coerente que eu possa investigar para bem cumprir a minha missão. Não se pode esquecer que uma das finalidades da investigação é evitar acusações infundadas, acusação esta a ser protagonizada pelo Ministério Público. Vale lembrar, aqui, a teoria dos poderes implícitos: quando uma Constituição atribui funções a seus órgãos, são igualmente atribuídos os meios e instrumentos necessários para o cumprimento do que fora determinado constitucionalmente. O Ministério Público quer continuar podendo investigar (jamais assumir a presidência do inquérito policial ou sobrepor-se às polícias civil e federal). Investigar nada mais é do que ouvir pessoas, juntar documentos, proceder a realização de perícias e outras diligências. O Ministério Público, autor da ação, não pode fazer isso? Será que falta aos Promotores de Justiça capacidade para tanto? Dizem que não pode porque a atividade de investigação é exclusiva da polícia (art. 144, § 1 , da CF/88). O art. 144, § 1 , IV, da CF não anuncia a exclusividade da investigação criminal para as polícias. O referido artigo utiliza a expressão “exclusividade” com a finalidade de retirar das polícias estaduais a função de polícia judiciária da União. A própria CF/88 prevê que a investigação pode ser conduzida por outros órgãos (dentre eles, a própria Polícia Militar). Se vários órgãos investigam (Comissão de Valores Mobiliários, Agência Brasileira de Inteligência, COAF, Tribunal de Contas, Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – criado pela Lei 4.319/64), por que só o Ministério Público, titular da ação penal, deve ser impedido? Como se nota, o inquérito policial é exclusivo, mas não a investigação (por isso, a redação do artigo 4 parágrafo unico do CPP)! A tese da exclusividade de investigação pela polícia há anos vem sendo afastada no cenário internacional, inclusive por Tratados Internacionais já pactuados pelo Brasil, sempre com a preocupação de proteção de direitos humanos (cf. Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional e Estatuto de Roma). Aliás, faz bem lembrar que já foi recomendação da ONU durante visita ao Brasil que “Os promotores de justiça devem, rotineiramente, conduzir as suas próprias investigações sobre a legalidade das mortes por policiais”. Dizem que o sistema acusatório impede a investigação do Ministério Público. Ora, quem anuncia essa tese não conhece o citado sistema. Por meio do sistema acusatório triparte-se a função dentro da persecução penal em três: acusar (em regra, exercida pelo Ministério Público), defender (exercida por Advogado Público ou não) e julgar (exclusiva do magistrado). Em que momento foi entregue para personagem específico a tarefa de investigar? Dizem que a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público carece de previsão legal. Essa tese ignora o art. 129, I, VI, VIII e IX da CF/88, os arts. 7 , 8 e 38 da Lei Complementar n 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), art. 26 da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), todos conferindo ao Ministério Público a autorização para a condução de procedimentos investigatórios. Temos, ainda, o art. 29 da Lei 7.492/86 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), que dispõe: “O órgão do Ministério Público, sempre que julgar necessário,poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência, relativa à prova dos crimes previstos nesta lei”. O Código Eleitoral (Lei n 4.737/65) não possui previsão de inquérito policial para investigações de crimes eleitorais, alertando seu art. 356, § 2 , que a investigação será feita pelo Ministério Público. A Lei de Abuso de Autoridade prevê a atuação do Ministério Público na apuração dos crimes de abuso de poder (art. 2 ). A mesma atribuição é conferida ao Ministério Público pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 201, VII) e Estatuto de Idoso (art. 74). Por fim, a resolução n 13 do CNMP (com força normativa) disciplinou o procedimento investigatório criminal conduzido pelo Promotor de Justiça/Procurador da República. Conclusão: tanto a CF quanto a Lei autorizam a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público! Dizem que o Ministério Público investigando perde a imparcialidade. Contudo, no cível, o Ministério Público preside o inquérito civil e, apesar de ter lido muitos artigos sobre o tema, não vi um sequer argumentando que o Promotor de Justiça perde a imparcialidade. Ora, se preserva a imparcialidade na investigação extrapenal, porque a perde na criminal? Dizem que a investigação ministerial provocará o desequilíbrio do sistema processual penal (quebra de paridade de armas). Paridade de armas? A experiência demonstra que o desequilíbrio é em favor do autor do crime, sempre em vantagem em relação ao Estado que o investiga, pois o criminoso conhece o fato praticado, já o Estado não. Outro dia ouvi um jurista bradando que a sociedade perde com um Ministério Público com tanto poder!!!! A sociedade perde? Como? Será que essa PEC passa pelo crivo da sociedade, do povo, aquele que a CF/88 diz ser o real detentor do poder? Será que a sociedade ratificaria essa PEC num plebiscito ou referendo? São estas as minhas impressões, escritas com o devido respeito que merecem as polícias civil e federal, órgãos tão importantes quanto o Ministério Público no combate ao crime (em especial, o organizado, que hoje aparece como um expectador torcendo pela aprovação da PEC). Rogério Sanches Cunha Promotor de Justiça em São Paulo Professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do Mato Grosso e de Santa Catarina Cidadão brasileiro

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – 59% dos brasileiros, em maio, admitiam futuro promissor para o Brasil

Na presidência da República o serviço de inteligência não antecipou absolutamente nada sobre as manifestações populares de junho de 2013. O serviço de inteligência não funcionou (O Estado de S. Paulo de 23.06.13, p. A4). A Revolução J-13 (junho de 2013) tampouco foi prevista pelos meios de comunicação, partidos, instituições governamentais ou privadas. Ninguém imaginou a revolta popular mais contundente e eletrizante, depois da redemocratização (1985). Por quê? Porque os órgãos de pesquisa encarregados de fazer flutuar o modelo econômico-financeiro injusto e desigual, que tomou conta do mundo inteiro, mostravam, à primeira vista, um cenário favorável para os países emergentes. Pesquisa divulgada no dia 23.05.13, pela Pew Researcher Center, que é um instituto de pesquisa americano especializado em temas políticos, econômicos e sociais, apontava o seguinte: a maioria dos países centrais (com algo grau de desenvolvimento) estava insatisfeita com a sua economia; já os países emergentes se mostravam satisfeitos com os rumos que as suas economias vinham tomando. Foram aplicados questionários em 39 países, separados por três diferentes categorias – economias avançadas, mercados emergentes e países em desenvolvimento econômico, baseado nos grupos de renda do Banco Mundial, tipo de economia e classificação de especialistas. Em maio de 2013 a pesquisa dizia que, em média, 53% dos países com mercados emergentes diziam que suas economias iam bem, em comparação com 33% dos países pouco desenvolvidos e 24% de países com economia avançada. Estão particularmente negativas (as economias) em países Europeus como a França (9% de satisfação positiva), Espanha (4%), Itália (3%) e Grécia (1%). Participantes em mercados emergentes como China (88%) e Malásia (85%) disseram que a economia vai especialmente bem. No Brasil, 59% dos participantes da pesquisa se disseram satisfeitos com o país em termos econômicos. Quando perguntados como eles acreditam que a economia estaria daqui a 12 meses, 79% disseram acreditar que a economia iria melhora, 15% acreditavam que permaneceria igual e outros 6% julgaram que estaria pior. China chegou a 80% de otimismo e Malásia 64%. A maioria dos países europeus não esteve tão otimista. Nos EUA, 33% dos entrevistados disseram acreditar numa piora da economia, na Espanha chegou a 47%, na França 61% e Grécia 64%. Apesar de se mostrarem satisfeitos com as possibilidades de melhora da economia, a maioria dos países se dizia insatisfeita com os rumos que o país vinha tomando. Entre os participantes da pesquisa no Brasil, 55% disseram não estar satisfeitos com a direção que o país vinha mostrando. Dos países de mercado emergente, China e Malásia foram os países que mais demonstraram ter boa perspectiva sobre o futuro do país, com mais de 80% dos entrevistados satisfeitos. Já Grécia, Itália e Espanha foram os mais desacreditados por 2%, 3% e 5% da população insatisfeita, respectivamente. Seguindo o mesmo passo, a maioria dos países acredita que a economia está atualmente ruim. Em metade dos países de mercado emergente, ao contrário, a população acredita que a economia está boa, apresentando em média 70%. No Brasil, esse índice chegou a 59% de satisfação, enquanto China e Malásia apresentaram cerca de 80% e a Argentina 39% de satisfação. Países da Europa como Grécia, Itália e Espanha apontaram, em média, 97% de insatisfação. O que faltou em relação ao Brasil? Perceber que os brasileiros se mostravam satisfeitos com a economia (59% em maio de 2013), mas não escondiam preocupações sérias: 55% disseram não estar satisfeitos com a direção que o país vinha mostrando. De outro lado (como informou o Valor Econômico): Principal problema – Ao apontar o principal problema que o governo deve enfrentar, 46% dos brasileiros ouvidos na pesquisa apontaram a falta de oportunidades de emprego, ainda que a taxa de desocupação esteja hoje nas mínimas históricas. É uma fatia bem superior aos 24% que pedem mais atenção aos preços em alta, mesmo num cenário em que a inflação segue perto do teto da meta, de 6,5%. Desigualdade – Apesar da redução da desigualdade de renda apontada por indicadores socioeconômicos nos últimos anos, 75% dos entrevistados no Brasil dizem que esse ainda é um grande problema, com 50% dizendo que a distância entre ricos e pobres tem aumentado. É essa injustiça brutal e secular relacionada com a desigualdade (Casa Grande e Senzala) que foi parar nas ruas de todo país. Ocorre que essa injustiça, como vem de 1.500, é ignorada por todo mundo dominante. Ela foi naturalizada (internalizada) no nosso processo de socialização. Mas o ser humano não suporta a injustiça eternamente. Um dia tinha que se rebelar. E se rebelou! *Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bahia: o 3 estado menos encarcerador do país

LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)* Com base nos dados mais recentes do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), de junho de 2012, o Instituto Avante Brasil constatou que, com uma taxa de 80,11 presos por 100 mil habitantes, o Maranhão é o estado menos encarcerador do Brasil. E em seguida, vêm o Piauí (taxa de 105,87 presos/100 mil hab.) e a Bahia (taxa de 107,61 presos/100 hab.), respectivamente, o segundo e o terceiro estados menos encarceradores do país. No que toca à Bahia, no entanto, apesar de ser o terceiro estado menos encarcerador, o estado baiano possui a 9ª maior população carcerária das 27 unidades federativas do país (26 estados + o Distrito Federal), um total de 15.088 presos! Assim como os demais estados brasileiros, a Bahia padece de muitas mazelas em seu sistema prisional, já que, no último Mutirão Carcerário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou-se que a maior penitenciária do estado foi construída na década de 50 e está superlotada, sendo que muitos presos dormem no chão, debaixo da cama dos demais. Ela também é insegura e carece de atendimento médico. Em outra unidade, localizada em Salvador, a água fica disponível apenas por 15 minutos ao dia (Veja: Bahia: prisões inseguras e falta assistência médica). Ante tanta desumanidade e descaso não só na Bahia como nos estabelecimentos prisionais de todo o país, acreditar que a pena privativa de liberdade seja a solução para prevenir a maioria dos delitos tipificados no Código Penal e na Legislação Penal Brasileira e também para recuperar os detentos que ali se encontram já deixou de ser uma ilusão, e se tornou uma verdadeira hipocrisia. *LFG – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.professorlfg.com.br. **Colaborou: Mariana Cury Bunduky – Advogada, Pós Graduanda em Direito Penal e Processual Penal e Pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Brasil constrói presídios; Coréia do Sul expande educação

O debate sobre a redução da maioridade penal, que tanto emociona o senso comum do rebanho bovino (esta última locução é de Nietzsche) e de seus pastores (legislativos, políticos, judiciais, religiosos, midiáticos etc.), nos leva, naturalmente, a comparar o Brasil com a Coréia do Sul. Em 2014 o Brasil sediará a Copa do Mundo de Futebol e vai mostrar para o mundo todo o quanto é precária nossa infraestrutura. Estádios, aeroportos, transportes, estradas, hotéis, comunicações etc., tudo pode nos envergonhar. No mesmo ano a Coréia do Sul vai abolir os livros de papel em todas as suas escolas: 100% dos alunos sul-coreanos usarão tablets eletrônicos. Um programa de 2 bilhões de dólares conectará todos os alunos da escola primária na internet. Em 2015 será a vez dos alunos da escola secundária. Na América Latina, neste item, destaque é o Uruguai, que tem um computador para cada aluno da escola primária. A Coréia do Sul fez sua aposta na educação. O Brasil, no crescimento das prisões, que vão agora explodir com os menores lá dentro. A Coréia do Sul está entre as campeãs em avanços educacionais. O Brasil é o campeão mundial (absoluto) no encarceramento de pessoas. Nos últimos vinte anos (1990-2010), houve aumento de mais de 470% (contra 77% dos Estados Unidos). A Coréia do Sul está educando, o Brasil está prendendo (e “educando” o interno para a criminalidade organizada). Enquanto a Coréia do Sul compra tablets para seus alunos, o Brasil está construindo presídios, ou melhor, campos de concentração e de treinamento (para melhorar a performance da crueldade dos presidiários). De acordo com levantamento do nosso Instituto Avante Brasil, a quantidade de detentos não-condenados nas cadeias brasileiras subiu 1.253%, de 1990 a 2010. Já o número de definitivos cresceu 278%. Quarenta e dois por cento (42%) dos detidos são provisórios. Em 1990 esse índice era de 18%. Pesquisa da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) demonstra que a Coréia do Sul é uma das campeãs mundiais no uso de computadores pelos estudantes. No ensino médio, um para cada 7 estudantes. No Brasil, 1 para 33 alunos. De acordo com o exame mundial PISA (que avalia o nível dos estudantes), no item compreensão de leitura pelos alunos de 15 anos, a Coréia do Sul ocupa o segundo lugar. O Brasil é um dos últimos colocados. Está na frente do Zimbábue, é certo. Em 2015 a Coréia do Sul já não estará gastando nada com papel, impressão e distribuição de materiais escolares: todo o conteúdo do curso estará disponível em tablets eletrônicos para os alunos. O Brasil, neste ano, em contrapartida, já terá alcançado a marca de (mais ou menos) 700 ou 800 mil presidiários. Quantas reformas penais o legislador brasileiro fez, de 1940 a 2012? 136 reformas no Código Penal. Diminui a criminalidade no Brasil? Nada. Em 1980 tínhamos 11 assassinatos para 100 mil habitantes. Em 2010, 27.4 mortos para 100 mil habitantes. Todos os indicadores criminais aumentaram. Em lugar da educação, jogamos nossa energia em reformas penais e encarceramento massivo. O resultado é o aumento do rebanho bovino e dos analfabetos. Por falta de informação, que raramente é dada pela mídia, chegou-se a 93% de apoio (Datafolha) para a redução da maioridade penal. Estudo realizado pelo Instituto Avante Brasil verificou (a partir dos dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que no período compreendido entre 1994 e 2009 houve uma queda de 19,3% no número de escolas públicas do país; em 1994 haviam 200.549 escolas públicas contra 161.783 em 2009. No mesmo período o número de presídios aumentou 253%. Em 1994 eram 511 estabelecimentos; este número mais que triplicou em 2009, com um total de 1.806 estabelecimentos prisionais. Hoje está perto de 2 mil e 500 presídios. Em 1950, 63% da força de trabalho brasileira estava na agricultura; 20% em serviços e 17% na Indústria. Na Coréia do Sul, no mesmo ano, 60% da força de trabalho estava na agricultura, hoje é menos de 10%; em serviços, de 28% subiu para 63% (hoje). A produtividade desse setor, na Coréia (conforme Ferreira e Fragelli, Valor Econômico de 22.05.13, p. A15), cresceu continuamente a 2% ao ano. A Coréia, mais pobre que o Brasil em 1950, é hoje duas vezes mais rica, em termos de renda per capita. Em 1960 o PIB per capita lá era de 900 dólares; hoje é de 32 mil dólares (Brasil, 10 mil). Em 1960 tínhamos (Brasil e Coréia) 35% de analfabetos. Hoje ainda temos 13% (sem considerar os analfabetos funcionais) e eles têm ZERO. Apenas 18% dos jovens brasileiros estão nas universidades; na Coréia, apenas 18% estão fora da universidade. A evasão escolar no final do ensino médio, no Brasil, é de 60%; na Coréia é de 3%. A Coréia do Sul, hoje, é uma locomotiva mundial. O Brasil é um grande presídio, cheio de analfabetos, sobretudo funcionais. A que se deve tanta diferença entre os dois países?… Nos últimos 50 anos, enquanto a Coréia do Sul investia massivamente em educação, o Brasil, atendendo, sobretudo, a pressão midiática e o populismo punitivo, gastava seus parcos recursos construindo presídios. Qual dos dois países está preparando melhor seus jovens e adolescentes para a vida futura? O jovem sul-coreano está na Universidade, o brasileiro está na Universidade do Crime: quem tem mais chance de progresso? Qual país vai crescer mais? Quem estará melhor dentro de 10 anos? A educação não saiu dos planos governamentais, muito menos da cabeça das elites pensantes e dominantes nos países asiáticos. Entre 1950 e 1980 a escolaridade média lá cresceu quatro anos; no Brasil, um pouco mais de um ano. Como se vê, a brutal diferença está na relevância que se dá à educação e à qualificação profissional. Eles estão treinando os jovens em escolas duras e profícuas. Nós estamos treinando grande parte da juventude no crime organizado e nos presídios. Os desníveis, claro, são marcantes. Enquanto o Brasil vivia sua estagnação econômica entre os anos 80 e 90, quando então começou o processo de encarceramento massivo, a Coréia não descuidava da infraestrutura, da urbanização, dos serviços públicos, da escolarização etc. O debate que estamos agora fazendo sobre a criminalização dos menores, que deveriam estar todos na escola até os 18 anos, comprova que o senso comum do rebanho bovino não aprendeu nada com a Coréia do Sul. Continuamos repetindo nossos clássicos erros: fechando escolas e abrindo presídios! O Governo, a sociedade civil, os partidos políticos e o mundo empresarial deveriam promover um sério e definitivo pacto pela educação de qualidade para todos, que começaria a produzir frutos notáveis imediatamente (não daqui a 20 anos, como afirmam os pessimistas), na medida em que todos os menores estariam fora das ruas, nas escolas, das 8 às 18h, em tempo integral, desde tenra idade até os 18 anos (com algumas exceções controladas pelo Ministério Público, a partir dos 16 anos). O Brasil, perdido em discussões sobre como aumentar o número de presidiários, fechando escolas para construir mais presídios, sem sombra de dúvida, é um país que se apresenta mundialmente de ponta-cabeça: DESORDEM (geral: na economia, no controle social, no processo de urbanização etc.), PROGRESSO (sétima economia do mundo) e BARBÁRIE (isso é o que deveria estar escrito na nossa bandeira). Estamos longe de chegar ao ser humano do grande meio-dia, como diz Nietzsche. Estamos muito mais para o primata das 8h da manhã, que para o Super-humano do entardecer. Que pena! Quanta oportunidade perdida! Quantas gerações futuras perdidas! Quantas vidas perdidas! Quanto analfabetismo! Quanto senso comum de rebanho!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Brasil e a governança do caos

Se governança “diz respeito a como os hábitos culturais, as instituições políticas [e jurídicas] e o sistema econômico de uma sociedade podem se alinhar para gerar a qualidade de vida desejada pela população” (Berggruen e Gardels, Governança inteligente para o século XXI, 2013, p. 46), resulta evidente que a boa governança acontece quando todos esses elementos encontram o devido equilíbrio, proporcionando resultados de longo prazo e bastantes satisfatórios para o interesse comum, ou seja, para o interesse individual e coletivo, de todos que almejam uma convivência próspera e economicamente sustentável. Quando podemos falar em má governança? Quando os hábitos culturais da população e do governo são egoístas, ou seja, quando as pessoas só pensam no interesse próprio e não no coletivo; quando as instituições políticas e jurídicas se tornam disfuncionais, porque marcadas pela corrupção, pelo imediatismo, pela morosidade, pela inacessibilidade ou pelo corporativismo vil e abjeto; quando o sistema econômico está voltado para o atendimento das necessidades e cobiças de alguns, que se apoderam da mão de obra alheia sem a devida remuneração justa; quando os grupos de pressão (mídia, financiadores de campanhas eleitorais, sindicatos, associações religiosas etc.) assumem (total ou parcialmente) o comando do regime democrático; quando a decadência da classe política se torna notória, porque voltada não para o interesse geral da nação (como imaginava Rousseau), sim, para seus interesses privados, em busca da perpetuação no poder; quando os déficits públicos se tornam insustentáveis; quando as dívidas se tornam impagáveis; quando o crime organizado, inclusive mediante cartéis, surrupiam a possibilidade de crescimento da economia; quando a corrupção passa a ser a regra em todos os níveis da governança (local, regional, estadual e nacional), destruindo a confiança na administração pública; quando os corruptos e os corruptores ficam impunes, criando a crença de que a Justiça não funciona contra eles; quando a desigualdade alcança patamares insuportáveis, gerando grande mal estar (individual e coletivo); quando a violência se torna desenfreada, em razão da quase absoluta disfuncionalidade das instituições; quando as instituições religiosas, no estado laico, defendem um novo tipo de intolerância etc. Sempre que a população se convence de que está havendo uma má governança, deixa de lhe dar seu consentimento. O governo entra em decadência (declínio) e perde sua legitimidade assim como as eleições. Acontece o que é da essência do sistema republicano: a mudança do governo. E quando, apesar de todas as disfuncionalidades e mazelas da cultura, das instituições e do sistema econômico, acontece o “milagre” de, mesmo assim, o povo achar que se trata de uma boa governança? Nesse caso devemos falar na habilidade para governar o caos, o que significa, na prática, não perder a legitimidade nem as eleições. Se os EUA continuam centrados no seu padrão de governança norteado pela democracia liberal com economia de mercado livre, se a China ostenta outro modelo de governança, sustentada pela meritocracia dos seus mandarins (comandantes do Partido Comunista da China) assim como pelo capitalismo de estado (capitalismo comunista), pode-se afirmar que o Brasil, diante de todas as suas peculiaridades, está revelando para o mundo uma terceira via (terceiro-mundista), que consiste em governar o caos, estampado nas desigualdades ostensivas entre a Casa Grande e a senzala (G. Freire), na pobreza de grande parcela da sua população, no analfabetismo, na ausência de infraestrutura, na péssima qualidade da educação pública ou privada (ressalvadas as devidas exceções), na economia ainda marcadamente escravagista, nas elites egoístas, que não pensam o Brasil como nação, etc.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bruno disse se sentir culpado pelo assassinato de Eliza

Bruno disse se sentir culpado pelo assassinato de Eliza, mas não confessou ter sido seu mandante. O crime foi planejado por Macarrão (seu assessor) e Jorge Luiz (seu primo), que levaram a vítima para o local da execução, levada a cabo por “Bola” (policial contratado para o ato). Seu enigmático interrogatório possui muitos significados e denota ser fruto de uma grande estratégia defensiva, mandando mensagens diretas tanto para os jurados (que decidirão se ele é culpado ou inocente) como para a juíza (que vai fixar a pena, em caso de condenação). Nos jurados o que ele quis foi plantar a dúvida. Apesar de a constituição garantir o silêncio, isso pode ser interpretado de forma desfavorável pelos jurados, que não fundamentam os votos. Da juíza o que ele pretende é uma redução de pena (participação de menor importância), mesmo não tendo confessado ser mandante, nem delatado nenhum desconhecido participante do delito. Para os debates orais de hoje podemos destacar dois pontos cruciais: 1°) tornou-se quase impossível questionar a morte de Eliza, que foi confirmada pelo acusado Bruno; 2°) o promotor vai ter que se valer de toda sua capacidade persuasória para, com base em todos os indícios constantes do processo, convencer os jurados de que Bruno tinha o domínio de todos os fatos, ou seja, que foi o mandante do crime. E a defesa? Com base no benefício da dúvida, vai tentar arrancar pelo menos 4 votos dos jovens jurados que compõem o Conselho de Julgamento.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bruno poderia confessar?

A acusação resultou bastante favorecida no primeiro dia do julgamento do ex-goleiro Bruno e Dayanne, que começou com certo tumulto, logo controlado com firmeza pela juíza. O longo depoimento da delegada de polícia Ana Maria dos Santos, em razão da sua contundência, ratificando incontáveis detalhes do estrangulamento da vítima, presenciado e narrado por Jorge Luiz, primo do Bruno, pode ser decisivo para o desfecho do caso. Considere-se, ademais, que são cinco juradas e apenas dois jurados. Teoricamente isso poderia ser prejudicial para a defesa. A desconstrução da credibilidade dos indícios existentes contra Bruno é a tática que está sendo usada pelo defensor. Ao desistir da oitiva de todas as testemunhas por ele arroladas, fica evidente que não pretende mesmo sustentar nenhuma tese de inocência do réu. Irá para os debates valendo-se somente do que está dentro do processo, sem a preocupação de agregar qualquer prova nova que possa mudar radicalmente o rumo do julgamento. De duas, uma: ou ele está muito convencido da força da argumentação que vai apresentar nos debates finais ou ele conta com eventual confissão e delação do réu, o que lhe poderia significar uma substancial diminuição da pena, tal como ocorreu com Macarrão no julgamento anterior. Aliás, a postura do réu em plenário, cabeça baixa, chorando e lendo a bíblia, deve ser interpretada mais como um pedido de perdão, do que a rebeldia de um inocente injustamente acusado de um crime que não cometeu nem mandou ninguém cometer.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Bullying: o que é este fenômeno, afinal?

Luiz Flávio Gomes* Natália Macedo Sanzovo** Recentemente o “Fantástico” divulgou uma reportagem sobre as agressões ocorridas nas escolas públicas do Estado de São Paulo (clique para ver o vídeo). O vídeo traz cenas chocantes de violência física entre os próprios alunos, bem como entre alunos e professores. A questão que vem à tona é: todas as agressões apresentadas no vídeo revelam situações de bullying? Afinal, o que é este fenômeno? Em nosso livro, Bullying e prevenção da violência nas escolas. Quebrando mitos e construindo verdades (que será lançado na próxima quarta-feira, 05/06, às 19h30, na Livraria Saraiva do Shopping Paulista, São Paulo – SP), descrevemos que bullying não é brincadeira ou desentendimento saudável de crianças ou adolescentes, nem tampouco uma única agressão ocorrida no contexto escolar. O fenômeno compreende atitudes agressivas de todas as formas, praticadas de forma intencional e repetida, sem motivação evidente, adotadas por um ou mais indivíduos contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder[1]. Portanto, o que diferencia o Bullying escolar de outros conflitos ou desavenças pontuais é seu caráter repetitivo, sistemático, doloroso e intencional de agredir (verbal, física, moral, sexual, virtual ou psicologicamente) alguém notoriamente mais vulnerável, evidenciando um desequilíbrio de força (poder e dominação) entre os envolvidos. Trata-se, assim, de uma subcategoria de violência bem específica que abrange muito mais do que desentendimentos cotidianos escolares e problemas estudantis, representa, sim, verdadeiro processo maléfico aos envolvidos, podendo, inclusive, ser fatal (veja:Bullycídio: mais grave do que você imagina!). Desta forma, nem todas as cenas de violências contidas no vídeo do fantástico caracterizam o fenômeno do bullying, como é o caso, por exemplo, da que registra oestudante de 15 anos agredindo uma professora de inglês dentro da sala de aula. De acordo com a professora, a agressão ocorreu por conta de uma nota baixa, vez que o estudante não havia feito o dever. Trata-se aqui de um conflito pontual, único, representando clara violência escolar, todavia, não o fenômeno do bullying. O mesmo se aplica à cena em que o estudante é quem é agredido pelo professor. O aluno relata que no início da aula houve uma troca de insultos, mas em tom de brincadeira: “Ele me chamou de gordo. Chamei ele de cabeçudo. Parecia mais uma baderna que uma aula. Todo mundo brincava”. No entanto, de acordo com o estudante, o professor ficou nervoso e partiu para cima dele no fim da aula: “Começou a me encurralar. Me cercar. Eu falei: ’Professor, eu estava brincando’. Neste caso também não há o que se falar em bullying, vez que falta o caráter repetitivo e sistemático da agressão, configurando-se, da mesma forma que no caso acima, uma desavença pontual. Assim sendo, nem toda violência escolar é bullying. Para sua caracterização, imprescindível que todos os requisitos acima descritos estejam presentes, sendo, portanto, um fenômeno complexo e grave, vez que os efeitos das ações agressivas podem ser catastróficos. Isto mesmo, as práticas decorrentes do fenômeno do bullying podem comprometer asaúde física e mental das vítimas, seu desenvolvimento socioeducacional e, ainda, gerar a retaliação (a reprodução da violência que pode ser exteriorizada tanto na forma de agressão pontual contra os agressores e demais alunos, como por meio de ataques violentos à escola), condutas de automutilação e, até mesmo, pensamentos e ações suicidas. É o caso, por exemplo, da aluna Isabela Nicastro que assume ter sido vítima decyberbullying em entrevista concedida ao apresentador Serginho Groisman, no programa Altas Horas (veja o vídeo no canal do youtube). Excelente aluna, destaque em sala de aula, notas altas, Isabela foi bombardeada com agressões verbais, via internet. Alguns alunos de sua sala criaram um website em que a chamavam de “naja” e demais apelidos vexatórios. Era humilhada e perseguida 24 horas por dia, 7 dias por semana, situação que gerou extremo sofrimento e a queda do desempenho escolar. Não suportava a ideia de voltar às aulas e confessa que chegou a idealizar o suicídio. Este sentimento não é incomum. Em nosso livro, exploramos um estudo realizado pelaUniversidade de Yale nos Estados Unidos (“Bullying and suicide. A review”, realizado em 2008 pela Dra. Young-Shin Kim, pertencente ao centro de estudos de crianças, e pelo psiquiatra Dr. Bennett Leventhal), que identificou o Bullying como uma das principais causas do suicídio de crianças e adolescentes. E mais, que o suicídio é a 3ª maior causa de mortalidade no mundo, nesta faixa etária, atrás apenas dos acidentes de trânsito e homicídios (para mais detalhes, veja o capítulo 8 do nosso livro). O estudo também revelou que 19% dos alunos entrevistados pensaram em se suicidar; 15% traçaram estratégias para cometer o suicídio; 8,8% executaram os planos suicidas e foram interrompidos por outrem e, 2,6% foi a porcentagem das tentativas sérias o bastante que exigiram intervenções e acompanhamento médicos permanentes. Dentre os casos mais chocantes de bullycídio, podemos mencionar o do alunoCurtis Taylor, da escola secundária em Iowa, Estados Unidos, vítima por três anos ininterruptos de violência escolar (espancamentos no vestiário, pertences danificados e arremessos diários de leite achocolatado em sua camisa) suicidou-se em 21 de Março de 1993, bem como o trágico episódio que ocorreu comJeremy Wade Delle. O aluno se matou aos 15 anos dentro da sala de aula, na presença dos demais alunos e da professora, como forma protesto ao Bullyingsofrido (em 8 de janeiro de 1991, numa escola do Texas nos Estados Unidos). Portanto, as consequências do bullying não se esgotam em problemas de rendimento escolar ou relacionamento social do aluno, seus efeitos podem ser devastadores, ocasionando tanto casos de automutilação, como o próprio “bullycídio“. Assim, este fenômeno exige nossa atenção, afinal, o bullying está amplamente disseminado no Brasil: foi o que revelou a mais recente pesquisa nacional, da ONG PLAN, de 2009. De acordo com a pesquisa, o bullying atinge 10% das crianças e adolescentes em todo o país, o que significa dizer que apenas no ano de 2012, por exemplo, 5.097.261 crianças e adolescentes podem ter sofrido com o processo dobullying, tendo em vista que o número de crianças e adolescentes devidamente matriculados tanto em escola pública, como privada, foi de 50.972.619 (para ver os números da educação, clique aqui). Nos Estados Unidos esta estimativa é ainda maior. Segundo o Departamento de Educação dos Estados Unidos (U.S Department of education), estima-se que mais de 13 milhões de crianças e adolescentes americanas foram “bulinadas” neste período. Desta forma, diante da vitimização em larga escala é substancial que ações sejam adotadas e direcionadas à prevenção do fenômeno do bullying, tais como, medidas educativas voltadas para o agressor e vítima (para melhor compreensão do caráter reprovável da conduta), bem como programas preventivos (chamados de anti-bullying) desenvolvidos para a escola, família e aluno (a exemplo, cita-se o Bully Free Program, programa preventivo americano e Olweus Bullying Prevention Program, programa preventivo norueguês). A eficácia destes programas ficou comprovada pelos números que as escolas piloto apresentaram: redução de 26% nos casos de bullying, quando aplicado o programa da OBPP (Olweus Bullying Prevention Program) e 20,2%, nos casos nas das escolas que utilizaram o Bully Free Program. Assim, para conhecer mais sobre o assunto, convidamos você a se debruçar sobre o nosso livro Bullying e prevenção da violência nas escolas. Quebrando mitos e construindo verdades. Repleto de pesquisas e levantamentos nacionais e internacionais, o livro se propõe a desmistificar e demonstrar a nocividade deste fenômeno, trazendo à tona a prevenção como caminho válido e definitivo para o enfrentamento do bullying. * Jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. **Advogada e pós graduanda em Ciências Penais.

[1] FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz, 2ª ed, Campinas: Verus, 2005.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Bruno: a “senha”

O Prof. Luiz Flávio Gomes fala sobre uma possível “senha” que poderia impulsionar Bruno a uma confissão, que o beneficiaria. Assista ao vídeo Veja também: Caso Bruno: efeitos jurídicos da confissão Início do segundo dia de julgamento Caso Bruno: teoria do domínio do fato. Teria aplicação? Caso Bruno: chorando, de cabeça baixa e lendo a bíblia: isso ajuda?

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Bruno: defesa contesta expedição de certidão de óbito. Eliza morreu?

A juíza do caso Bruno (dra. Marixa) expediu, em janeiro, uma certidão de óbito da vítima Eliza. A defesa não concorda com isso. Mas tem que desfazer esse ato dela (se houve equívoco) em outro processo. No plenário do júri a defesa tem direito de contestar tal certidão, de dizer que a vítima não morreu etc. Tudo isso faz parte da plena defesa (que é mais que ampla). Mas só se pode anular a certidão em outro processo. No júri, quem decide tudo são os jurados. Eles têm liberdade de aceitar ou não a morte da vítima (é tema que será objetivo do primeiro quesito). Acompanhe a cobertura completa do julgamento do goleiro Bruno (com comentários jurídicos): Nova testemunha: até quando pode ser convocada e por quem? Se Bruno destituir novamente o advogado, pode ser julgado? A juíza pode nomear Defensor Público? Qual a penalidade para quem injustificadamente se negar a prestar serviço no júri (ser jurado)? Quantos jurados podem ser recusados injustificadamente? E justificadamente? Caso Bruno: quem pode ser jurado? Caso Bruno: desaparecimento de parte do processo. Nulidade? Caso Bruno: Quaresma vai participar. Haverá tumulto? Caso Bruno: investigações paralelas podem suspender o julgamento de hoje? Qual a penalidade para quem injustificadamente se negar a prestar serviço no júri (ser jurado)? Caso Bruno: morte em Vespasiano, processo em Contagem. Há nulidade? Caso Bruno (2): morte em Vespasiano, processo em Contagem. Há nulidade?

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Bruno: inocente ou culpado?

Tem início hoje (04.03) o julgamento do ex-goleiro Bruno e Dayanne. Bruno é acusado de ter mandado matar Eliza Samúdio (e ter promovido o sequestro dela e do filho do casal). A nova investigação aberta pela polícia civil, sobre a possível participação na execução da vítima de outros policiais, só tende a beneficiar o “Bola” (gerando dúvida sobre a autoria da execução). Em princípio, não altera a situação processual do ex-goleiro, que é complexa. Por quê? Porque o promotor (Henry Castro) já disse que vai explorar todas as provas indiciárias contra ele (delação de Macarrão, telefonemas entre todos eles no dia dos fatos, sangue no carro do acusado Bruno, depoimentos de testemunhas etc.). Claro que grande peso tem a surpreendente delação de Macarrão. De qualquer modo, naquele dia Bruno não estava lá para fazer o contraditório. Vai exercê-lo agora. Tentará a defesa retirar a credibilidade da delação. Promete o assistente de acusação (doutor Arteiro) uma “bombástica” testemunha, que tudo saberia contra Bruno. Aguardemos! Não há impedimento legal de a juíza determinar a oitiva de uma testemunha não arrolada pelas partes. A tática da defesa (conduzida por Lúcio Adolfo) será a desconstrução da validade dos indícios, gerando, assim, dúvida na cabeça dos jurados. A dúvida, como sabemos, favorece o réu. Noticia-se que os jurados serão sorteados entre 17 mulheres e 8 homens (informação não oficial). A composição feminina, em tese, favoreceria a acusação, porque estamos diante de um crime com características “machistas”. Teoricamente haveria solidariedade das juradas com o sofrimento e humilhação da vítima (uma mulher). Na prática, no entanto, não existem provas empíricas do que é afirmado teoricamente. Caso os jurados condenem Bruno, sua pena pode chegar (no máximo) a perto de 41 anos. De qualquer modo, os juízes e tribunais brasileiros não costumam aplicar a pena máxima. Considerando-se o total da pena de Macarrão (23 anos, menos 8 pela delação, resultando em 15 anos), é plausível supor que eventual condenação de Bruno seja sancionada com pena maior, caso venha a ser reconhecido como mandante (algo em torno de 25 a 30 anos). Terá que cumprir disso 40% em regime fechado (por se tratar de crime hediondo), descontando-se o tempo já cumprido de prisão. Tudo isso, no entanto, é pura especulação, porque no cenário da defesa é perfeitamente possível a absolvição. A defesa tudo fará para desmontar a força dos indícios incriminatórios. O Tribunal de Justiça de MG adiou, na última quarta, o julgamento do HC impetrado por Bruno. Fez isso com prudência. Nenhum tribunal julga HC de um réu com júri marcado para 4 ou 5 dias depois. O Tribunal vai aguardar o veredito dos jurados. Caso absolvam, liberdade imediata; caso condenem, a tendência é a manutenção da prisão (réu que respondeu preso, normalmente continua preso). O questionamento relacionado com a ausência do corpo da vítima continua aberto. Se a defesa vai ou não insistir nisso não sabemos. De qualquer modo, o fato de a Justiça ter expedido uma certidão de óbito não impede tal questionamento (porque a certidão também se fundamentou numa presunção). A testemunha Jorge Luiz (primo do réu) já prestou vários depoimentos contraditórios. O último para o “Fantástico”. Sua credibilidade perante os jurados está minguada. De qualquer maneira, eventual depoimento bastante convincente pode impressionar os jurados. Fundamental será o interrogatório do réu. Fará o contraditório (diferido) frente ao que disse Macarrão e mostrará seus argumentos. Réu convicto da inocência costuma impressionar. Quando não mostra convicção, afunda a defesa (tal como ocorreu recentemente em vários julgamentos midiáticos). Não havendo provas diretas (seja sobre o corpo da vítima, seja sobre a autoria), são relevantíssimos os debates orais. Estaremos acompanhando esse julgamento, passo a passo, e informando nossos seguidores no atualidadesdodireito.com.br. Que a juíza, doutora Marixa Rodrigues, não seja surpreendida com os tumultos do julgamento anterior.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Concursos públicos no divã. A politicagem é a praga maldita.

Uma recente matéria sobre o aperfeiçoamento dos concursos públicos no Brasil publicada no jornal O Estado de S. Paulo (04.03.13, p. A3) afirma o seguinte [entre colchetes estão as minhas observações]: a) que a média salarial no serviço público é de R$ 3.000 (em dezembro de 2012), contra R$ 1.600 da iniciativa privada (segundo dados do IBGE) [paga-se melhor em razão das responsabilidades da função; o serviço público, com isso, teoricamente, tem a possibilidade de selecionar as pessoas mais preparadas para cada atividade pública]; b) que essa seria a razão principal para a busca do cargo público (pelos milhares de candidatos) [nem sempre isso é verdadeiro; em muitos casos o candidato procura uma carreira para realizar um sonho, um pendor, ou uma tradição familiar; mas mesmo quando o candidato busca a carreira pelo dinheiro, fundamental é saber se é – ou não – um bom profissional; para isso é indispensável a fixação de um estágio probatório em todas as carreiras]; c) que os candidatos não preparados alimentam o negócio de empresas que se dedicam a treinar os candidatos para as provas [se não existissem os renomados e indispensáveis cursos preparatórios, provavelmente o poder público iria selecionar gente muito despreparada para o cargo; os cursos cumprem a função social de melhorar a qualidade do candidato e, em consequência, do próprio serviço público]; d) que um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF) revelou que os testes selecionam não os candidatos mais adequados para os cargos em disputa, sim, os que se preparam melhor para a prova, independentemente do currículo acadêmico ou profissional que tenham. Isso comprometeria a qualidade do serviço público; o concurso virou “um fim em si mesmo”; não afere as competências reais dos candidatos [três fatores são decisivos para a formação de um corpo de funcionários qualificado: o concurso público, muito treinamento nos primeiros anos da função e um período de estágio probatório rigoroso e instrutivo, porque é nele que se descobre se o funcionário tem ou não pendor para o exercício da função pública]; e) cerca de 12 milhões de pessoas estariam interessadas em ingressar no funcionalismo público (segundo a Agência Nacional de Proteção e Apoio ao Concurso Público – Anpac) [num país de regime capitalista egoísta, consumista e individualista, onde o emprego privado não conta com nenhuma garantia, todos que podem, buscam estabilidade e o melhor para as suas carreiras]; f) que o setor movimentaria anualmente mais de R$ 30 bilhões [grande parcela desse total vai para os cofres do próprio setor público, que cobra altas taxas para a inscrição nos concursos; outra parcela se gasta com livros e apostilas, com as empresas contratadas para a elaboração das provas, com a logística de segurança para a realização das provas etc.]; g) a multidão está atrás dos benefícios associados ao serviço público [o serviço público tem benefícios, mas também muitas responsabilidades; são cargos procurados porque a economia privada não comporta todos os jovens que buscam trabalho, estabilidade, bons salários etc.]; h) o servidor tem estabilidade e um salário inicial acima do oferecido pela iniciativa privada [não vejo nada aético na busca das melhores oportunidades na vida; o salário deve sempre ser compatível com o nível de responsabilidades assumidas em função de uma atividade pública, voltada para toda população]; i) pode começar ganhando mais de R$ 10.000; os melhores salários estão vinculados às provas mais difíceis, não às exigências curriculares [constitui um erro crasso prescindir das provas difíceis, quando os cargos são relevantes; como dissemos acima, a boa formação da carreira pública exige: concurso exigente, excelente etapa de treinamento e estágio probatório; tem muita gente com excelente currículo, mas que é uma negação de funcionário público]; j) cerca de 400 mil vagas serão oferecidas nos próximos dois anos (em razão das aposentadorias, falecimentos etc.) [estamos falando de um país com quase 200 milhões pessoas; a rotatividade no serviço público existe em qualquer parte do mundo; depois das reformas da previdência ficou muito mais difícil se aposentar; fundamental é o equilíbrio nas contas da previdência, não as críticas neoliberais ao incremento do funcionalismo público; o Brasil conta com uma das menores proporções do mundo de funcionários públicos por número de habitantes]; k) mais de 40% dos funcionários públicos contam com mais de 50 anos [esse é um bom motivo para incentivar os jovens a se prepararem para as carreiras públicas, selecionando, dentre eles, os melhores; com treinamento posterior, podem se converter em excelentes servidores]; l) somente neste ano mais de 120 mil vagas serão abertas [o serviço público não pode parar; a crítica neoliberal contra o funcionalismo público não se justifica no nosso país, que tem baixa proporcionalidade entre ele e o número de habitantes; o que não é concebível é o abominável inchaço excessivo de funcionários, sobretudo quando tem finalidade eleitoreira]; m) a concorrência é forte (chegando a 217 candidatos por vaga) [quanto mais concorrência, mais possibilidade de selecionar os melhores, os mais preparados; ser melhor preparado, no entanto, não significa ser melhor funcionário; é a fase de treinamento que vai dizer quem é bom funcionário ou não]; n) muitos candidatos dedicam cerca de 10 horas por dia, durante 2 ou 3 anos [para a conquista de um sonho nenhum obstáculo é intransponível; a estabilidade no serviço público e o salário são as recompensas pelo esforço e investimento feitos]; o) a administração pública não utiliza o estágio probatório (como fase obrigatória da carreira) [é lamentável que assim seja; é durante o estágio que se poderia aferir o pendor do concursado, eliminando os que não se mostram capazes para a função; não deveríamos criticar os concursos, sim, a falta de capacitação profissional específica para cada função]; p) os concursos deveriam abandonar o modelo de prova de múltipla escolha; melhores seriam as provas dissertativas, fundadas em situações reais da carreira [é impossível a eliminação da prova de múltipla escolha, pelo menos como primeira etapa do concurso; com ela são eliminados os menos preparados para a prova; depois de feita uma primeira seleção, é correto cobrar provas dissertativas, inclusive com situações reais da carreira; depois que o candidato mostra habilidade teórica, fundamental é a preparação prática durante o estágio probatório; o poder público vem negligenciando nesse ponto da capacitação específica]; q) deveriam fazer provas práticas [concordo; depois de fazer as provas seletivas de múltipla escolha; mais que provas práticas, após o ingresso, são fundamentais os cursos de capacitação profissional]; r) os concursos deveriam buscar os jovens talentos (nas universidades e no setor privado) [isso já está ocorrendo hoje nos concursos mais difíceis; mas talento para passar numa prova não significa talento para o desempenho da função pública, que só pode ser aferido no estágio probatório, que vem sendo negligenciado pelo poder público]; s) o concurso público é a forma mais adequada para evitar o compadrio e a politicagem [sem sobra de dúvida, assim é; porque ele é fundado na meritocracia, na medida em que inexistam fraudes no próprio certame; o preenchimento de vaga pública, ressalvadas umas pouquíssimas exceções, por meio da politicagem é uma das grandes chagas do nosso país, presentes desde a carta de Pero Vaz de Caminha]; t) é indispensável reformar o modelo de concurso, para o aperfeiçoamento do serviço público [de acordo com a minha opinião é indispensável aperfeiçoar o concurso público como modelo de ingresso na carreira pública por meio da meritocracia; mas o poder público não pode se contentar exclusivamente com ele, para a formação do servidor; o estado está negligenciando na capacitação profissional durante o estágio probatório]. [Sou totalmente favorável à aprovação de uma lei na área, que seria uma espécie de Marco Regulatório dos Concursos Públicos. Essa lei deveria instituir uma Agência Nacional que cuidaria da transparência dos concursos, da regularidade dos editais, dos direitos e deveres dos concursandos etc. É impressionante como as entidades, com pouca experiência, acabam cometendo erros triviais nos editais dos concursos, dando margem para amplas discussões jurídicas. Uma agência nacional cumpriria esse papel de prevenção de litígios].

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Caso Mizael/Mércia: culpado ou inocente?

Segue uma síntese dos fatos noticiados. As interrogações são temas que explicaremos ao longo dos comentários a serem feitos em tempo real, durante todo o julgamento, no portal Terra. Mércia desapareceu no dia 23.05.10 (um domingo, a partir de 18.30h). Mizael diz que nesse horário estava com uma garota de programa (o álibi deve ser provado?). Pelo rastreador do carro de Mizael, a polícia constatou que das 18h40 às 22h38, ele permaneceu estacionado em frente ao Hospital Geral de Guarulhos, em uma rua a menos de cinco minutos da casa da avó de Mércia (último local onde a advogada foi vista) (seria isso um primeiro indício de autoria?). O dispositivo (rastreador) não foi apreendido, tampouco periciado pela Polícia Científica (falha investigativa?). Após denúncia anônima, no dia 10.06.10, o pai de Mércia obtém auxílio do Corpo de Bombeiros de Atibaia e realiza buscas na represa de Nazaré Paulista, no interior de São Paulo. Por volta das 15h, mergulhadores localizam o carro da advogada submerso a seis metros de profundidade. Os pertences de Mércia, como o celular e a bolsa, foram encontrados no interior do veículo (acidente ou assassinato?). No dia seguinte, por volta das 9h45, um pescador localiza o cadáver de Mércia Nakashima, que se encontrava boiando na represa de Nazaré Paulista (esse foi o local da morte. Mas o STJ mandou processar o caso em Guarulhos. Pode?). No dia 09.06.10, Evandro foi capturado na casa de parentes no município de Canindé do São Francisco, interior do Estado de Sergipe (fugiu ou foi passear?). Nas dependências policiais da cidade, o vigia teria afirmado que o ex-namorado de Mércia vinha planejando executar a advogada desde o início de maio por se sentir rejeitado (Evandro participou do crime?). No dia 20.07.10 a polícia afirma ter novas provas contra o policial aposentado, dizendo que ele ligou 16 vezes para o vigia Evandro no dia em que Mércia sumiu. O delegado que comandou o inquérito policial, Antonio Assunção de Olim, declarou que a polícia descobriu um terceiro celular pertencente a ele. O aparelho, que não havia sido declarado por Mizael, foi utilizado para combinar com o vigia Evandro Bezerra da Silva de que forma seria o crime. “No dia 23 de maio, ele falou 16 vezes com Evandro neste aparelho”, afimou Olim. Também no dia 20 é divulgado o laudo necroscópico de Mércia. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o exame revelou que a advogada recebeu um tiro que atravessou o braço esquerdo e atingiu o maxilar. Mas os médicos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo constataram que essa não foi a causa da morte. Mércia Nakashima morreu afogada na represa de Nazaré Paulista, região metropolitana de São Paulo (afogamento é asfixia). Um outro elemento de convicção colhido contra Mizael é a conclusão pericial no sentido de que a porção de terra encontrada em um par de sapatos do ex-policial militar é totalmente compatível com a da represa onde o corpo de Mércia foi encontrado. Portanto, ao contrário do que alega Mizael, trata-se de um forte indício de que ele esteve no local onde a ex-namorada foi morta (Mizael estava na cena do crime?). 10 de janeiro de 2013 – O juiz presidente do Tribunal do Júri (Dr. Leandro Jorge Bittencourt Cano) cinde o julgamento dos réus: “Tendo em vista que o corréu Evandro Bezerra Silva irá sustentar a última versão apresentada no Departamento de Homicídios, mormente no sentido de acusar o corréu Mizael Bispo de Souza, salutar a cisão dos julgamentos, a fim de que seja evitado o excesso acusatório” (foi acertada a decisão do juiz?). Acusação Sustentará a tese de que Mizael é o autor (mentor e executor) do homicídio doloso triplamente qualificado (CP, art. 212, I – por motivo torpe; III – com emprego de asfixia ou meio cruel; IV – recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido). O crime foi premeditado, e Mizael matou a advogada por ciúme (crime passional?), bem como por não se conformar com o término da relação (motivo torpe). O delito contou com a participação do vigia Evandro Bezerra da Silva (Como?). Defesa Mizael: manteve as versões que foram apresentadas das outras vezes em sede policial e na primeira fase do júri: negou as acusações imputadas, asseverando que não esteve com Mércia no dia de seu desaparecimento. Sustenta como álibi que foi visitar a filha e um irmão, com quem almoçou e, depois, saiu com uma garota de programa. Afirmou que não era amigo do vigia Evandro da Silva, e que eles apenas mantinham relações profissionais. Evandro: mudou de versão diversas vezes. Na última apresentada, atribuiu a autoria do homicídio a Mizael, dizendo que, a pedido deste, foi buscá-lo na represa em que Mércia foi morta, pois o ex-policial militar teria ido a uma festa no local. Portanto, afirma que não sabia sobre o assassinato. Ante a colidência de defesas, o julgamento foi cindido por decisão do juiz presidente do Tribunal do Júri de Guarulhos. A acusação pelo crime de ocultação de cadáver foi rejeitada quando do recebimento da denúncia. Qualificadoras (trecho da decisão de pronúncia): “(…) Quanto às qualificadoras, no caso em questão, consistentes na torpeza (insatisfação com o rompimento do relacionamento amoroso), meio cruel (disparos em regiões não vitais do corpo humano, mormente com a nítida intenção de provocar na vítima sofrimento intenso e desnecessário, além da asfixia por afogamento) e no recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa das vítimas (dissimulação), em tese, não se mostram manifestamente improcedentes ou descabidas.” Basicamente, os indícios suficientes de autoria e prova da materialidade estão evidenciados pelas provas oral e documental. De acordo com a decisão de pronúncia, em síntese, eis o acervo probatório que a respaldou: 1) relacionamento conturbado entre Mizael e Mércia em seu término (irmãos da ofendida e e-mails – fls. 11/16 dos autos apartados); 2) Mizael foi visto entrando no veículo de Mércia momentos antes do evento fatídico (testemunha Bruno); 3) os encontros entre Mizael e Evandro no posto de gasolina eram esporádicos, mas passaram a ser rotineiros nas proximidades do dia do crime (testemunha Jurandi); 4) três confissões extrajudiciais de Evandro com delação do comparsa, sendo uma delas filmada, ao passo que as outras colhidas na presença de um advogado; 5) não comprovação de sevícias em Evandro; 6) laudo sobre a reprodução simulada do crime com base no depoimento da testemunha sigilosa, a qual também foi inquirida sob o crivo do contraditório, esclarecendo a sua dinâmica (fls. 1611/1645); 7) depoimento do delegado de polícia responsável pela investigação, apontando como principais e únicos suspeitos Mizael e Evandro; 8) parentes de Evandro (irmão e cunhado) residem ou residiam nas proximidades do local em que o veículo e a vítima foram localizados; 9) por meio de cruzamento de dados telefônicos foram constatadas diversas ligações entre Mizael e Evandro no dia do crime, o que foi explicado em minúcias pelo policial civil Alexandre; 10) não apresentação da suposta garota de programa (álibi); 11) o rastreador do veículo de Mizael não apresentou qualquer defeito até o dia do crime (fls.1910); e 12) no sapato pertencente a Mizael, o qual foi regularmente apreendido, foram encontrados fragmentos de uma alga subaquática, de água doce, compatível com as características da represa de Nazaré Paulista/SP, partículas ósseas, com probabilidade acentuada de ser osso humano, resquícios de substância hematóide e partículas de cobre e zinco que, agrupadas, formam o chamado “latão”, material encontrado em projéteis de arma de fogo semiencamisados (fls. 1310/1535). Mércia e Mizael foram sócios na advocacia e namorados. Em entrevista ao portal do “IG”, a irmã de Mércia, Claudia Nakashima, disse que o namoro dos dois foi marcado por idas e vindas e muitas brigas. Quando estava com ele “Mércia era outra pessoa”. “Ela não podia falar com ninguém, vizinhos do prédio até falam que quando ela estava sozinha no elevador cumprimentava; quando estava com ele, abaixava a cabeça”, diz Cláudia. Não há provas diretas indiscutíveis (confissão de Mizael, testemunha ocular etc.). A acusação, em princípio, está fundada em indícios. Mizael se diz inocente. Escreveu um livro, mas não o juntou no prazo legal (3 dias antes do julgamento). Em princípio os jurados não terão acesso a esse livro. Segunda-feira (dia 11.03), a partir das 9h, o portal Terra fará a transmissão ao vivo do julgamento. Para comentar os aspectos técnicos e as polêmicas jurídicas do julgamento, estaremos no estúdio do Portal Terra, juntamente com professores e convidados do Portal Atualidades do Direito. Avante!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Deputado Donadon e os 6 pês: pobres, pardos, pretos, prostitutas, policiais e políticos

Depois da redemocratização (1985), o deputado Donadon é o primeiro político a ser preso (no caso, por peculato e formação de quadrilha). Quem olha desavisadamente o poder punitivo real, no Brasil, conclui que ele é mesmo adepto do direito penal mínimo, que só atua como ultima ratio, em casos excepcionais, porque muitos mais políticos poderiam estar encarcerados. A Justiça criminal sempre funciona seletivamente. Para a cadeia (que faz parte do sistema de controle social, que é guiado pela ordem econômica e financeira) os juízes somente mandam gente dos 5 primeiros pês: pobres, pardos, pretos, prostitutas e policiais. Cruzando os dados do IBGE (Censo de 2010) com os do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias de 2011, Alberto Carlos Almeida (Valor Econômico de 30, 01 e 02 de dezembro) evidenciou o seguinte: a população branca no Brasil é de 48%; a população branca na prisão é de 35%; pessoas de cor preta são 8%; nos presídios os pretos são 16%. Pretos e brancos são criminosos, mas para a cadeia preferencialmente vão os pretos. Ricos e pobres cometem crimes, mas para a cadeia somente vão os últimos. Assim sempre funcionou a Justiça criminal, desde que ela foi “colonizada” (Foucault) pelos poderes fáticos (do dinheiro). Eliane Castanhêde (Folha de S. Paulo de 23.10.12, p. A2), comentando o mensalão, escreveu: “Mais que condenar réus tão emblemáticos, o STF mandou um recado ao país e aos poderosos (…) os criminosos de colarinho branco que se associarem para desvios e assaltos aos cofres públicos estarão juridicamente nivelados aos PPP (pobres, pretos e prostitutas) que, historicamente, habitam nossas cadeias”. No artigo, quatro são os “pês” reconhecidos: pobres, pretos, prostitutas e políticos. A esses temos que agregar dois mais: pardos e policiais. A prisão de Donadon fechou os seis pês. A rigor não é novidade a condenação (esporádica) de gente graúda ou famosa no Brasil: Roger Abdelmassih, Eliana Tranchesi, Suzane von Richthofen, Nicolau dos Santos, Edemar Ferreira, Guilherme de Pádua, Harah Jorje Farah, Cacciola, Pimenta Neves etc. O que não tinha ainda ocorrido, depois da redemocratização, era a prisão de um político. O tempo dirá se essas condenações dos poderosos são passageiras ou expressão de uma nova tendência criminal, que estou chamando no nosso Populismo penal midiático (Saraiva, 2013) de disruptiva. Ela veio para ficar ou não? Mais ricos irão para a cadeia, ou não? A bandeira do populismo penal disruptivo é a universalização (ou democratização) da persecução penal, ou seja, todos devem ser perseguidos criminalmente (não somente os marginalizados). Ator desse movimento é o legislador disruptivo que, fundado no princípio da igualdade, tende a aprovar leis com os mesmos rigores punitivos tradicionalmente reservados para as classes de baixo (underclass) (I Saborit: 2011, p. 85). Também essa modernização do direito penal, que retrata a expansão extensiva do direito penal, vem acompanhada de mais punitivismo. Caso ganhe força e sistematicidade o populismo penal disruptivo tem suficiente energia para universalizar para todos a incidência do poder punitivo estatal, gerando o encarceramento não só dos tradicionais 5 pês (pobres, pardos, pretos, prostitutas e polícias), senão também dos políticos (que arrastam com eles alguns comparsas orbitais como banqueiros, bicheiros, construtores etc.).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Direito de perguntar

Por que os defensores indicaram um policial e um perito, com fortes incriminações contra o réu, para serem ouvidos como testemunhas de defesa no plenário do júri? Não se trataria de um ato suicida? Dois motivos para entender isso: (a) são incontáveis os indícios contra Mizael, cuja situação processual, até aqui, é totalmente desfavorável, e (b) a sua radical tese defensiva, negativa de autoria, que significa ganhar ou perder tudo. A terra encontrada no sapato do acusado era compatível com a da represa de Nazaré Paulista, onde foram encontrados o carro e o corpo da vítima Mércia? O perito antes afirmou que sim e ontem disse não. Foi preservado o veículo achado para o efeito da perícia? O mesmo perito disse não. O rastreador revelou que o carro de Mizael ficou parado num hospital; o laudo, no entanto, diz que o ele estava em movimento (4 km/h). Quem examinou os registros das antenas dos celulares? Um policial experiente, mas sem formação acadêmica ou científica na área (disse a defesa). São essas, dentre outras, as contradições, imprecisões e omissões que servirão de base à defesa para plantar dúvidas nas cabeças dos jurados, que estão formulando muitos questionamentos para as testemunhas e os peritos. O leitor e o telespectador (o julgamento está sendo transmitido ao vivo) talvez agora entenda a razão das incontáveis e esgotantes perguntas que os defensores estão formulando. É só o que lhes resta, diante de tantos indícios incriminatórios contra Mizael, que no seu interrogatório tem a última chance de convencer os jurados de sua inocência.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – É muito mais fácil ser tirano que respeitar a democracia

Todos os protestos legítimos fazer parte da democracia, que vem (veja Wikipedia) de “demo+kratos“, ou seja, é o regime de governo em que o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos, que exercem sua opinião de forma direta (por plebicitos, referendos etc.) ou indireta (por meio de representantes eleitos, que é a forma mais usual). Os protestos ordeiros, sobretudo quando enervados por causas justas (protesto contra a injustiça estrutural do modelo capitalista aristocrata-escravagista, que sempre vigorou no Brasil), se enquadram na primeira forma (democracia direta). A democracia, no entanto, só é democracia quando lutamos por ela diariamente, de forma responsável. Tanto quanto os mandamentos rígidos das Religiões, as duras exigências da Ética e os contundentes preceitos da Moral, seguir os cânones da democracia (verdadeira) não é fácil, daí a resistência de muitos, bem como a inclinação de outros pelo autoritarismo bem como pelas ditaduras. É muito mais fácil ser um déspota (ilustrado ou não ilustrado) que ser um democrata. A propósito (para recordar), a democracia nos exige (veja Flores d’Arcais: 2013, p. 115, com acréscimos nossos): (a) ser intransigentes com as leis que violam a igualdade – ninguém pode ser mais igual que os outros -, criando privilégios aberrantes; (b) lutar pela justiça social, que permita uma igualdade inicial de oportunidades [educação de qualidade para todos, em pé de igualdade; depois, cada um deve valer pelo que tem de mérito]; (c) respeitar devotadamente a verdade dos fatos, fundada em informação confiável [não mentir para a população, ou seja, não falar nada pela metade, porque toda meia verdade significa também meia mentira – e muitos políticos e agentes midiáticos sabem bem disso]; (d) praticar obstinadamente o espírito crítico para alcançar um iluminismo de massas [nenhum país cresce ou evolui se composto de “rebanho bovino” – a expressão é de Nietzsche]; (e) preservar a laicidade do poder público [a secularização separou a Igreja do Estado, a religião da política, o crime do pecado]; (f) hostilizar abertamente todo tipo de privilégio que não conte com justificação indiscutivelmente convincente e (g) manter cotidianamente o ethos republicano [respeitando-se a ética e a moral correspondentes]. E aí, meu caro, vai encarar? Avante companheiros!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – É preciso colocar o dedo na ferida

O Brasil ganhou destaque mundial nos últimos dias com os seus protestos massivos e, nos últimos vinte anos, com suas políticas de redução da miséria, porém, não podemos perder de vista que o problema da desigualdade é muito mais profundo do que se pensa. É claro que não existe liberdade sem o pão, mas não é um prato de comida diária dado pelas “bolsas governamentais” (que já representam uma conquista, mas insuficiente) que confere dignidade ao ser humano. Não se pode ver uma árvore sem enxergar a floresta. A barbárie do modelo discriminador etnicista e sócio-econômico do Estado brasileiro carece de uma gestão técnica (progressista), mas deixa de ser barbárie. A ferida é mais dramática. Muitos trabalhadores e estudantes, sobretudo de etnias (grupos sociais) discriminadas, são claramente maltratados, segregados e humilhados. São camadas “médias” ou “inferiores” da sociedade que chegaram na exaustão (diante do modelo econômico e político vigentes). Nós não somos um país que respeita a igualdade civil ou social, daí a precariedade da liberdade e da dignidade, agradada pelo eclipse da fraternidade. O desafio gigante que se põe diante dos nossos olhos consiste precisamente em como desatar (local e mundialmente) o nó da segregação, da neoescravidão e da discriminação secular. Programas governamentais de redução da miséria são relevantes, mas nunca poderiam deixar de ser transitórios, porque não retratam nada mais que uma gestão técnica de uma barbárie. Tão relevante quanto entregar o “peixe” pronto é ensinar a pescar, ou seja, conferir a todos (indistintamente) iguais oportunidades de crescimento na vida, o que significa uma qualificadíssima educação, obrigatória até os 18 anos, em período integral. Para muito além das políticas assistencialistas, tal como postulava no século XVIII o Iluminismo e seus filósofos ou precursores (Kant, especialmente), é a emancipação definitiva (social e econômica) do ser humano que pode reconstruir a nossa história macabra de exploração e violência, ou seja, na escravidão e na guerra civil fraticida. A atualidade e premência dos movimentos sociais que eclodiram no mês de junho de 2013 são de incontestável reconhecimento, posto que não existe coesão social entre os vários grupos étnicos e/ou discriminados do nosso país. Tampouco está em curso qualquer tipo de programa que tenha por objetivo a pacificação da sociedade brasileira (como um todo), que continua segregacionista, hierarquizada, economicamente neoescravagista, politicamente patrimonialista e clientelista, socialmente em permanente e terrorífico conflito (que retrata verdadeiro estado de guerra civil). O Bolsa Família retirou da miséria milhões de brasileiros (segundo a FVG), as classes médias cresceram, a economia foi estabilizada (depois do plano real, de 1994), a inflação foi controlada (somente agora volta a nos assustar), Lula fechou seu governo com a menor taxa de desemprego (5,7%) e deixou o Brasil crescendo 7,5% ao ano. Os governos de FHC e Lula promoveram a inclusão social de muitas pessoas, mas a discriminação (e separação de classes) continua acirrada e candente. É nessa ferida que ninguém está colocando o dedo pra valer. Não existe diálogo entre as várias populações segregadas. Continuamos, apesar de todos os progressos (indiscutíveis), com a mesma política social e econômica suicida da época da fundamentação do Estado (1822). Violência infinita e a lógica da guerra civil O confronto entre os vários grupos éticos (superiores e inferiores) vai se agravando (cada vez mais) em todo momento. Incontáveis cartazes denunciaram isso em junho de 2013. Para contenção da insurreição o Estado continua com sua lógica de guerra civil, usando sua máquina martífera (policial) para isso. Essa é praticamente a única política de segurança pública no país (excepcionando-se o Pronasci – que está difícil de emplacar como deveria – e, em alguns aspectos, as UPPs). Na origem dos protestos massivos residem, também, a micro e a macrocriminalidade, que estão corroendo nossas relações sociais, minando as forças integradoras e unificadoras da sociedade. Aquela imagem história, de pessoas correndo com seus fuzis, quando a polícia (como máquina de guerra) invadiu o Complexo Alemão (em novembro de 2010), é o retrato da ineficiência da política pública brasileira na área de segurança, visto que dispersa os criminosos, desloca-os dos seus “habitats”, mas nada faz de concreto para a sua prevenção. Promover a migração do crime e dos criminosos (de um local para outro) não significa restabelecer a paz. Os germes da violência urbana, da criminalidade e da discriminação étnicas, do terrorismo e da corrupção policial, do desemprego, da miséria, da desigualdade social e econômica etc. estão presentes em todos os lugares. O vírus do crime violento (que é bem distinto do crime fraudulento, típico mas não exclusivo das camadas superiores) pode se instalar (e vem se instalando) facilmente em qualquer um dos territórios balcanizados (segregados) do país. O Brasil precisa urgentemente negociar uma trégua na sua guerra civil de origem étnica (e fraticida). A solução violenta dos conflitos só gera mais violência. Apesar de todos os avanços na economia, não se pode esquecer que o Brasil continua sendo o 18 país mais violento do mundo.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Guerra contra o Iraque: nem paz nem democracia

As décadas de 60/70 foram o berço da revolução ideológica ultraliberal, que viria a se consolidar mundialmente na década de 80 com Reagan e Thatcher. Essa revolução ultraliberal (uma das mais prósperas de toda história) espalhou pelo mundo, dentre outros, três direcionamentos: (a) o neoliberalismo globalizado no campo econômico (dogmas do mercado livre, do Estado mínimo etc.); (b) neointervencionismo no plano internacional e (c) o nerconservadorismo (na área política e, especialmente, no campo jurídico-penal). No plano internacional os EUA, desde a segunda metade do século XX, vêm disseminando, para o mundo todo, incontáveis guerras: guerras ideológicas em defesa do capitalismo de mercado (anos 60 e 70), guerra fria (até a queda do muro de Berlim em 1989), guerra contra as drogas, guerra contra o crime organizado, guerras “humanitárias” (contra o Iraque, Afeganistão, Líbia etc.), guerra contra o terrorismo (Guantánamo) etc. O sucesso dos EUA nas suas últimas guerras tem sido pífio. Esse é o caso da guerra contra o Iraque (onde jamais foram encontradas as armas químicas que legitimariam a intervenção). Mais de 4 mil pessoas foram massacradas, anualmente, no último decênio. Toda guerra se revela como uma máquina de triturar carne e ossos humanos. A pretexto de buscar a “paz mundial”, os EUA invadiram o Iraque (há 10 anos), prenderam Sadam Hussein e o condenaram à morte. Nada de democracia no país nem de paz. Mais um messianismo tosco (que em nome do bem vai exterminando vidas humanas). Não havia armas nucleares ou biológicas no Iraque nem ele praticava o terrorismo. A situação de anomia é generalizada. Derrubou-se um regime ditatorial, mas em seu lugar nada de sólido foi construído, a não ser uma guerra civil. Messianismo puro (e absolutamente impune). Depois de uma década e de mais de um bilhão de dólares gastos, um novo Iraque está longe de ser construído a partir dos atuais escombros, governados por um primeiro ministro tendencialmente ditatorial, que quer se perpetuar no poder, com voto contrário do Parlamento. Bush e Blair não tinham a menor ideia do que era o Iraque, suas forças, suas estruturas e suas tradições. Destituíram um tirano, mas criaram outros. Aliás, a própria destituição, dita “humanitária”, foi um ato de tirania, porque fundada na falsidade e na má-fé. O terrorismo mundial não foi extirpado, a democracia iraquiana não nasceu e a paz está muito longe de chegar. Bagdá não é uma capital aliada dos EUA e tampouco existe certeza sobre o fornecimento preferencial de petróleo. Mais um messianismo governado pelo abuso e pelo arbítrio, que sempre significa horripilantes violações aos direitos humanos de incontáveis vítimas inocentes. Assim os chamados civilizados iniciaram a construção do novo milênio.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Impunidade no trânsito: duro golpe na eficácia da lei

Mais um duro golpe na tese (na crença mágica) dos que acreditam na eficácia da lei penal no Brasil para a prevenção da violência. A matéria assinada por Léo Arcoverde (Agora de 27.02.13, p. A3), no que diz respeito à prevenção da violência no trânsito, é mortal: Detran suspende apenas 1 carteira de habilitação de cada 72 pessoas flagradas por embriaguez ao volante: “PM realizou 17.409 flagrantes da lei seca em 2012, mas o Detran suspendeu só 242 habilitações. Pela lei, todas as pessoas flagradas (por embriaguez ao volante) deveriam ter a carteira de habilitação suspensa. Problemas no funcionamento do Detran, não devidamente explicados por ele mesmo, reduzem drasticamente a eficácia da lei. Em 2011, a PM fez 6.598 flagrantes em blitze da lei seca na capital e Detran suspendeu 154 habilitações (ou uma para 43 casos). Assim, de um ano para o outro, os flagrantes cresceram 163.85% e as suspensões, 57,14%. Os números são uma estatística aproximada, já que o Detran não informa quantas suspensões, realizadas em cada ano, se referem a flagrantes realizados nos respectivos períodos”. Como prevenir mortes no trânsito? A Criminologia nos ensina (García-Pablos e Gomes: 2012a, p. 359 e ss.) que há duas maneiras de se enfrentar esse tema: (a) colocando em prática dezenas de medidas ligadas aos cinco eixos que governam o assunto (Educação, Engenharia – das estradas, das ruas e dos carros -, Fiscalização, Primeiros socorros e Punição); (b) confiando na eficácia da lei penal (edição de novas leis e sua efetiva aplicação). O primeiro modelo de prevenção é o integral e envolve uma eficiente coordenação entre medidas penais e extra-penais. O segundo, de cunho populista punitivo, deposita sua fé na prevenção puramente “penal” (leis mais duras, grande propaganda midiática das leis novas, leis simbólicas, penas mais severas etc.). A Europa segue o primeiro modelo rigorosamente e vem diminuindo em 5% ao ano as mortes no trânsito. O Brasil segue o segundo modelo e vem aumentando as mortes em 4% ao ano. No Brasil temos 661 mortes para cada um milhão de veículos. Europa, 113; EUA, 134; Japão, 64. Quem adota o modelo integral de prevenção (prevenção primária, secundária e terciária; no caso do trânsito: Educação, Engenharia, Fiscalização, Primeiros socorros e Punição) vem alcançando resultados mais efetivos. Quem se inclina pela linha populista punitiva (veja nosso livro Populismo penal midiático, Saraiva, 2013) só engana a população com medidas penais mais severas, mas não toca a raiz do problema. As novas leis penais, em razão da intensificação da fiscalização e da propaganda midiática, acabam tendo certo efeito preventivo nos seus primeiros meses de vigência. Depois, com o afrouxamento da fiscalização, as mortes voltam a aumentar. Isso está ocorrendo desde 1997 (ano do Código de Trânsito Brasileiro). Estamos fazendo sempre a mesma coisa errada, do mesmo jeito equivocado. Claro que esse engodo não muda a realidade trágica de mais de 43 mil mortes por ano!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Judiciário glosa restrições absurdas em editais de concursos

A PM-RJ excluiu um candidato (às suas fileiras) porque tinha tatuagem. O STF (no ARE 665.418, rel. Ayres Britto) entende que exigência desse tipo não encontra base legal. Sem lei, essas restrições discriminatórias não podem prosperar. O policial precisa ser bonito? Assim começa a matéria publicada no Valor Econômico de 26.03.13, p. E1, que enfoca o caso de um candidato à policial militar de MG que tinha acne. O TJ-MG (desembargadora Moreira Diniz) reconheceu seu direito de participar do certame (não é preciso ser bonito para ser policial). Há poucos dias a Polícia civil da BA expediu edital onde exigia “pente fino ginecológico” nas mulheres, ou prova da sua virgindade (prontamente o governo da BA revogou o absurdo). Há restrições razoáveis (conta com bom senso). Por exemplo: um candidato com “amputação das duas pernas” não poderia ser bombeiro. Isso resulta ser razoável. Mas para ser médico de emergência no serviço público (caso concreto de São José dos Campos), como bem divulgou o Valor Econômico de 26.03.13, p. E1, não há impedimento (como reconheceu o TJ-SP, desembargador Wanderley Federighi). Inquérito policial instaurado e logo em seguida arquivado não pode servir de base para a rejeição do candidato (caso decidido pelo TJ-PR) (Veja o Valor Econômico citado, que ainda cita o caso do candidato com problema dentário, que não pode ser impedido de ingressar na polícia militar TJ-SP). Inclusive o Poder Judiciário já reprovou candidatos por razões médicas (Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, hoje desembargador na Justiça do Trabalho), foi reprovado em São Paulo para a magistratura trabalhista por ser cego (Valor Econômico citado). O Estado de Direito tem por eixo os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da legalidade, do direito ao trabalho, do direito à vida e da razoabilidade. Todos os editais de concursos que fazem exigências ou restrições não contidas na lei e desarrazoadas devem ser censurados (glosados) pelo Poder Judiciário. A jurisprudência do STF (veja, v.g., ARE 665.418, rel. Ayres Britto) é no sentido de que apenas por meio de lei é possível impor restrição ao acesso a cargos públicos. Vêm preponderando as garantias da legalidade e da razoabilidade (ou seja: o Estado de Direito). A jurisprudência é fonte fundamental do direito. O controle de legalidade e de razoabilidade tem fundamento constitucional. Nenhum estado de direito se compatibiliza com o excesso, com aquilo que é desarrazoado. Sobretudo a Justiça tem que ser justa (equilibrada, sensata, razoável). O princípio da razoabilidade é um dos princípios mais refinados do Estado de Direito do século XXI. O juiz é o semáforo do sistema jurídico: para todo excesso ele tem que sinalizar o vermelho (do contrário, converte-se o Estado de Direito em Estado de Exceção, com chance de se chegar ao Estado de Polícia).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Juízes e preconceitos: os códigos ocultos dos juízes

Os juízes possuem códigos ocultos (conforme suas ideologias e idiossincrasias)? Poderiam eles ser preconceituosos? A Criminologia (Figueiredo Dias e Costa Andrade: O homem delinquente e a sociedade criminógena, p. 547 e ss.), desde logo, afirma que sim, que os julgadores contam com seus “second codes” (códigos ocultos ou paralelos ou particulares). Mas se isso é tão corriqueiro na Criminologia, se isso é algo tão óbvio e evidente (da natureza humana), não deveria ser motivo de desconforto, sim, de mais precaução (de mais cautela). Tudo devemos fazer para não cair na tentação das precipitações, das visões parciais, das injustiças, dos julgamentos sectários. Qual a razão do desconforto de se ler o óbvio? É que Criminologia, como ciência que segue o método empírico e interdisciplinar e que tem por objeto o estudo do crime, do criminoso, da vítima e do controle social (formal e informal), destacando-se (na sua linha crítica) a análise dos processos de criminalização (primária, secundária e terciária: do legislador, do juiz e da execução penal), é estudada em pouquíssimas faculdades de direito no Brasil. A formação do bacharel é eminentemente jurídica. Pior: preponderantemente legalista. Qual é a implicação prática da constatação de que os juízes possuem suas crenças, suas preferências, seus códigos ocultos (muitos inconscientes)? A seguinte: quando as normas aplicáveis ao caso concreto ou quando as provas do processo são divergentes, os chamados códigos particulares dos juízes, que nunca são ensinados nas faculdades de direito, são decisivos para o deslinde da causa. Neste momento crucial do processo de decisão, os preconceitos raciais, religiosos ou culturais podem desempenhar papel muito relevante. Pessoas estigmatizadas, estereotipadas, discriminadas social e economicamente, de um modo geral, são extremamente prejudicadas. O seu contrário, pessoas com status, bem apresentável, bem posicionada, bem formada etc., normalmente, levam grande vantagem. Estudo divulgado pela BBC de Londres no dia 22.03.2007 revela que os réus feios, por exemplo, têm mais chances de serem condenados criminalmente que os bonitos. Pessoas feias têm mais chances de serem condenadas por júris populares do que pessoas bonitas, de acordo com um estudo realizado pela Universidade de Bath, na Grã-Bretanha. Não é recente na Justiça criminal a discriminação contra os mais feios. Há muitos séculos o Imperador Valério sentenciou: “quando se tem dúvida entre dois presumidos culpados, condena-se o mais feio”. Conheci bem os códigos particulares dos juízes porque fui juiz durante 15 anos. No exercício da judicatura em incontáveis vezes me vi na iminência de sucumbir aos preconceitos, estereótipos, crenças, convicções sociais, pensamentos aristocratas, soberbia etc. Quando não exercitamos nossa humildade e prudência, os riscos dos preconceitos aumentam (e atormentam). Cautio (diria Spee).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Lei “Carolina Dickman” e sua (in)eficácia

Constitui crime, consoante a Lei 12.737/12 (art. 154-A), invadir dispositivo informático alheio (…) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo (…) ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Em debate promovido na FecomercioSP, no dia 01.03.13, sob a coordenação de Renato Opice Blum e Rony Vainzof, tive a oportunidade de externar meu pessimismo em relação à eficácia penal da lei acima referida. A crença de que a lei penal possa ter efeito preventivo está cada vez mais discutida. Ninguém concordaria com a ausência de tutela da nossa privacidade, intimidade; lei tem que existir para nos proteger. O problemático é esperar que isso seja feito pela lei penal. Eu, particularmente, confio mais em medidas civis (determinadas por juiz civil, como remoção de uma notícia ofensiva). Confio mais em indenizações. Quem conhece minimamente o funcionamento da justiça criminal no Brasil não pode se iludir: ela está, em geral, sucateada. Porque sucateada está a polícia civil (investigativa), que conta com incontáveis cadáveres nas suas portas, o que já é suficiente para sugar todos os seus recursos materiais e pessoais. Medidas civis urgentes são mais eficazes nessa área. De qualquer modo, houve intenção de se suprir uma lacuna no Brasil. O relator do projeto, deputado Paulo Teixeira, procurou fazer o melhor texto, mas todo conjunto de palavras permitem mil interpretações. Numa rápida olhada assinalei 104 conceitos dados pela lei, todos dependentes de interpretação. As penas são baixas (em regra, até dois anos), logo, a chance de prescrição é muito grande. Por todos esses motivos, não confio na eficácia preventiva dessa lei. A tutela civil teria condições de ser mais eficiente. Extimidade Na interpretação e aplicação dessa lei os operadores jurídicos devem atentar para o fenômeno da extimidade, que pode constituir uma forma de autorização tácita da quebra do sigilo das nossas intimidades (dos nossos segredos). “Teu segredo é teu prisioneiro. Uma vez libertado, volta contra ti e te aprisiona” (provérbio oriental). Extimidade é o contrário de intimidade. É lançar ao público, sobretudo por meio das redes sociais, algo que pertence à nossa privacidade. Como bem pondera Bauman (em La Repubblica, de 09.04.11, tradução de Moisés Sbardelotto), “os relacionamentos humanos deve ter mudado em notável medida e de modo particularmente drástico nestes últimos 30-40 anos… Ele se modificou a tal ponto que, como hipotetiza o psiquiatra e psicanalista Serge Tisseron, as relações consideradas como “significativas” passaram da “intimité” à “extimité”, isto é, da intimidade ao que ele chama de “extimidade”. (…)” “Analogamente a outras categorias de bens pessoais, de fato, o segredo é, por definição, aquela parte do conhecimento cujo compartilhamento com os outros é rejeitado ou proibido e/ou estritamente controlado. O segredo, por assim dizer, caracteriza e contradistingue os limites da privacidade, sendo esta última a esfera destinada a ser própria, o território da própria soberania indivisa, dentro do qual tem-se o poder total e indivisível de decidir “o que sou e quem sou” e partir da qual podem ser lançadas e relançadas as campanhas para fazer com que sejam reconhecidas e respeitadas as próprias decisões e mantê-las como tais” (Bauman). No mundo mais flexível e transitório das redes sociais, o que há de mais frequente é a exteriorização das intimidades. Nos tornamos, na era comunicacional, o oposto do que se admitia como padrão de conduta, antigamente. Nossos avós, certamente, eram muito mais recatados. “Em uma surpreendente inversão com relação aos hábitos dos nossos antepassados – continua Bauman -, porém, perdemos a coragem, a energia e principalmente a vontade de persistir na defesa desses direitos, daqueles insubstituíveis elementos constitutivos da autonomia individual. Aquilo que nos assusta hoje não é tanto a possibilidade da traição ou da violação da privacidade, mas sim o seu oposto, isto é, a perspectiva de que todas as vias de saída possam ser bloqueadas”. O que está mudando? Nós já não queremos apenas “ser”, não queremos somente “ser”: depois das redes sociais e particularmente do facebook, muito querem “ser aparecidos” (expostos ao público). Quem não aparece não existe. O tormentoso, assim, já não é a divulgação (para muitos) dos seus segredos, sim, a não divulgação deles. Uma coisa é usar as redes sociais para instruir, para educar, para transmitir ideias, para debater temas polêmicos, para desenvolver grandes manifestações em defesa da “polis”, outra bem distinta é usá-la para lançar ao público algo da nossa intimidade, da nossa privacidade, algo que deveria ficar restrito a cada um de nós. Consoante Bauman (em La Repubblica, de 09.04.11, tradução de Moisés Sbardelotto), “O advento da sociedade-confessionário marcou o triunfo definitivo daquela invenção esquisitamente moderna que é a privacidade – mas também marcou o início das suas vertiginosas quedas do apogeu da sua glória. Triunfo que se revelou ser uma vitória de Pirro, naturalmente, visto que a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e mais ciumentamente defendido”. Pelo que parece (conclui Bauman), não sentimos mais alegria ao ter segredos, a menos que se trate daquele gênero de segredos capaz de exaltar o nosso ego, atraindo a atenção dos pesquisadores e dos autores dos talk-shows televisivos, das primeiras páginas dos tabloides e das capas das revistas de papel envernizado. (…)”. Em suma, quem revela suas intimidades (segredos) para o público, naturalmente está abrindo mão, nessa parte, da sua tutela jurídica. Esse é um campo de ausência de tutela penal, por deliberação do próprio interessado.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Máquinas de triturar braços e vidas

Quase oitenta milhões de carros e motocicletas disputam os espaços públicos entre eles assim como entre eles e os pedestres e ciclistas. Quando mostramos para os estrangeiros o número de pessoas mortas no trânsito brasileiro – mais de um milhão de 1980 a 2013, 127 por dia, um óbito a cada 12 minutos – eles perguntam: faltam leis? Respondemos que não. Leis nós temos, razoavelmente boas tanto quanto as da Suíça. O problema é que aqui não temos os suíços para cumprirem tais normas de trânsito. Transformamos os veículos em máquinas de triturar braços (como no caso de David Santos Souza, cujo membro foi decepado por um motorista na Avenida Paulista, em São Paulo) e vidas. Continuamos engrossando nossas pilhas imensas de cadáveres antecipados. Por que tantos massacres? Boa parte deles faz parte da nossa guerra civil étnica e social, fundada na profunda ruptura social entre o Estado e os segmentos favelizados, ocupados por gente segregada, apartada (os inimigos). Aqui falamos da violência pública, violência levada a cabo pela maquinaria de guerra do Estado, formada pelo sistema policial-jurídico. Outra parte é fruto da guerra civil no trânsito: o carro foi transformado em arma de guerra (tão potente quanto uma arma de fogo) e o outro (as outras pessoas) em inimigo. Na guerra, o objetivo é sempre destruir (triturar) o inimigo (ou pedaços do seu corpo). É isso que estamos fazendo, com razoável eficiência: 127 pessoas mortas diariamente no trânsito e cerca de 140 intencionalmente. Nossas máquinas de triturar vidas contam com uma produção tanatológica diária de uns 270 óbitos. O Estado Democrático de Direito (anunciado pela Constituição), a moral humanitária e o progresso coletivo (sobretudo o econômico) não passam de indicadores civilizatórios totalmente inócuos e artificiais em sociedades como a brasileira, marcada (em grande parte) pela brutalidade selvagem assim como pela absoluta ausência de formação ética (entendida como a arte de viver bem humanamente – como diz Savater). O desprezo pela vida humana (muitas vezes a própria e, com frequência, a dos outros) só encontra paralelo no descuido com a coisa pública. Nossas políticas públicas, em geral (de saúde, de educação, de segurança viária etc.), não passam de necro-políticas, fundadas nas racionalidades aberrantes da tanatologia. A sociedade brasileira e o funcionamento da nossa egoísta convivência (ressalvadas as exceções) não retratam uma nação integrada, caracterizada pela ética e pelo respeito ao outro. Aqui atropelamos as pessoas e jogamos seus braços nos córregos como dejetos repugnantes. Ausência absoluta não só de respeito às regras jurídicas, senão, sobretudo, de ética. A selvageria chega ao ponto de se ignorar que um braço pode ser reimplantado. O nível de ensino (e dos exemplos públicos) que damos para a grande maioria da população é deplorável. Nosso ensino público é uma falsidade incontestável. O Estado não é instrumento da aplicação igualitária da lei, muito menos o bem-feitor social que privilegia todos os segmentos. Vivemos de mentiras, assentadas sobre uma única verdade: a dos milhões de cadáveres antecipados, porque desde o início da nossa colonização não aprendemos a respeitar a vida humana (ao contrário, somos máquinas treinadas para triturá-las, intencional ou acidentalmente, nas ruas, nas casas, nas boates etc.).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Menor corinthiano seria bode expiatório?

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no blogdolfg.com.br Mais uma morte antecipada no nosso continente: Kevin é seu nome. Num estádio de futebol na Bolívia, ele foi atingido por um sinalizador (foguete) mortal, que teria sido disparado por integrante (ou integrantes) da torcida corinthiana. Nietzsche admitia que a civilização é o único caminho para a domesticação do animal humano. O problema é que a civilização é muito demorada. Enquanto não somos domesticados, sobra espaço para nossa animalidade, excentricidade e vulgaridade. Naturalmente não deveríamos ir a estádios de futebol e casas de diversão com fogos de artifício e similares. Que falta nos faz a autolimitação contínua. Dando vazão ilimitada e incondicionada ao nosso Eros (amor, diversão), à nossa vulgaridade e excentricidade, nos perdemos no nosso Ethos (ética). Pior ainda se o menor que assumiu a responsabilidade estiver sendo usado como “bode expiatório”, ou seja, o eleito para expiar (purgar) a culpa de terceiros. Ele teria sido apresentado como “culpado” pelo fato. Desde que os espanhóis e portugueses, no final do século XV e começo do século XVI, trouxeram para os países colonizados (conquistados) sua cultura decadente marcada pela violência, cobiça e fé, estamos computando diariamente mortes antecipadas que poderiam ser evitadas. Tragédia após tragédia. Massacre após massacre. Que não são obras de Deus nem frutos de uma fatalidade. É praticamente tudo evitável! O ECA não prevê a hipótese de o menor ser responsabilizado no Brasil por atos cometidos fora do nosso país. Mas é claro que temos que combinar o art. 103 do ECA (são atos infracionais os crimes e as contravenções) com o art. 7 do CP para admitir a extraterritorialidade da lei penal brasileira, quando um brasileiro (menor) comete um “crime” fora do nosso território. A raciocinar de maneira diferente, a impunidade estaria garantida. O menor responde pelo “crime” (cometido fora) aqui no Brasil, de acordo com as leis brasileiras, aplicadas por autoridades brasileiras. É certo, de qualquer modo, que o menor não pode ser extraditado, seja por força da nossa Constituição, seja por força dos tratados internacionais (veja Ramidoff, no atualidadesdodireito.com.br). Tanto as autoridades bolivianas quanto as brasileiras deveriam se empenhar fortemente para apurar a verdade dos fatos.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Min. Celso de Mello diz que JB (o herói nacional) está errado

Em artigo que publiquei na Folha de S. Paulo (13.10.12), secundado recentemente por Valério Mazzuoli, afirmei que, do ponto de vista do Estado de Direito vigente, os réus do mensalão poderiam, sim, apresentar reclamações junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que pode levar o caso para a Corte respectiva (em San Jose da Costa Rica), sobretudo tendo em vista o precedente Barreto Leiva, onde este último tribunal garante o duplo grau de jurisdição, ou seja, no campo criminal, todo réu tem direito a dois julgamentos, mesmo que o primeiro tenha emanado da Corte Máxima do País (como é o caso do mensalão). A reação do ministro JB (veja o portal G1), a essa tese, foi a mais contundente e populista imaginável (do jeito que o povão não letrado juridicamente entende): “Barbosa diz que falar em recurso no exterior ´é enganar o público´. Para relator, corte internacional não reverte resultado do julgamento. Advogados falaram em questionar decisão do Supremo Tribunal Federal.O relator do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, afirmou que os advogados dos réus tentam “enganar o público leigo” quando dizem que questionarão o resultado do julgamento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). “É enganar o público leigo e ganhar dinheiro às custas de quem não tem informação. Que leiam a Constituição brasileira, que leiam as leis que regem os tribunais”, afirmou o relator do mensalão após sessão desta terça, na qual José Dirceu foi condenado por corrupção ativa (oferecer vantagem indevida). Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello já havia afirmado não ver chances de reverter as condenações e chamou a possibilidade do recurso de “direito de espernear”. Sediado na cidade de San José, capital da Costa Rica, a corte interamericana é voltada para processos em que tenham ocorrido violações de direitos humanos. Para o ministro Joaquim Barbosa, dizer que a decisão do Supremo pode ser revertida é um “cinismo”. “Pergunte se em algum lugar do Brasil nos últimos 30 anos, 40, 50, 60 anos, tenha sido procedido de maneira diferente. Porque é muito cinismo dizer isso, uma pessoa que já foi juiz ou procurador, vir a público enganar as pessoas com argumentos desse tipo”, afirmou Barbosa.” Em seu voto no processo do mensalão o Min. Celso de Mello, contrariando frontalmente a verborragia do ministro JB, afirmou (veja Conjur): “O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Mostra-se claro inexistirqualquer nexo de prejudicialidade externa entre esta causa penal e qualquer procedimento instaurado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É que não se pode determinar a suspensão prejudicialdeste processo penal em razão de alegadamente existir provocação formal dirigida, nos termos do art. 44 do Pacto de São José da Costa Rica, à Comissão (não à Corte) Interamericana de Direito Humanos. Assinale-se,a título de mero registro, que, no contexto do Sistema Interamericano de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos, a pessoa física ainda não dispõe de legitimidade ativa para fazer instaurar, desde logo, ela própria, processo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, eis que essa qualidade para agir junto a referido organismo judiciário restringe-se,unicamente, aos Estados-partes e à Comissão Interamericana (Pacto de São José, Artigo 61, n 1), uma vez atendidos os requisitos de procedibilidade fixados no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 da Convenção Americana (Artigo 61, n 2). De qualquer maneira, no entanto, não há como inferir, das cláusulas que compõem o Pacto de São José da Costa Rica, a existência de relação de prejudicialidade externa que imponha a suspensão deste processo penal pelo só fato de haver postulação deduzida perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – E seria absurda, não é, Ministro? O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Nada impedirá, contudo, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, D.C., esgotada a jurisdição doméstica (ou interna) atendidasas demais condições estipuladas no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 do Pacto de São José, submeta o caso à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em ordem a permitir que esta exerçao controle de convencionalidade. Não há, porém, possibilidade de se determinar, neste momento, a suspensão prejudicial da presente causa penal. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – Sobrestamento do processo. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR) – Ministro Celso, apenas uma nota brevíssima de Direito Comparado: essa possibilidade existe no sistema de Direito comunitário europeu. Há um instituto chamado reenvio prejudicial, ou renvoi préjudiciel: quando um juiz local tem uma dúvida, ou alguém, uma das partes suscita um incidente acerca do Direito comunitário, sobresta-se o processo e faz-se uma consulta à Corte europeia, sediada em Luxemburgo. Mas, claro que o sistema interamericano não agasalhou essa hipótese. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Há, presentemente, no contexto do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, celebrado em 1966 (e a que o Brasil somente aderiu em 1992), um mecanismo viabilizador do acesso direto e imediato da própria pessoa física interessada à jurisdição tutelar do Comitê de Direitos Humanos, incumbido de atuar como órgão de implementação dos direitos e garantias fundamentais em escala global, pois aquele Pacto Internacional, por haver sido promulgado no âmbito das Nações Unidas, reveste-se de projeção universal. Essa significativa ampliação da legitimidade ativa em favor dequalquer pessoa interessada decorreu do Protocolo Adicional Facultativoao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Não é, porém, o que se registra no âmbito do Pacto de São José da Costa Rica, segundo o qual a pessoa interessada (ainda) não dispõe delocus standi” para, ela própria, fazer instaurar, de imediato, a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Mas essa é uma hipótese de aplicação do próprio Direito europeu. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR) – Sim, não tem nada a ver com nossa sistemática. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Tem razão o eminente Revisor. SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Não há como. E mais, Ministro Celso: Justiça que se preza não se submete, ela própria, a órgãos externos de natureza política. E a Comissão o é. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: A questão central, neste tema, Senhor Relator, considerada a limitação da soberania dos Estados (com evidente afastamento das concepções de JEAN BODIN), notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão do Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteçãoregional e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter fidelidade aos compromissos que o Estado brasileiro assumiu na ordem internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma – reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País (Decreto n 7.030/2009) -, segundo o qual “pacta sunt servanda“, vale dizer, “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé“, sendo-lhe inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa mesma Convenção de Viena, as disposições do direito interno do Estado nacional, que não poderá justificar, com base em tais regras domésticas, o inadimplemento de suas obrigações convencionais, sob pena de cometer grave ilícito internacional. Não custa relembrar que o Brasil, apoiando-se em soberana deliberação, submeteu-se à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que significa, considerado o formal reconhecimento, por parte de nosso País, da competência da Corte (Decreto n 4.463/2002), que o Estado brasileiro comprometeu-se, por efeito de sua própria vontade político-jurídica, “a cumprir a decisão da Corte em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68). “Pacta sunt servanda“… O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Da Corte, mas não da Comissão. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O Brasil, no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Decreto n 4.463, de 08/11/2002), reconheceu como obrigatórias a jurisdição e a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção” (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 62), o que legitima o exercício, por esse importante organismo judiciário de âmbito regional, do controle deconvencionalidade, vale dizer, da adequação e observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana de Direitos Humanos. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – De resto, vamos fazer uma observação. Raramente teve-se um processo com tal cuidado de observância do devido processo legal; quer dizer, o recurso à Corte Interamericana – vamos reconhecer – é um recurso de retórica processual. O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Pois é. Eu tive o cuidado de trazer tudo, quase tudo a este Plenário, exatamente para evitar esse tipo de mumbo jambo, não é? O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – Em rigor, essas matérias estão preclusas desde o início. O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Estão totalmente preclusas.” Juristas (como o JB) formados sob o império do tradicional modelo do Estado de Direito liberal (onde se impõe o legalismo), que é herança do século XIX, sobretudo depois da Revolução francesa, têm muita dificuldade de entender o funcionamento do pós-moderno Estado de Direito democrático internacional e universal (veja nossos livros Direito Supraconstitucional, Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos etc.). JB chegou a afirmar que só “leigos” admitem recurso para o Sistema Interamericano. Só “leigos” e “cínicos”. O Min. Celso de Mello, que de leigo não tem nada, categoricamente confrontou o entendimento (juridicamente) estapafúrdio de JB que, animado pela popularidade das suas declarações, vem “habilmente” iludindo o povo (juridicamente) desletrado com seus arroubos verborrágicos do tipo “vá chafurdar no lixo”, “estão enganando os leigos”, “são cínicos os que admitem recursos para po Sistema Interamericano”, “é só ler a Constituição e as leis” etc. A considerar o incensurável e brilhante voto do Ministro Celso de Mello, realmente está faltando leitura da Constituição e das leis brasileiras, assim como dos tratados internacionais firmados pelo Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Necrim: polícia conciliadora de primeiro mundo

Se alguém quiser conhecer uma polícia conciliadora de primeiro mundo já não é preciso ir ao Canadá, Finlândia, Noruega, Dinamarca ou Suécia. Basta ir a Bauru, Lins, Marília, Tupã, Assis, Jaú e Ourinhos (todas no Estado de São Paulo). Necrim significa Núcleos Especiais Criminais. Pertencem à polícia civil do Estado de São Paulo. Paralelamente à função judiciária, foram instalados vários Necrims nas cidades mencionadas. É uma revolução no campo da resolução dos conflitos penais relacionados com os juizados especiais criminais. Por meio da conciliação estão sendo resolvidos muitos conflitos. Que essa iniciativa pioneira e alvissareira (para além de humanista e sensata) se espalhe por todo país, o mais pronto possível, até se chegar a uma nova carreira (ou uma fase inicial da carreira) dentro da polícia civil: delegado de polícia conciliador. O ser humano jamais entenderá seu semelhante enquanto não se debruçar sobre seus problemas. “Se você não é parte da solução [dos problemas humanos], então é parte do problema” (Eldridge Cleaver, americano, ativista). Vejo os Necrims paulistas como empreendimentos paralelos aos juizados especiais criminais de Mato Grosso do Sul, no princípio da década de 90, regidos por legislação estadual. Na época eu disse que para conhecer uma Justiça avançada já não era preciso cruzar o Atlântico, bastava transpor o rio Paraná. Sobre a eficácia conciliadora dos Necrims acaba de ser apresentada uma monografia de pós-graduação lato sensu, por Luís Henrique Fernandes Casarini, sob orientação de Edson Cardia, no Centro de Estudos Superiores da Polícia Civil “Prof. Maurício Henrique Guimarães Pereira”, da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, em São Paulo. Os números exitosos das conciliações são muito promissores. A conciliação, com a presença de advogado, é uma forma alternativa e civilizada de resolução de conflitos. São iniciativas como essas que marcam a inventividade e criatividade do brasileiro para o bem. Nem todos os delegados contam com pendor para essa atividade. Daí a necessidade de escolher as pessoas certas para o desempenho da nobre função de conciliar. Quem não tem a mente aberta para isso não deve assumir tal papel. No início da carreira, todo delegado de polícia deveria passar um período nesse setor. A primeira experiência do Necrim ocorreu na cidade de Ribeirão Corrente, na região de Ribeirão Preto, por iniciativa do Delegado de Polícia Dr. Cloves Rodrigues da Costa, em meados do ano de 2003. Ganhou força a partir de 2009/2010, sobretudo na região de Bauru (SP). As polícias civis de todo país deveriam se inspirar nesse trabalho pioneiro para inovar, para se reinventar. Prevenir maiores conflitos é tão relevante quanto reprimir os crimes, porém, a vantagem é que a prevenção vem antes da lesão ao bem jurídico. Sou favorável aos Necrims e pretendo lutar para que eles se espalhem para todo país. Se você tem interesse nesse assunto, leia mais sobre ele no meu blog (blogdolfg.com.br). “O futuro não é o que tememos. É o que ousamos” (Carlos Lacerda, brasileiro, político). Avante!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Noruega como modelo de reabilitação de criminosos

O Brasil é responsável por uma das mais altas taxas de reincidência criminal em todo o mundo. No país a taxa média de reincidência (amplamente admitida mas nunca comprovada empiricamente) é de mais ou menos 70%, ou seja, 7 em cada 10 criminosos voltam a cometer algum tipo de crime após saírem da cadeia. Alguns perguntariam “Por quê?”. E eu pergunto: “Por que não”? O que esperar de um sistema que propõe reabilitar e reinserir aqueles que cometerem algum tipo de crime, mas nada oferece para que essa situação realmente aconteça. Presídios em estado de depredação total (veja teoria das janelas partidas), pouquíssimos programas educacionais e laborais para os detentos, praticamente nenhum incentivo cultural, e, ainda, uma sinistra cultura (mas que divertem muitas pessoas) de que bandido bom é bandido morto (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche). Situação contrária é encontrada na Noruega. Considerada pela ONU, em 2012, o melhor país para se viver (1 no ranking do IDH) e de acordo com levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, o 8 país com a menor taxa de homicídios no mundo, lá o sistema carcerário chega a reabilitar 80% dos criminosos, ou seja, apenas 2 em cada 10 presos voltam a cometer crimes; é uma das menores taxas de reincidência do mundo. Em uma prisão em Bastoy, chamada de ilha paradisíaca, essa reincidência é de cerca de 16% entre os homicidas, estupradores e traficantes que por ali passaram. Os EUA chegam a registrar 60% de reincidência e o Reino Unido, 50%. A média europeia é 50%. A Noruega associa as baixas taxas de reincidência ao fato de ter seu sistema penal pautado na reabilitação e não na punição por vingança ou retaliação do criminoso. A reabilitação, nesse caso, não é uma opção, ela é obrigatória. Dessa forma, qualquer criminoso poderá ser condenado à pena máxima prevista pela legislação do país (21 anos), e, se o indivíduo não comprovar estar totalmente reabilitado para o convívio social, a pena será prorrogada, em mais 5 anos, até que sua reintegração seja comprovada. No presídio, um prédio, em meio a uma floresta, decorado com grafites e quadros nos corredores, e na qual as celas não possuem grades, mas sim uma boa cama, banheiro com vaso sanitário, chuveiro, toalhas brancas e porta, televisão de tela plana, mesa, cadeira e armário, quadro para afixar papéis e fotos, além de geladeiras. Encontra-se lá uma ampla biblioteca, ginásio de esportes, campo de futebol, chalés para os presos receberem os familiares, estúdio de gravação de música e oficinas de trabalho. Nessas oficinas são oferecidos cursos de formação profissional, cursos educacionais e o trabalhador recebe uma pequena remuneração. Para controlar o ócio, oferecer muitas atividades educacionais, de trabalho e lazer são as estratégias. A prisão é construída em blocos de oito celas cada (alguns deles, como estupradores e pedófilos ficam em blocos separados). Cada bloco contém uma cozinha, comida fornecida pela prisão e preparada pelos próprios presos. Cada bloco tem sua cozinha. A comida é fornecida pela prisão, mas é preparada pelos próprios detentos, que podem comprar alimentos no mercado interno para abastecer seus refrigeradores. Todos os responsáveis pelo cuidado dos detentos devem passar por no mínimo dois anos de preparação para o cargo, em um curso superior, tendo como obrigação fundamental mostrar respeito a todos que ali estão. Partem do pressuposto que ao mostrarem respeito, os outros também aprenderão a respeitar. A diferença entre o sistema de execução penal norueguês em relação ao sistema da maioria dos países, como o brasileiro, americano, inglês é que ele é fundamentado na ideia que a prisão é a privação da liberdade, e pautado na reabilitação e não no tratamento cruel e na vingança. O detento, nesse modelo, é obrigado a mostrar progressos educacionais, laborais e comportamentais, e, dessa forma, provar que pode ter o direito de exercer sua liberdade novamente junto a sociedade. A diferença entre os dois países (Noruega e Brasil) é a seguinte: enquanto lá os presos saem e praticamente não cometem crimes, respeitando a população, aqui os presos saem roubando e matando pessoas. Mas essas são consequências aparentemente colaterais, porque a população manifesta muito mais prazer no massacre contra o preso produzido dentro dos presídios (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche). ** Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Nossa guerra civil tem números sonegados

A notícia (14.03.13): CNJ estuda medidas contra TJ/PE por sonegar informações “A Enasp – Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, com representantes no CNJ, estuda recomendar à Corregedoria Nacional de Justiça que investigue o TJ/PE por não ter informado o número de processos por homicídio doloso, distribuídos no fim de 2007, mas que ainda não foram julgados… Eram metas do Enasp que os tribunais estaduais superassem até o fim de 2012 a fase de pronúncia em todas as ações penais por crime de homicídio ajuizadas até 31/12/2008. A outra exigência era o julgamento de todas as ações penais relativas a homicídios dolosos distribuídas até 31/12/07″. Nota oficial do TJ-PE: “O Tribunal de Justiça de Pernambuco afirma não ter sonegado informações ao CNJ… Nossos comentários: quando nem sequer sabemos o tamanho de um problema, claro que nunca resolveremos esse problema. Continuamos, no Brasil, com sérias dificuldades para quantificar o número de pessoas que são trituradas diariamente (intencional ou acidentalmente). Os números são conquistados com muita dificuldade, quando o são. Eles são protelados, dificultados, escamoteados, camuflados, adulterados ou, simplesmente, sonegados. A capacidade da nossa máquina (estatal e privada) de triturar carne, ossos e sangue humanos não é eficiente apenas no momento do extermínio, senão também no da negação dele. O escopo não é só o de exterminar, senão, sobretudo, de ocultar. Por que funciona assim? Zaffaroni (2012, p. 311/312) sugere a seguinte metáfora biologista: “Essas mortes, e muitas outras que deixam cadáveres mudos, são produto da necessidade de purificar, de limpar, de eliminar os germes patogênicos do corpo social, a escória social. A criminologia midiática assume o discurso dos leucócitos sociais. A metáfora biologista costuma ser expressa na comunicação social, apesar de, ultimamente, não ser de bom tom, mas desde o positivismo e mesmo antes, a linguagem da higiene social é bem expressa. A metáfora escatológica é bem clara: eles são para a criminologia midiática as fezes do corpo social. Continuando o raciocínio, que aqui costuma ser interrompido, resultaria que este produto normal de descarte deve ser canalizado através de umacloaca, que seria o sistema penal. Nenhum operador do sistema penal deveria esquivar-se dessa reflexão: para essa criminologia, nossa função seria a de limpadores de fezes e o código penal um regulamento para escoar os esgotos das cloacas. Policiais, juízes, magistrados, fiscais, catedráticos, juristas, criminólogos, poderíamos todos despojar-nos dos uniformes e togas e imaginar a vestimenta com a qual esta criminologia que nos amedronta pretende nos vestir”. A razão última dessa escatologia biologista é o estado de guerra permanente que vivemos, implantada desde a origem (1500) e mantida por um regime econômico injusto e brutalmente egoísta bem como por um sistema político corrupto e imoral, que fabricou favelas pelos quatro cantos, que demarcou as periferias assim como seu desigual estilo de vida, que fez as masmorras e desenvolveu a maquinaria de explorar e/ou triturar seres humanos, que industrializou o descarte étnico e social, ou seja, a escória, os “germes patogênicos”, as “fezes do corpo social”, que não são mais do que braços e pernas (sem nenhum valor de mercado). O que nos falta? De plano, uma postura ética, compreendida como “a arte de viver bem humanamente” (Savater). Grande parcela da nossa população não enxerga o outro como um ser humano frágil e vulnerável, sim, como “fezes do corpo social”. Basta ver o nível de educação que nós lhes damos para se comprovar a premissa de que a escória deve sempre ser tratada como tal, ou seja, como puros “braços e pernas” (e nada mais que isso). O Brasil, visto em sua globalidade, não é um país feito para a “arte de viver bem humanamente”. Aliás, jamais viveremos civilizadamente enquanto nossas condições estruturais não mudarem. Esse é o preço que temos que pagar pelo país que muitos de nós (falo da elite, sobretudo) estamos ajudando a edificar. Quem constrói cloacas humanas, não pode nunca ter certeza de que possa desfrutar, com tranquilidade, dos perfumes dos coloridos jardins.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – O “Titanic” seria a melhor metáfora do Brasil?

Se o “Titanic”, que foi para o fundo mar há 100 anos, é a maior metáfora do mundo (como disse Veríssimo), é algo possível. Que é a melhor metáfora para o Brasil parece não haver dúvida nenhuma. Mas há uma diferença entre ele e o Brasil: o “Titanic” afundou e já se acabou; o Brasil, com a aparência enganosa de potência mundial (7ª economia do mundo), vem se expandindo economicamente, mas, ao mesmo tempo, se exaurindo diariamente com as suas contradições e mazelas, com a roubalheira e a corrupção, sobretudo política e empresarial, destacando-se o seu pecado original praticado pela exploração escravagista, com todas as nefastas consequências daí decorrentes, tais como as desigualdades sociais, econômicas e culturais, as discriminações, o autoritarismo, a marginalização de grandes parcelas da população, a violência estrutural, individual e institucional, a corrupção, o nepotismo, o clientelismo etc. O “Titanic” serve de paradigma para a sociedade brasileira porque nada simboliza com mais fidedignidade a divisão de classes que um navio, que abriga gente do porão aos “decks” superiores elitizados. No porão do nosso navio se encontram os trabalhadores mal assalariados e sem perspectiva futura, os estudantes com péssima qualidade de ensino, os professores mal remunerados, os policiais espoliados, os excluídos, os marginalizados, os descartáveis ou elimináveis. Sempre estiveram no porão, é verdade, mas finalmente perceberam que possuem a posse do “casco do navio” e isso pode ter consequências incalculáveis para os que estão nos decks de cima. No Brasil ainda não tínhamos percebido (por isso que muito sofremos com o medo e a insegurança, com o terror das televisões, com os toques de recolher, com os assassinatos fúteis etc.) que são os habitantes dos porões dos navios (negreiros) que detêm o domínio dos seus cascos social e planetário. Na verdade, com a globalização, o navio terráqueo se tornou único para todos. Sempre que os habitantes dos porões “furam” o casco do navio (com protestos ordeiros e justos, contra as injustiças dos sistemas capitalistas neoliberal ou aristocrata-escravagista), naturalmente o risco de naufrágio atinge todos, incluindo os ricos, os brancos, a elite, pouco importando a posição de cada um dentro do navio. De nada adianta, de agora em diante, a construção das indecentes muralhas divisórias dos territórios demarcadores do apartheid. Viver em bairros ricos, mas cercados por todos os lados de miseráveis e marginalizados, de trabalhadores descontentes e explorados, tem a mesma sensação daqueles que desfrutavam da primeira classe do “Titanic” no momento do seu naufrágio. Os que foram jogados para os porões do navio planetário, pelos detentores dos poderes econômico, financeiro e político, estão agora “furando” diariamente o casco do navio social (mediante protestos civilizados), porque não vislumbram alternativas de progresso na vida. A cada “furo no casco” mais arrepiada fica a elite aristocrata-escravagista, que reage por meio da polícia, sempre com mais violência. E violência, como sabemos, só gera violência. Um amigo me contou que, há pouco tempo, falando telepaticamente com um chefe indígena da tribo Tupi, um historiador dos genocídios portugueses, este lhe teria dito o seguinte: “Enquanto os que comandam o Brasil não admitirem eticamente que todos somos seres humanos, que jamais podemos ser tratados ou reduzidos a coisas, a animaisou insetos; enquanto não pedirem desculpas e se reconciliarem com os discriminados e excluídos, com os estudantes carentes e trabalhadores espoliados, nós não desenterraremos da terrae brasilis a maldição que rogamos em 1.500 contra esses exploradores escravagistas, que vivem num dos mais belos paraísos naturais do mundo, mas sem nenhuma tranquilidade nem segurança, ou seja, sem civilização”. O pecado original do escravagismo e da exploração continua sangrando nosso País e seus habitantes indefesos, que somente agora estão percebendo a diferença entre a barbárie e a civilização.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – O inquisidor Bento XVI humilhou muito as mulheres

A liberdade de escolha (de eleição) e a vulnerabilidade da nossa condição humana (somos todos mortais, ou seja, a finitude é da essência humana) são as duas bases da ética, entendida como a “arte de viver bem humanamente” (Savater). Não temos como não ser os responsáveis pela eleição, dentro de certas circunstâncias, de cada ato consciente da nossa vida. Não temos como superar a finitude da nossa existência (somos mortais e extremamente frágeis). Logo, temos que fazer tudo, sendo ou não religioso, sendo ou não teólogo, sendo ou não papa, para melhorar a convivência humana, respeitando todas as pessoas – inclusive e, sobretudo, as mulheres. A vida ética, bem sublinhou a ministra Cármen Lúcia, significa dirigir na mão correta todo o percurso. Eis a sua metáfora: “Sabe o que eu acho?”, disse a ministra do STF. “(Eu acho) que a vida é igual a uma estrada. Não adianta você dizer que foi na reta certinho mil quilômetros e depois você entra na contramão e pega alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira. Independente do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a estrada. Se você estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser mais fácil. Isso no serviço público [ou religioso ou empresarial], muito mais.” Nós somos tudo o que fazemos na nossa vida. Há coisas boas e coisas ruins. O mundo inteiro, desde que o papa anunciou sua renúncia, reverencialmente procurou enaltecer suas coisas boas. Mas como não somos perfeição acabada (a começar pela nossa constituição física, extremamente frágil), não há como mostrar para os jovens do mundo inteiro o que o papa também fez de equivocado (do ponto de vista ético). Temos que ter todo respeito pelas suas obras positivas para a convivência humana. Isso, no entanto, não significa esquecer os seus pecados (sobretudo, os cometidos contra as mulheres). Para homenagear a cruenta luta internacional das mulheres, massacradas coletivamente pelos homens (somente no Brasil, uma morte a cada duas horas), mas desde a Idade Média, sob o império do discurso satânico das bruxas, pelos homens das Igrejas, segue, para reflexão, a tradução do texto de Juan José Tamayo, um dos teólogos mais lúcidos de toda a Europa, na atualidade, publicado no El País de 01.03.13: Amnésia coletiva (Clique e leia) Bento XVI foi eleito papa em abril de 2005, com 78 anos. Sua eleição não foi enfocada como algo atípico, quando, na verdade, era ou teria sido em qualquer instituição viva e ativa. O anúncio da sua renúncia, a ponto de cumprir 86 anos, provocou, para além de uma surpresa generalizada, uma avalanche efervescente e febril de elogios, loas e parabéns de todos os setores políticos e religiosos, empresariais e financeiros, e de todas as tendências ideológicas, desde os conservadores, passando pelos centristas, até chegar aos progressistas, que são os que mais elogiaram a decisão papal. Os meios de comunicação de todo mundo e de todas as cores ideológicas, incluindo os mais laicos, se somaram a este coro de discursos apaixonados pró-papais, em um gesto de quase unanimidade que não se havia produzido durante os quase oito anos de pontificado do cardeal Ratzinger. A inesperada notícia provocou tamanho deslumbramento mental e sentimental no imaginário social e em não poucos setores críticos do catolicismo, que, repentinamente, lançou um véu protetivo sobre seu passado episcopal, desde que fora nomeado arcebispo de Munique, e papa, durante seus anos de pontificado. O enaltecimento do papa ancião e o reconhecimento do seu trabalho se converteram em um exercício de amnésia coletiva e de perdão geral dos seus 36 anos de poder que exerceu autoritariamente, sem nunca permitir qualquer tipo de armistício. Sua renúncia foi vista como uma decisão normal justificável pela sua idade avançada assim como pela saúde precária, o que lhe absolveria de tudo o que fez anteriormente. Por mais negligente (ou indulgente) que seja a memória coletiva, neste e em muitos outros casos, existem coisas que não podem ser jogadas ao esquecimento. Não se pode esquecer a atitude inquisitorial do cardeal Ratizinger com seus colegas, os teólogos e as teólogas, desde que assumiu o cargo do ex-Santo Ofício, até seu afastamento. Durante todo esse tempo – mais de seis lustros -, que para alguns foi uma eternidade, julgou, condenou, impôs silêncio, censurou, expulsou de cátedras, destituiu diretores de revistas de teologia ou de informação religiosa, suspendeu do ministério divino, eliminou a liberdade de cátedra, limitou a liberdade de investigação, impôs sua teologia como pensamento único e inclusive chegou a excomungar colegas pelo que subjetivamente acreditou que eram erros e laminou o pluralismo teológico com o conseguinte empobrecimento para a teologia. Durante todos esses anos humilhou as mulheres – que é maioria na Igreja católica -, negou-lhes voz e voto, fechou-lhes as portas de acesso ao sacerdócio, negou-lhes os direitos sexuais e reprodutivos, impediu-lhes de assumir postos de responsabilidade, lhes impôs uma moral sexual repressiva, não lhes permitiu entrar no âmbito do sagrado, lhes declarou rebeldes e lhes admoestou severamente, como no caso das Religiosas Norteamericanas, por seguirem a voz da consciência e comprometerem-se com os pobres. As mulheres foram utilizadas, enfim, como serviçais. Assim seguirá tratando-as em seu retiro de papa emérito, onde terá quatro religiosas à sua inteira disposição. Final patriarcal para o papa e humilhante para as mulheres! Juan José Tamayo é diretor da Cátedra de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade Carlos III de Madrid. Seu último livro é Invitación a la utopía (Trotta, 2012).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – O que nós, do mundo jurídico, sabemos da crise financeira de 2007-2008?

O Brasil já começa a sofrer (de novo) com a inflação, está com sua balança desequilibrada, vem conseguindo manter o consumo interno na base de ajudas fiscais (isenções ou reduções de tributos) e está se tornando mais intervencionista na economia. O programa Bolsa Família ajudou e ajuda muitos pobres (e estimula a educação das crianças), 22 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema, diminuiu a desigualdade (nos governos de FHC, Lula e Dilma) mas… seu parceiro preferencial, a China (que também começa a sofrer os efeitos da crise mundial), acaba de anular um contrato com o Brasil (5% de toda colheita de soja), porque o prazo para entrega não era confiável. O Brasil cresceu (7ª economia do mundo), aqui entrou muito dinheiro com as exportações (de commodities) e os investimentos (que agora estão se rareando), porém, deixou de investir em infraestrutura (estradas, portos, aeroportos etc.), na educação, na saúde, na Justiça etc. De imediatismo a imediatismo, nunca fomos capazes de construir um país para o futuro. Somos, paradoxalmente, o país do futuro (Stefan Zwig), sem pensar (ou se preparar para) esse futuro. Na verdade, sem educação nenhum país do mundo tem futuro. Se buscamos a origem dos nossos males, lá está a falta de educação. A felicidade do consumo (milhões de brasileiros compraram seu carro ou sua moto nos últimos tempos) não supre a carência do conhecimento. A crise internacional, vista no princípio (2007-2008) como uma “marolinha”, começa a bater forte (também) nas portas da economia brasileira. De onde vem essa crise? Como ela surgiu? O capitalismo, mesmo quando apresenta grande prosperidade, constitui garantia de bonança por longos períodos? Lendo o didático livro El estado de malestar (de Jordi Bosch Meda, 2013) podemos depreender o seguinte: está confirmado que o capitalismo (que é o pior de todos os regimes econômicos, com exceção dos demais – Churchill – e do capitalismo selvagem) nunca seguiu um único caminho de estabilidade e pujança forte (ele é cheio de altos e baixos: hora está bem, hora está mal). Seguindo, em linhas gerais, o livro acima mencionado, podemos sintetizar o seguinte: A crise econômica e financeira de 2007-2008 começou nos EUA e já é considerada a maior, desde a Grande Depressão de 1929 (que derrubou as bolsas do mundo inteiro). Cinco fatores contribuíram para ela: (a) excesso de liquidez mundial (sobra de dinheiro), (b) expansão aloprada do crédito hipotecário, na modalidade de subprime, para a compra de casas (aqui nasceu a bolha imobiliária, sobretudo nos EUA), (c) a desregulação do setor bancário e financeiro (imposta pelo neoliberalismo, que constitui uma das manifestações do ultraliberalismo norte-americano e inglês), (d) o surgimento de novos produtos financeiros (a partir da expansão do crédito hipotecário) e (e) mau funcionamento das agências estatais e paraestatais de controle do mercado econômico e financeiro. Muita gente financiou sua casa nova, mas não tinha dinheiro (nem condições) para pagar. O crédito hipotecário, sem pagamento, vira pó. O valor do imóvel começou a baixar, até chegar a patamares risíveis. Muitos produtos financeiros (derivados) nasceram desses créditos (que foram comercializados ampla e difusamente). O mercado financeiro virou um cassino global. Muitos ganharam milhões de dólares (os mais espertos), mas o que sobrou para alguns, faltou para muitos. As financeiras e os bancos começaram a quebrar (First Magnus Financial, Lehman Brothers, Merrill Lynch etc.). Não só nos EUA, senão também na Europa (Northem Rock Lloyds, Hypo Real Bank, Dexia etc.). Aí começaram as ajudas do dinheiro público para socorrer os bancos (e tudo para evitar a quebradeira geral). Ocorre que dinheiro público investido em banco quase quebrado não dá empregos, salários, segurança social etc. A economia de vários países foram à lona (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha etc.) e os resgates (com regras rígidas) não estão surtindo os efeitos desejados, porque não só aumentaram a dívida dos países (dívida soberana), como estão esmagando os velhos “estados de bem-estar social”. A cada dia crescem os “indignados” e a crise financeira, cada vez mais desestabilizadora, gerou uma grande crise de confiança mundial, provocando verdadeiro pânico. Quais são os próximos capítulos? Está todo mundo torcendo por uma reativação da economia. Do contrário, a crise de 2007-2008, que já dura 5 anos, vai ser pior que a Grande Depressão de 1929. Mais uma vez, venceu a forma selvagem do capitalismo (que gera a acumulação indevida de riqueza para alguns, em detrimento do sofrimento de muitos milhões de planetários).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Portal AD comenta pioneiramente julgamento de Júri transmitido ao vivo

Internautas do Brasil e do mundo acompanharam, ao vivo, a cobertura jurídica comentada do julgamento de Mizael Bispo O Portal Atualidades do Direito – AD proporcionou aos internautas do Brasil e do mundo uma experiência pioneira ao comentar, diretamente dos estúdios do Portal Terra que transmitia ao vivo as imagens do julgamento de Mizael Bispo de Souza, condenado na última quinta-feira (14.03.2013) pela morte de sua ex-namorada Mércia Nakashima. Durante toda a semana, os editores do Portal AD, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, receberam juristas de todo o país, que explicaram as etapas, os principais acontecimentos e os rituais do Tribunal do Júri. Os internautas também puderam esclarecer dúvidas sobre as polêmicas e desdobramentos do caso por meio da interação virtual em tempo real. A programação contou com a participação de renomados profissionais da área jurídica: magistrado: Des. Marco Antônio Marques da Silva;procuradora do estado: Ana Paula Zomer; delegados: Antônio de Olim (que atuou no caso) e Osvaldo Nico Gonçalves; promotores de justiça: Fauzi Hassan Choukr, Levy Emanuel Magno, Renato Brasileiro, Roberto Tardelli e Rogério Zagallo; advogados criminalistas: Alberto Toron, Antônio Mariz de Oliveira, Eugenio Malavasi, Flávio Cardoso, Luiza Eluf, Marcelo Feller, Mauro Nacif e Paulo Sérgio de Oliveira; procurador de justiça: Luiz Carlos Gonçalves; defensor público: Nestor Távora. Entre os convidados que entraram ao vivo por telefone estão o ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto, o ex-presidente da OAB Federal, Cezar Britto, o senador Pedro Taques, os procuradores de justiça José Carlos de Oliveira Robaldo, Rogério Greco, Rômulo Moreira de Andrade, ospromotores de justiça Mário Ramidoff, Ricardo Silvares e Rogério Sanches, os advogados criminalistas Samuel Rangel, Cesar Peres, Sergei Cobra e Luiz Flávio D´Urso. O delegado de polícia Eduardo Muniz Santos Cabette, e o perito criminal federal, Cristiano Furtado, também deixaram suas opiniões durante a semana. O Portal Atualidades do Direito agradece a todos os internautas que estiveram conosco durante toda semana e que foram responsáveis por milhões de “page vídeos”. Contamos com a sua participação nos próximos julgamentos! Transparência – O julgamento de Mizael Bispo de Souza foi o primeiro a ser mostrado ao vivo pela internet, rádio e TV. Esse tipo de transmissão é uma iniciativa rara na história da justiça brasileira. Em agosto de 2010, o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) transmitiu o julgamento de 24 réus acusados de envolvimento em mortes no presídio Urso Branco, em 2002.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Relacionamento sexual com menor de 13 anos: absolvição

A notícia: TJES – Decisão excepcional absolve acusado de estupro Sempre salientando a excepcionalidade da decisão, tendo em vista aspectos específicos do processo, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) mantiveram, na sessão da última quarta-feira (5), à unanimidade, a absolvição de um homem que foi acusado pelo Ministério Público Estadual pelo crime de estupro de vulnerável ao estabelecer convívio conjugal com uma menor de 13 anos de idade. A decisão foi tomada no julgamento da apelação criminal do MP contra a sentença da juíza Adriana Costa de Oliveira, da 3ª Vara Criminal de Vila Velha, que se baseou, igualmente, na excepcionalidade, pois a menor já tinha um filho do acusado e ficou comprovado, nos autos do processo 035100950522, que em nenhum momento houve violência contra ela, que foi abandonada pelo pai e vivia com os avós. O voto do relator da apelação, desembargador Adalto Dias Tristão, foi seguido pelos desembargadores Fernando Estevam Bravin Ruy e Telêmaco Antunes. Todos os três registraram que estavam tomando a decisão em caráter excepcional, pois, na reforma de 2009, o Código Penal colocou sob a mesma tipificação criminal o ato sexual contra menores de 14 anos, consentido ou não. Mesma sorte, entretanto, não teve outro acusado de estupro de vulnerável, condenado a 12 anos de reclusão em regime fechado pelo juiz Marco Aurélio Soares Pereira, da Vara Criminal da Comarca de Marataízes. O máximo que ele conseguiu foi reduzir sua pena para 8 anos, porque os desembargadores Fernando Bravin (relator), Adalto dias Tristão e Sérgio Luiz Teixeira Gama compreenderam que o agravamento da pena não se aplicaria. O homem, que, segundo o advogado de defesa, era ministro religioso na Paróquia local, foi preso em flagrante por policiais militares, depois que os pais de uma menina, na época com 10 anos de idade, denunciou que ele havia atraído a criança para sua casa e a forçado a atos libidinosos. A criança chegou em casa chorando e narrando o acontecido, em janeiro de 2010. O agressor vai continuar cumprindo pena em regime fechado. Fonte: Tribunal de Justiça do Espírito Santo Nossos comentários: Nenhuma lei incriminadora no campo penal (ou seja: nenhum tipo penal) pode ser interpretado como se fosse um leito de Procusto (que cedia sua cama ao visitante, com a condição seguinte: se o visitante fosse menor que a cama, suas pernas seriam espichadas; se fosse maior, suas pernas seriam cortadas; ou seja: o visitante tinha que se encaixar exatamente no tamanho da cama). Ninguém pode manter relação sexual com quem tem menos de 14 anos, sim, e se o sujeito mora com essa pessoa, constituiu família com ela, tem filho com ela, vive sua vida para ela? Quando eu era juiz, em São Paulo, absolvi um caso assim. O réu namorava a mãe, mas acabou tendo relação amorosa com a enteada, que ficou grávida. Ele se mudou para S. J. dos Campos, arrumou emprego na Embraer, constituiu família, o filho nasceu etc. etc. Não tive coragem de condenar! Se a lei fosse para ser aplicada automaticamente, sem análise concreta do caso, melhor seria deixar tudo por conta do computador!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – RJ absolve (corretamente) 3 em 4 réus da lei seca

Com 43 mil mortes no trânsito em 2010 é evidente que não podemos ficar de braços cruzados diante dessa tragédia que dizima 120 vidas por dia, uma a cada 12 minutos. Mas existe um Estado de Direito vigente, que precisa ser respeitado. Mesmo aplicando a lei seca de 2008 o TJ do RJ vem absolvendo, muito acertadamente, 3 em cada 4 casos de imputação de embriaguez ao volante. Com a lei nova (de dezembro de 2012, com muito mais razão ele vai continuar fazendo o que está fazendo). Qual é o problema jurídico? Para os agentes da repressão estatal (polícia civil, polícia militar e Ministério Público) bataria dirigir bêbado para a configuração do crime (do art. 306). Não é isso o que diz a lei. Eles interpretam o antigo art. 306 de forma literal, equivocada, para nele ver uma situação (inconstitucional e aberrante) de perigo abstrato puro (presumido). Ou seja: a partir da embriaguez constatada, já se presume que o motorista esteja “sob a influência do álcool” ou “com capacidade psicomotora alterada”. Tudo não passa de mera presunção (contra o réu), em flagrante violação aos princípios constitucionais. Esse entendimento confunde a infração administrativa do art. 165 com o crime do art. 306. Puro populismo penal repressivo, que nós estamos combatendo no livro Nova lei seca (Saraiva: 2013). A conivente e tendenciosa criminologia midiática, que segue o modelo do Estado de Polícia desenhado na década de 70 pelo neoconservadorismo dos EUA, ao se encarregar da irrestrita propaganda do desproporcional e atécnico populismo penal, sem nenhuma noção do que é o Estado de Direito vigente, coloca as decisões dos juízes contra o senso comum da população (gerando sua ira, sua revolta, agravando sensação de impotência, ou seja, nosso estado de mal-estar). Protestando contra a posição amplamente majoritária e lúcida dos juízes do RJ, veja como a jornalista iniciou sua populista matéria (O Estado de S. Paulo, 04.04.13, p. C5): “O entendimento de que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito tem prevalecido no Rio. Levantamento do Tribunal de Justiça do Estado mostra que a maior parte dos motoristas flagrados na lei seca que responderam a processo criminal foi absolvida”. Nada mais absurdo e incorreto do que esse enviesado enfoque (que não tem outro propósito que o de explorar a reação emotiva gerada pelo crime). Esse é o tipo e jornalismo que não informa, deforma. Qual juiz, especialmente da renomada magistratura do Rio de Janeiro, seria louco de “entender que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito”. Só um mentecapto imaginaria isso. Beber e dirigir é uma loucura, uma ação que exprime uma das mais baixas vulgaridades do humano na atualidade. Isso se torna ainda mais reprovável num país com 43 mil mortos no trânsito em 2010. Ninguém é contra a punição dos irresponsáveis e inconsequentes motoristas que bebem e dirigem. De qualquer modo, não é verdade que os juízes do Rio “entendem que beber e dirigir não significa necessariamente risco à segurança do trânsito”. Claro que isso representa um grave risco à segurança do trânsito, que precisa ser devidamente sancionado. Aliás, antes, deveria ser evitado. Mas o que a mídia justiceira não percebe é que é preciso distinguir o que é infração administrativa do que é crime. Essa distinção é que não aparece de forma clara na matéria jornalista citada. Os bêbados que dirigem devem ser punidos, mas é preciso aplicar corretamente a legislação em vigor. O código de trânsito tem dois artigos que cuidam da embriaguez ao volante: art. 165 e 306. O primeiro tem natureza administrativa (multa, apreensão do veículo, um ano sem carteira de habilitação). O segundo tem natureza penal (prisão, de 6 meses a 3 anos). Se existem duas infrações na lei, compete ao juiz (nunca midiaticamente), com lucidez, distinguir o que é um e o que é outro. O juiz é o semáforo do sistema punitivo. É ele que distingue o joio do trigo. Se dá sinal verde para as barbaridades do poder punitivo, se torna conivente com ele. O que fez acertadamente o desembargador Marcus Quaresma Ferraz (e seus colegas), no caso de Juliano Dias, amplamente noticiado, foi distinguir o que a lei determina. Nem todo mundo que dirige bêbado é criminoso. Ele é um irresponsável, que coloca em risco a segurança viária (e deve sempre ser punido por isso). Ele é um perigoso. Mas não necessariamente um criminoso (tal como supõe a mídia populista). O populismo da mídia assim como de boa parcela dos agentes da repressão (polícia e ministério público) vê delinquência onde não existe crime. Confundem a infração administrativa com a infração penal. Aliás, muitos nem sequer sabem em que consiste essa diferença. Constroem o delinquente que não existe. Copiando os velhos populistas do positivismo criminológico do final do século XVIII (Lombroso, Ferri e Garófalo), os neolombrosianos criam delinquentes de forma abominável e essa imagem estereotipada do delinquente forjado é espalhada pelo mundo todo pela obtusa e acrítica criminologia midiática, explorando sempre a sensação de impotência que marca o ser humano da pós-modernidade. É criminoso quem dirige o veículo em estado de embriaguez de forma anormal (ziguezague, sobe calçada, passa no vermelho, anda na contramão etc.). É isso que os juízes do Rio estão fazendo (em respeito às leis vigentes e à constituição). É um infrator administrativo quem dirige embriagado, mas de forma normal. Portanto, a distinção está muito clara (nesse sentido, nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013). Nenhum bêbado deveria escapar. Todos os irresponsáveis que bebem e dirigem devem ser punidos. Porém, cada um com sua punição. Tudo depende do nível de irresponsabilidade. Há casos de infração administrativa e há casos de crime. Não se pode lombrosianamente ver delinquência onde não existe crime. Sempre que o juiz deixa de funcionar como semáforo do sistema punitivo (Zaffaroni) vem o Estado de Exceção, que frequentemente se desliza para o Estado de Polícia (e aí, o fim do Estado de Direito).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Réus condenados sem individualização da conduta

Apesar da falta de individualização da conduta de cada um dos 23 policiais condenados pelo massacre do Carandiru, da ausência do exame balístico e das perícias em todas as armas utilizadas, o promotor conseguiu habilmente convencer os jurados de que os réus deveriam ser responsabilizados penalmente pela morte de 13 pessoas. Cada um foi condenado a 156 anos de prisão. O fundamento técnico da condenação foi o seguinte: quando todos os coautores combinam um determinado crime, os que comprovadamente participam do fato, respondem pelo resultado (pela obra final), independentemente do que cada um fez. A teoria do domínio do fato, que foi invocada para a condenação de José Dirceu no caso mensalão, chegou a ser sustentada pelo promotor, mas juridicamente ela só se aplica em casos de criminalidade organizada onde o chefe, ao mandar seus subordinados executarem o delito, acaba respondendo também como autor, tanto quanto os executores. Como se vê, em relação aos policiais que dispararam contra os presos, por não terem posição de comando, a teoria é inaplicável. De qualquer modo, no júri, o que importa é o resultado final, ainda que apertado, valendo observar que nunca um único fator é decisivo para o veredito dos jurados, que naturalmente também se impressionaram com os antecedentes dos reús, com o número de disparos efetuados, com o fato de terem sido mortos em suas celas etc.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Tática defensiva de Bruno falhou

A tática defensiva utilizada pelo goleiro Bruno falhou. Mesmo sem o corpo da vítima Eliza, os jurados o condenaram por homicídio triplamente qualificado, sequestro de menor e ocultação de cadáver. Quem é inocente tem que se posicionar com clareza perante os jurados, tem que protestar, gritar, lutar pela sua liberdade. Não há espaço no tribunal do júri para dubiedades. No princípio Bruno disse que não sabia da morte de Eliza, mas a aceitou (por isso se sentia culpado). Depois ele disse que sabia e imaginava a morte dela, em virtude do que lhe disse Macarrão. Ou seja: não confessou, nem delatou ninguém, nem se disse inocente. O resultado desse discurso reticente foi desastroso, visto que não gerou dúvida em pelo menos quatro jurados, nem os convenceu de que tinha que ser absolvido. Pior é que nem possibilitou à juíza qualquer tipo de diminuição da pena. Condenado a 22 anos e 3 meses de prisão, sem direito de apelar em liberdade, terá que cumprir 40% desse total no regime fechado (cerca de 8 anos), debitando-se o tempo já cumprido de 2 anos e 8 meses. Só depois poderá postular a sua progressão para o regime semiaberto. A vitória esmagadora da acusação, inclusive em relação ao seu pedido de absolvição de Dayanne, deveu-se a um trabalho profícuo de convencimento dos jurados, em cima das provas do processo. Discursos divagantes ou ataques pessoais não funcionam no plenário do júri.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Santa Maria e mídia populista: duas tragédias

A mídia, em geral, seguindo a cartilha do populismo penal (veja nosso livro com esse título, Saraiva: 2013), ao dar ênfase (ao dramatizar) somente ao aspecto repressivo da tragédia, que é necessário (não há dúvida), está deixando de lado algo tão relevante quanto a repressão, que é a estratégia preventiva, tal como sublinhado pelo arquiteto Paulo Dalle, na audiência pública da Câmara dos Deputados (em 26.03.13). A mídia, que tem o propósito de explorar a reação emotiva gerada pelo crime (Durkheim), só olha o passado e se esquece do futuro. Tão relevante quanto punir o passado é preservar vidas no futuro. É claro que a repressão dos crimes, especialmente quando mais de 240 vidas se perderam tragicamente, é esperada, mas, sozinha, isolada, constitui fruto de uma política criminal equivocada. Nenhum país do mundo civilizado jamais abandonou a repressão. Mas constitui um erro crasso (ou pura demagogia) imaginar – como alguns editoriais jornalísticos imaginam – que apenas ela possa prevenir a criminalidade. O efeito preventivo da pena, consoante todas as pesquisas científicas (veja Medina Ariza, 2011), é diminuto e humilde (para não dizer ridículo). E quem diz o contrário é ignorante (porque não conhece a ciência criminológica) ou mentiroso (ludibriador da população). A Justiça e a polícia, sobretudo nos países em desenvolvimento, funcionam muito precariamente. Nenhum país do mundo jamais conseguiu punir todos os crimes. O tolerância zero (como filhote do neoconservadorismo norteamericano dos anos 70), ao transmitir a sensação de que todos os crimes serão punidos, constitui uma utopia reacionária (sem pé, nem cabeça). É uma ilusão, um engodo das democracias contemporâneas. Não mais do que 5% dos crimes são punidos (e isso em praticamente o mundo inteiro). Claro que em países mais desorganizados, como o Brasil, o índice é menor. Se a Justiça e a polícia funcionam precariamente, lentamente, por que nos iludimos tanto com a atividade repressiva? A mídia tem uma resposta: razões comerciais. É evidente que a repressão é indispensável, sobretudo nos casos que envolvem perdas de vidas humanas, mas ela não traz a vida de volta, não recupera o bem subtraído, não apaga o trauma psicológico do estupro etc. Vem tarde, quando vem, e é muito demorada. A investigação “rigorosa e abrangente”, alabada pelos setores midiáticos populistas e abutricionistas, vai ter que passar pelos crivos do Ministério Público, das Justiças de primeiro e segundo graus, assim como dos tribunais superiores de Brasília: STJ e STF. Isso significa anos e anos de tramitação processual. O trabalho da polícia (52 volumes, 13 mil páginas e 810 depoimentos) vai ser questionado linha por linha (porque é assim que funciona o processo penal nos países civilizados). Vinte e oito pessoas foram indiciadas (algumas por culpa, outras por dolo). Os crimes menores contam com enorme possiblidade de prescrição. Só a polêmica sobre se houve dolo (eventual) ou culpa (consciente) vai demorar uns 3 ou 4 anos (computando as decisões de Brasília). Um ex-deputado estadual no Paraná foi acusado de crime doloso no trânsito. Há uns 3 anos estão discutindo se o caso vai ou não a júri. Assim funciona a justiça repressiva. A mãe e a irmã de um dos donos da boate, que foram indiciadas só por aparecerem como co-proprietárias do local, certamente serão as primeiras que irão cair fora do processo (em razão do princípio da responsabilidade penal individual). Os que estão presos logo deixarão a cadeia. Basta que o assunto saia da mídia. E no Brasil, como se sabe, não faltam novas tragédias para alimentar o necronoticiário diário da mídia. Para decepção da população, ninguém vai ficar 3 ou 4 anos preso aguardando o julgamento do caso (sobretudo se for a júri, o que significa mais lentidão). Enquanto os debates jurídicos vão se desenrolando (coloca anos nisso!), a desgraça é que muitas outras casas de show pelo Brasil afora também não contam com porta de emergência, extintores suficientes etc. Para isso deveria a mídia também dar bastante atenção. Ocorre que falar da justiça preventiva (devemos ser mais diligentes, mais cuidadosos, temos que assumir nossas responsabilidades como cidadão, devemos falar de ética, de justiça social etc.) não dá audiência. Tampouco da justiça reparatória (pagamento de indenização). O prefeito vai discutir que não era o responsável pela expedição dos alvarás. E não dá para aplicar, nesse caso, a teoria do domínio do fato (porque não estamos diante de crime organizado). Pouco adianta ficar elogiando o indiciamento de várias pessoas, quando sabemos que nem todas serão condenadas. A população quer ver o resultado final. Tudo bem. Mas mesmo que várias pessoas venham a ser condenadas, a repressão desse caso não significa que grande parcela dos brasileiros vá deixar de ser negligente e descuidadosa. As 45 mil mortes no trânsito, todos os anos, que significam 187 tragédias como a de Santa Maria, são provas do que estou afirmando. Isso se agrava, quando muitos ainda acham que parte dessas mortes “constitui obra de Deus”. O próprio delegado, depois do grande esforço empreendido, afirmou que “houve uma conduta no mínimo temerária, muito ruim, dos gestores do local”; “Foi uma temeridade muito grande a casa funcionar daquele jeito”. Temeridade, em direito penal, significa culpa. Os crimes culposos (1 a 3 anos de prisão) prescrevem facilmente na Justiça morosa que temos. O caso do jogador Edmundo, que foi acusado de ter matado três pessoas, acabou prescrevendo no STJ, depois de ficar na fila de julgamento (que é idêntica à fila do INSS) durante mais de 10 anos! Eu não estou equivocado nesse ponto: mais de 10 anos! Na falta de uma lei que cuide da culpa temerária (ou gravíssima), com pena superior à existente hoje, as autoridades, pressionadas pela mídia, acabam enquadrando forçadamente como dolo (delito intencional) muitos casos de crimes culposos. Resultado: só para resolver essa questão (chamada de preliminar), pode colocar 3 ou 4 anos! Os jornais noticiam que alguns civis deliberaram, com apoio dos bombeiros, retornar para dentro da boate, para salvar amigos. Cinco deles morreram dessa maneira. Onde a mídia dramatiza ilicitude na conduta dos bombeiros, eles enxergam “atos dignos de bravura”. A mídia não tem a mínima ideia do debate jurídico que vai ser travado nesse ponto, com a invocação da teoria da “autocolocação da vítima em risco em razão de conduta própria”. Diante de tudo quanto acaba de ser dito sobre o precaríssimo funcionamento da justiça repressiva, melhor seria que a população, para não se frustrar profundamente, visse com desconfiança as enganosas opiniões populistas midiáticas. Que não espere que venha ou que venha logo a tão decantada “decisão rigorosa” da Justiça, anunciada espetaculosamente pela mídia. Com as provas científicas de que hoje dispomos (ver Medina Ariza, 2011), melhor seria, ademais, não confiar que a condenação penal possa prevenir a repetição de tragédias como a de Santa Maria. A condenação é necessária por razões éticas e de justiça, mas o campo preventivo (de futuras tragédias) é muito mais complexo do que a mídia imagina. Sobretudo onde a Justiça e a polícia só conseguem apurar 8% dos homicídios (por falta absoluta de estrutura, sucateamento da polícia científica etc.). Nossos ancestrais das cavernas acreditavam que pintando os animais nas suas paredes já tinham o domínio deles. Tal como esses ancestrais, continuamos iludidos com a eficácia preventiva da justiça repressiva (que funciona muito mal). Continuamos acreditando em demasia que a pena conta com eficácia preventiva. Se queremos evitar mortes, temos que jogar mais energia na prevenção que na repressão.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Vandalismo ou juventude lúcida?

Protestos populares não são novidade em nenhuma parte do mundo. Somente nos últimos anos podemos recordar a batalha de Seattle (1999), os movimentos contestatórios de Davos contra a globalização (2000) e de Toronto contra o G20 (2010), os universitários de Londres (2010), o movimento “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos (2011), os indignados na Espanha (2012), a Primavera Árabe (2011-2012), os protestos de Istambul (2013) etc. Trata-se de uma fenomenologia mundial. O ser humano, por natureza, é insatisfeito. Quando satisfeito, costuma não tolerar a injustiça, o autoritarismo ou o desmando. Para tudo, sobretudo para a opressão, há limite. Também no Brasil os protestos são frequentes, porém, menores. Nenhum talvez tenha alcançado, depois da redemocratização (1985), as proporções (centenas de detidos) dos que aconteceram recentemente. De imediato, dois desafios: 1 ) como devemos lidar com esses protestos sociais sem excessos, sem abusos, reforçando, não destruindo, a democracia? (voltarei a esse tema em outro artigo); 2 ) quais seriam as verdadeiras razões dos recentes protestos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL), que defende a gratuidade do transporte público. Constituiriam esses protestos (a) puros atos de vandalismo, (b) insurreição sincera contra o aumento na passagem dos ônibus (aumento de R$ 0,20 centavos em SP) ou se trataria (c) de uma juventude lúcida que, distanciando-se da massa do “rebanho bovino” (a expressão é de Nietzsche), teria conseguido vislumbrar a profunda crise (e injustiça) do modelo capitalista globalizado e neoliberal, que se aliou, em países periféricos como o Brasil, com o capitalismo de tradição aristocrata-escravagista? O Movimento Passe Livre (MPL) adotou como pretexto inicial o aumento da tarifa dos ônibus. Mas ele mesmo confessou que não conta com controle de todos os participantes. É patente a heterogeneidade dos grupos que estão participando das passeatas (O Estado de S. Paulo de 15.06.13, p. A24), que vão desde sindicatos (dos metroviários, ferroviários etc.), agremiações partidárias (juventude do PT etc.), entes coletivos pós-modernos, anarquistas, incontáveis universitários, até a “tropa de choque” violenta, conhecida como “black blocks” (que, com panos ou lenços no rosto, máscaras de gás, roupas pretas e estética punk, foi o grande responsável pelas destruições materiais dos protestos do dia 11.06.13). Não há como deixar de concluir que alguns estão participando do movimento (só) para promover o vandalismo (grupos radicais e irresponsáveis, inimigos da democracia, eventualmente contratados por alguns partidos políticos – Folha de S. Paulo, 16.06.13, p. C6 – ou, em tese, pela própria polícia), enquanto outros participam em razão do aumento na passagem dos ônibus. Mas existem mais motivos que também devem ser investigados. Muita gente (aqui residiria a juventude lúcida) está querendo, para além do preço dos bilhetes dos ônibus, protestar contra a corrupção generalizada no país, contra os desmandos das autoridades, contra os políticos, contra a política, contra a economia, a inflação, a falta de perspectiva futura, ou seja, contra o modelo capitalista atual. As verdadeiras causas (motivos) dos protestos ainda precisam ser apuradas (nada há ainda de seguro nesse pantanoso horizonte). Aparentemente não é ideológica nem (necessariamente) política (partidária). Não se protesta contra a democracia (ao contrário, o protesto só existe porque ela o permite) nem contra uma específica “ditadura”. O eixo comum da indignação, portanto, diante das múltiplas manifestações até aqui reveladas, poderia residir, em última análise, no modelo capitalista atual, que está esgotado (sobretudo depois da roubalheira e trapaças financeiras de 2008 – subprime -, nos EUA). Para evitar equívocos (especialmente porque eu pretendo escrever vários artigos sobre os protestos recentes), esclareço, desde logo, que, ao adotar postura crítica contra o atual modelo capitalista, eu o faço como cidadão, que nunca deveria ser um idiota, no sentido grego (idiotes significava, na antiga Grécia, não participar da vida pública, da vida da polis). Minha crítica ao capitalismo selvagem, no entanto, não significa postular o retorno ao socialismo real (stalinista) ou ao marxismo. Parafraseando Churchill, penso que o capitalismo vigente é o pior dos regimes econômicos, com exceção de todos os demais. De acordo com minha opinião, o capitalismo necessita de urgentes reformas e correções. É chegado o momento de a burguesia opulenta e acomodada pensar seriamente em mais justiça social, antes que lhe sejam levados os dedos!

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Violência diminui (só) nos computadores da SSP-SP

Ao contrário do divulgado pela Secretária de Segurança Pública, os números de homicídios no Estado de São Paulo, em janeiro de 2013, não obtiveram queda de 21%, sim, observou-se um crescimento de 16,9%, se comparado ao mesmo período de 2012: passou de 356 para 416. Na cidade de São Paulo o aumento foi de 16,6% (anunciaram diminuição de 31,17%). Na Grande São Paulo o incremento foi de 24,2%. É o sexto crescimento consecutivo: agosto, aumento de 9,2%; setembro, +27%; outubro, +38%; novembro, +32%; dezembro, +30,8%; janeiro, +16,9%. A queda fictícia anunciada pela Secretaria da Segurança do governo Alckmin deveu-se a uma comparação entre os meses de dezembro de 2012 e janeiro de 2013, feita de maneira errônea, visto que o correto seria comparar os mesmos períodos: janeiro com janeiro, 1 semestre com 1 semestre etc. Isso consta do Manual de Interpretação de Estatísticas da SSP-SP. Não foi só o número de homicídios que teve crescimento. Latrocínio cresceu 61,9%; roubo de veículos, mais 18,7%; roubo em geral, mais 9,3%; estupro, mais 20% etc. Em relação à cidade de São Paulo temos: Os roubos, na cidade de São Paulo, passaram de 8.582 em janeiro de 2012, para 9.463 em janeiro de 2013; os furtos foram de 14612 em 2012 para 16627, em 2013; e os furtos e roubos de veículos, somados passaram de 6.752, em 2012 para 7.655, em 2013. Há seis meses crescem os homicídios intencionais no Estado de São Paulo. Quais seriam as causas? Licença para matar (concedida veladamente aos policiais), ordem para matar (dada pelo crime organizado), baixíssimo índice de apuração dos crimes (o que confirma a licença para matar), conflito entre PCC e PM, sucateamento quase absoluto da polícia civil, do Instituto Médico Legal e do Instituto de Criminalística (polícia científica), salários irrisórios pagos aos policiais (um dos mais baixos do país), ausência de uma política de prevenção integral (primária, secundária e terciária), crença mágica no efeito dissuasório da pena (que não encontra base empírica), deflagração da guerra entre a Rota e o PCC, ausência da polícia comunitária, precaríssima estrutura das polícias, especialmente a civil, retenção de gastos com a segurança pública etc. Com todos esses ingredientes, é lógico que o Estado de São Paulo é uma zona epidêmica de violência.

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Zona 30: menos velocidade, mais vida (3)

Um estudo português do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, nomeado “Acalmia de Tráfego – Zonas 30 e Zonas Residenciais ou de coexistência”, mostra que, na Inglaterra, no ano de 1963, foi formalmente apresentado o relatório “Traffic in Towns”, de autoria de Colin Buchanan onde, pela primeira vez, fixou-se a relação entre o crescimento do tráfego motorizado e a ameaça da qualidade de vida nas cidades. Este documento é referido na bibliografia internacional como a gênese do movimento moderno de segurança no trânsito que apresenta, dentre as conclusões, a necessidade de incluir nos planos de transportes medidas que influenciem na utilização do automóvel. Desde de que foi criada a primeira zona 30 como projeto piloto na pequena cidade alemã de Buxtehude, em 1983, numerosas zonas 30 provaram o seu valor por toda a Europa. Onde quer que tenham sido instaladas, o número e a seriedade dos acidentes foram reduzidos consideravelmente. Em Londres, um estudo realizado pelo British Medical Journal mostrou que a introdução de zonas de 20 mph (30 km/h) foi associada a uma redução de 41.9% no número de vítimas de acidentes de trânsito. Não há evidências de migração de acidentes para áreas adjacentes às de 20 mph, onde o número de vítimas sofreu uma leve redução de 8%. A conclusão é que medidas como a Zona 20mph é efetiva no sentido de reduzir acidentes e mortes no trânsito. Os efeitos benéficos das Zonas 30 são (dentre outros): • Cria cruzamentos seguros • Melhora a qualidade de vida • Aumenta os níveis de caminhada e ciclismo • Reduz a obesidade por meio do aumento da vida ativa • Reduz o volume de tráfego de veículos a motor e velocidades • Reduz os índices de acidentes rodoviários, ferimentos e mortes a todos • Reduz as emissões de gases de efeito estufa, poluição do ar e poluição sonora • Fomenta uma área onde pedestres, ciclistas e motoristas convivem com segurança e conforto • Desenvolve espaço público que é aberto e seguro para todos, incluindo as pessoas com deficiência • Aumenta o espaço disponível para caminhadas, ciclismo, e as pessoas na rua para comer, brincar e aproveitar a vida • Proporciona uma área segura para as crianças em zonas escolares • Aumenta os valores imobiliários de casas e empresas locais • Aumenta a vitalidade econômica da área • Fortalece o sentido de comunidade É chegado o momento de a sociedade brasileira começar a discutir nacionalmente a Zona 30. Participe da nossa campanha: www.zona30.com.br

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes – Zona 30: menos velocidade, mais vida (4)

A primeira cidade a implantar a Zona 30 foi Buxtehude, na Alemanha, em 1983. A partir daí muitas cidades da Alemanha, França, Belgica, Itália, Holanda, Áustria, Reino Unido, Dinamarca. Bruxelas, na Bélgica, já conta com 4,6 km de ruas que só podem ser transitadas a 30 km/h. Barcelona completou em 2010 mais de 200 km de zonas 30. Londres percebeu uma queda de 40% no número de acidentes e na Bélgica a queda foi de 72%. Em Setembro de 2011 o Parlamento Europeu fez a recomendação para que todas as cidades façam adesão ao projeto e, em 2012, uma iniciativa popular pede que a UE institua, como lei, em todo seu território, a Zona 30. No Brasil, segundo projeção do Instituto Avante Brasil, em 2013 acontecerá, no trânsito, 1 morte a cada 11 minutos (cerca de 48 mil mortes no ano todo). Só na última década (2001/2010) a frota nacional de veículos aumentou 101,2%. Nessa direção, no mesmo período, o número absoluto de mortes no trânsito cresceu cerca de 40% (4,06% ao ano); a taxa de mortes por 100 mil habitantes cresceu 26,6% (cálculos baseados nos dados do Datasus-Ministério da Sáude). Contudo, se a mortandade no trânsito é expressiva e crescente, a mortandade de motociclistas é ainda mais grave, vertiginosa e preocupante. Enquanto o número total de mortos no trânsito cresceu 40,3% entre 2001 e 2010, o número de motociclistas mortos no mesmo período cresceu 250%, saltando de 3.100 vítimas (em 2001) para 10.825 (em 2010). Dessa forma, de 30.524 mortos no trânsito em 2001, saltamos para 42.884 em 2010 (aumento de 40,3%) e, de uma taxa de 17,7 mortos/100 mil habitantes há dez anos, alcançamos a de 22,4 mortes/100 mil habitantes, em 2010 (aumento de 26,6%). No Brasil, além de não enxergarmos e não agirmos contra a gravidade de um grande e calamitoso problema, contribuímos para fomentá-lo ainda mais. É preciso instituir medidas que ajudem a diminuir esse quadro, e a Zona 30 pode ser uma solução para o trânsito trágico e nefasto de muitas cidades brasileiras. O exemplo do Rio Janeiro com a Zona 30 De acordo com Mauro Cezar de Freitas Ferreira, Diretor do Centro de Comunicação e Educação para o Trânsito da CET-Rio, todas as áreas do tipo zona 30 foram implantadas por ocasião do “Dia Mundial Sem Carro”. Desenvolveu-se uma identidade visual que foi implantada em conjunto com placas de advertência e regulamentação. Também foi implantada sinalização horizontal e em alguns poucos casos elementos de “traffic calming”. Ipanema e Ilha do Governador foram as áreas com maior quantidade de acidentes registrados antes da implantação e variação de números mais significativa. Comparando o 1 semestre de 2011 com o 1 semestre de 2012 (as implantações ocorreram no segundo semestre de 2011), pode-se dizer, com base nos dados do 190 da Polícia Militar, que houve uma redução de 75% no número de acidentes com vítimas na área da Ilha do Governador e que na área de Ipanema chegamos ao índice ideal de nenhum acidente com vítima no 1 semestre de 2012. “Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado” (Helena Besserman Viana, brasileira, psicanalista).

ARTIGO: Prof Luiz Flávio Gomes: Menoridade penal e a trampa da diferenciação do consumidor

Um dos erros de lógica mais notável no princípio do século XXI, governado pelo consumismo desenfreado e imoderado, que foi criado e é incentivado pelo capitalismo egoísta neoliberal, consiste em imaginar (e pretender) que um serviço público pobre (raquítico, esquálido, pífio, sucateado) possa satisfazer necessidades (de segurança, por exemplo) da vida privada rica (opulenta ou satisfeita). Primeiro caímos na lei (na trampa, no engodo, na falácia) da diferenciação do consumidor, decretando a derrota e a falência quase absoluta do serviço público padronizado (assim como do Estado, da política e dos políticos), para enaltecer a vitória implacável da lei do mercado livre; depois imaginamos que esse serviço público devastado (corroído e corrompido) possa nos oferecer solução para as carências coletivas. A incongruência dessa postura aporética salta aos olhos com toda evidência, ou seja, brilha como sol do meio dia. A lei da diferenciação do consumidor, que foi explicada por Joseph Monsen e Anthony Downs (economista e cientista político, respectivamente), em um artigo publicado na revista americana The Public Interest (veja W. Streeck, emPiauí, 79, p. 61), consiste no seguinte: “há um desejo, por parte dos consumidores, de competição e diferenciação, que os leva a criar distinções visíveis entre grandes grupos e classes e, dentro desses grupos, diferenças individuais mais sutis. Esse desejo é uma parte intrínseca da natureza humana, evidente, pelo menos em algum grau, em todas as sociedades, passadas ou presentes. Um desejo tão fundamental que pode ser considerado uma lei da natureza humana”. Trata-se da lei de diferenciação do consumidor. As duas principais consequências da lei da diferenciação do consumidor são: (a) por força dela somos tendencialmente propensos a consumir mais do que o necessário (para nos distinguir, para nos diferenciar, para conseguir “status”, para nos socializar) e (b) o serviço público padronizado foi sucateado em muitos países (ou em vários setores). Consequência: criamos sociedades “ricas na vida privada, mas pobres em serviços públicos” (J. K. Galbraith). Quando pedimos (a sociedade e a mídia) solução para o problema da criminalidade ao Estado, sobretudo da delinquência dos menores, caímos na “trampa da diferenciação do consumidor”, porque repentina e equivocadamente imaginamos que um serviço público quebrado, falido e derrotado (pelo capitalismo neoliberal e escravagista), que nós, por razões de “status”, antes de tudo, rejeitamos diariamente (sempre que nossas posses permitem substituí-lo), venha resolver nossa carência coletiva de segurança. Primeiro dizimamos um determinado jogador da equipe, deixando-o esquálido e apático; depois queremos que esse ente cambaleante, que dificilmente se sustenta sobre suas próprias pernas, possa, em campo, resolver uma complicada partida. Incongruência absoluta e rematada do pensamento consumista e capitalista selvagem.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – “Médicas cubanas têm cara de empregada doméstica”

Basta ouvir atentamente as lições do nativo humanoide P. Karhapitzchewisky para se descobrir que grandes idiotices praticamos na nossa vida (poucos somos isentos desse equívoco, desgraçadamente) quando deixamos a vulgaridade do homo democraticus falar e julgar pessoas ou coisas ou situações com base exclusivamente nos nossos pré-conceitos, pré-juízos ou pré-compreensões, sem atinar para as opiniões contrárias. De acordo com o ponto de vista do nativo humanoide citado a jornalista M. B., que já se desculpou, incorreu na idiotice citada ao proclamar, urbi et orbi (em sua rede social), o seguinte: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem (sic) cara de empregada doméstica. “Será que são médicas mesmo???” “Afe que terrível”. “Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência”. Detalhe importante: a declaração foi feita com base na “cara” das médicas, caras negras ou pardas escuras, caras essas que os arianos (como Hitler) discriminam como feias ou malvadas. Tudo, ela resumiu, “é uma questão de aparência”, mesclando-se a das médicas com a das empregadas domésticas, sendo que estas, consoante a tradição brasileira, são negras, pardas ou brancas pobres. Para P. Karhapitzchewisky a declaração foi atroz, foi cruel e extremamente desumana. Retrata a ausência absoluta de progresso social. Um atraso incomensurável e um eclipse ético deplorável. Com fundamento nas lições do sociólogo M. Bomfim (A América Latina – males de origem), lições de 1903, ele recordou que “um grupo, um organismo social, vivendo parasitariamente sobre outro, há de fatalmente degenerar, decair, degradar-se”. A visão desfocada e aética das empregadas domésticas revela a falta que faz, em toda América Latina, do progresso social. E o que se entende por progresso social? M. Bomfim (em 1903) ensinava: “No desenvolvimento da inteligência, pelo esforço contínuo para aproveitar do melhor modo possível os recursos da natureza, da qual tiramos a subsistência, e no apuro dos sentimentos altruísticos, que tornam a vida cada vez mais suave, permitindo uma cordialidade maior entre os homens [seres humanos], uma solidariedade mais perfeita, um interesse maior pela felicidade comum, um horror crescente pelas injustiças e iniquidades…”. Ora, prossegue o autor, uma sociedade que viva parasitariamente sobre outra [sobre escravos, sobre pessoas escravizadas, sobre assalariados que recebem baixíssimo salário] perde o hábito de lutar contra a natureza; não sente necessidade de apurar os seus processos, nem de pôr em contribuição a inteligência, porque não é da natureza diretamente que ela tira a subsistência, e sim do trabalho de outro grupo; com o fruto desse trabalho ela pode ter tudo. Não há mais necessidade de ver, observar, guardar a experiência e manter-se em contato com a natureza (…) em tais condições, é lógico que a inteligência não poderá progredir, decairá (…) Como se poderão desenvolver e apurar os sentimentos altruísticos, de justiça e equidade, de cordialidade e amor, numa sociedade que sucede viver [há cinco séculos], justamente, de uma iniquidade – do trabalho [escravocrata] alheio?”

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – 1.789 concursos estão sendo investigados por fraude

Para além dos problemas gerados pelo X Exame da OAB, você sabia que, consoante informação do Correio Braziliense (04.06.13), o Ministério Público Federal está investigando, em todo Brasil, 1.789 denúncias relacionadas a fraudes em concursos públicos? Foi o certame da Anvisa, recente, que chamou atenção novamente para as falcatruas nos concursos. Falta de legislação específica (um projeto regulando o tema foi aprovado no Senado, mas ainda depende de apreciação da Câmara dos Deputados) impediria a punição dos envolvidos e deixaria brechas para práticas abusivas. Exagero do jornal. O direito penal vigente é mais do que suficiente para punir todo mundo (por danos, estelionato, indenizações etc.). De qualquer modo, a lei dos concursos é totalmente necessária. Esperamos que seja aprovada pela Câmara rapidamente. E o Exame da OAB? Também urgentemente precisam ser tratados vários itens: a forma a elaboração da prova, a correção da prova etc. Organizar concursos no nosso país virou um negócio lucrativo. Mas até empresa fantasma existe na área. O lucro maior, claro, para quem atua sem ética, vem da malandragem. A PF investiga muitos outros casos (informou o Correio Braziliense). No total, perto de 2 mil concursos estão sob suspeita de fraude (incluindo-se alguns para a Magistratura). O sujeito, como se vê, nesse caso, já começa a carreira como juiz torto (juiz de direito torto). Vai condenar muitos réus, quando o primeiro a ser punido seria ele mesmo (em razão das malandragens nos concursos, noticiadas em todo momento pela mídia). É o tipo de vergonha que nenhum bisneto do agente fraudulento vai perdoar nunca! Mancha eterna! As fraudes nos concursos e, muitas vezes, também no Exame da OAB, seriam sintomas de uma sociedade pouco acostumada à igualdade e à meritocracia. A velha malandragem, que marca a formação histórica brasileira (como diz Antonio Candido), continua mais viva que nunca nas subjetividades de muitos candidatos. O aventureiro dos tempos da colônia, o que “quer colher o fruto sem plantar a árvore” (Sérgio B. de Holanda), em pleno século XXI, continua mais corrente do que se imagina. Indolência e boa vida, sem nenhum ou sem grande esforço. É assim que muitos malandros querem obter sucesso! Do ponto de vista moral há uma tese de que nós, brasileiros, caminhamos dentro de margens bastante ambíguas, marcadas por uma “tolerância corrosiva”, já agora não somente nas classes baixas, senão também nos estratos aburguesados (o mensalão do PT e o cartel do metrô de SP, envolvendo empresas bilionárias e o PSDB, constituem exemplos expressivos disso). O Brasil seria “uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora neutralidade moral. Não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia” (diz Antonio Candido). Existe a tese de que ele constituiria um tipo de sociedade “parasitária e indolente”, que é viva desde o tempo do Brasil joanino (D. João VI). Desde que no seio da nossa sociedade começou a perder força a antiga estruturação patriarcal (familiar), que foi muito forte na época da Colônia (1500-1821), é nítida a “crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social; isso é especialmente sensível no nosso tempo [texto escrito em meados da década de 30 do século XX] devido ao decisivo triunfo de certas virtudesantifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos” (Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda). Ao esforço do concurso público ou do Exame da OAB, que se funda na meritocracia e que constitui um dos pilares da democracia, muitos brasileiros ainda não estão adaptados. Muitos buscam o cargo público ou a aprovação na Ordem via corrupção ou favorecimento. É uma vergonha termos quase 2 mil concursos sub judice ou sob investigação. Muito tem que ser feito para o combate das vulgaridades e das excentricidades ainda vigentes no século XXI.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – 10 razões para apoiar o retorno dos protestos massivos

O Brasil tem seu lado vitorioso. Existe o Brasil que deu certo. Nas três últimas décadas, por exemplo, alcançamos três impressionantes conquistas: (a) movimento diretas-já, em 1984, que sepultou a ditadura militar e restabeleceu a democracia, nos legando a Constituição de 1988; (b) o Plano Real de 1994 que venceu a inflação e estabilizou a moeda assim como os referenciais econômicos; (c) o programa de inclusão social e a luta contra a miséria, que se transformaram em política de Estado em 2002 (essa iniciativa, de acordo com o IDHM, da ONU, contribuiu para o Brasil crescer, de 1991 a 2010, 47,5%, em média, nos itens expectativa de vida, renda per capita e matriculados em escolas). Essas mudanças aconteceram sob a batuta de grandes lideranças políticas do MDB, PSDB e PT, respectivamente. São pontos positivos para o Brasil que deu certo. Paralelamente existe também o Brasil que deu errado ou que ainda não deu certo (é oBrasilquistão). Seus 5 pilares (dentre outros) são: (a) apartheid (divisão de classes totalmente discriminatória, fundada em desigualdades aéticas), (b) guerra civil (violência), (c) ineficientismo do Estado, (d) representação política desastrada e (e) “dialética da malandragem” (Antonio Candido). Nossos próximos cinco grandes desafios, sem prejuízo da manutenção do que já foi conquistado, cujos líderes nem sabemos quem serão, são: (a) combater nosso apartheidsocioeconômico por meio da educação de qualidade como política nacional prioritária em tempo integral, das 8 às 18h, obrigatória até aos 18 anos, criando igualdade de condições e de oportunidades para todos; (b) enfrentar a questão da violência/segurança pública, com o firme propósito de acabar com nossa discriminatória guerra civil; (c) dotar o Estado de eficiência para melhorar a qualidade dos serviços públicos nas áreas de saúde, transportes, justiça etc.; (d) digitalizar e revitalizar a velha democracia representativa (criando o Fórum Cidadão, para a implantação da democracia direta digital e (d) atacar desde suas raízes a corrupção, que tem origem cultural na “dialética da malandragem”. Para acabar (reduzir) os males do Brasilquistão temos que continuar os protestos de junho. Dez (dentre tantas outras) razões para isto: (a) Como podem deputados e senadores continuarem usando indevidamente os aviões da FAB (uso recreativo)?; (b) Como podem os políticos desejarem flexibilizar (na minirreforma eleitoral) suas responsabilidades, sobretudo na hora das prestações de contas à Justiça eleitoral, sobrelevando a relevância do poder econômico (que compra o poder político); (c) Como pode a Revista Veja (que produz matérias incríveis, por exemplo, na área de educação) ser vergonhosamente tendenciosa, ao não dar a primeira página (principal) para o escândalo da fraude no metrô de São Paulo (confessado por um dos criminosos, a Siemens), se ele tem potencial para influenciar as eleições de 2014 assim como a saúde da democracia brasileira?); (d) Como pode dois ministros do STF (Fux e Marco Aurélio) sonharem, como diz a mídia, em transformar suas filhas em desembargadoras, sem antes terem muitos e muitos anos de trabalho na advocacia? (e) Como pode Joaquim Barbosa ter usado o endereço do seu apartamento funcional em Brasília (violando regras federais) para sediar sua empresa internacional que foi usada para comprar um apartamento em Miami? (f) Como pode um senador (Lobão Filho) afirmar que a ética não tem relevância? (g) Como pode o PSDB ou seus representantes, numa espécie de copia do PT do mensalão, se locupletarem das propinas da fraude no metrô de SP? (h) Como pode o STF mudar de critério em relação à “cassação” do mandato do parlamentar condenado por ele mesmo por falcatruas no exercício da função pública, não conciliando os incisos IV e VI do art. 55 da CF? (i) Como pode empresas e corporações internacionais de renome, podres de ricas (como Siemens, Alston, Bombardier, CAF, Mitsui, HSBC, Bank of America etc.), incentivarem, por meio da corrupção ou da lavagem de dinheiro, o fim da concorrência e da competência, que é a espinha dorsal do capitalismo neoliberal, já enfraquecido e enlameado com os escândalos da roubalheira financeira de Wall Street de 2008? (j) Como pode 870 milhões de pessoas estarem passando fome (e morrendo por causa disso), com tanta abundância de comida no mundo inteiro? Como pode…

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Apagão ético do senador Lobão Filho

O senador Lobão Filho teve um apagão ético? Sim. Isso é muito sério. O senador Lobão Filho (PMDB-MA), que só é senador porque seu pai, Edson Lobão, ocupa um ministério no governo Dilma, sendo beneficiário de dupla imoralidade (é senador suplente – isso já é uma imoralidade – e foi indicado pelo pai, por força do nepotismo) fez (em 05.08.13) uma das mais chocantes declarações de toda era republicana: “A defesa da ética intransigente é uma coisa muito subjetiva. Não há razão para incluir a ética no juramento do mandato de senador. O que é ética para você pode não ser para mim. A ética é uma coisa muito subjetiva, muito abstrata. Ela não é relevante”. Depois emitiu nota se emendando. Só o beneficiário de uma dupla imoralidade (suplência e nepotismo) pode dizer algo desse tipo. O senador revelou não ter noção nenhuma do que é a ética na vida humana, muito menos na vida pública. Os protestos de junho não podem parar! Que se entende por Ética? Todos os seres humanos, os animais e a natureza, ou seja, tudo que está na nossa “ilha” planetária (que não é a mesma do Robinson Crusoé) deve ser tratado com respeito. Os seres humanos devem ser considerados como semelhantes (como outros caminhantes). A regra de ouro da ética é a seguinte: jamais podemos fazer com os outros o que gostaríamos que não fizessem conosco. A Ética (que deve ser resgatada nos escombros da injusta sociedade atual, globalizada e especulativa), desde o instante que reconhecemos a necessidade de conviver com outros caminhantes (semelhantes), se transforma da “arte de viver bem” em “arte de viver bem humanamente” (Savater). O que significa isso? O seguinte: temos que viver com os outros ou mesmocontra os outros (quando discordamos de uma ideia), porém, semprehumanamente (ou seja: entre seres humanos, como diz Savater). O que transforma nossa vida em vida humana é que, não estando nós numa ilha isolada, como Robinson Crusoé, somos todos compelidos a passar todos os dias da nossa vida em companhia dos outros seres humanos, interagindo com eles, falando com eles, negociando com eles, amando-os, construindo ou desistindo de sonhos ou castelos, fazendo projetos, jogando, discutindo, concordando, discordando etc. Esse é o jogo da vida, ou não existe vida! Mas temos que distinguir a vida pública da vida privada. É a moral que rege o jogo da vida pública? Sim. Toda época tem sua estrutura moral (Aranguren), ou seja, suas pautas de conduta, seus ideais, seus fins, seus valores, regidos pela ética. A vida, ainda que marcada por debates e embates, não pode se desconectar das margens morais, sob pena de se embrenhar para o mundo do mau-caratismo, da malandragem, da desonestidade, enfim, da falta de ética. Em nenhum instante da nossa vida, especialmente quando participamos da vida política da cidade ou do país (da “polis” ou da res publica), podemos admitir a mancha ou a mácula do mau-caratismo. Os costumes, a tradição ou as ordens externas nos obrigam? Não. Por força da ética, não somos obrigados a seguir os costumes imorais enraizados em algumas práticas econômico-financeiras, muito menos na tradição política do nosso País. Existe alguma força sobrenatural que leva a maioria dos agentes econômico-financeiros e públicos (há exceções, claro) a se comportarem (quase sempre) de maneira irregular? Não. Todas as vezes que nos deparamos com uma tradição ou costume ou com uma ordem externa, devemos prestar atenção no seu conteúdo e na sua natureza. A Ética diz respeito ao foro interno da nossa vontade (e liberdade). Somos livres (em geral) para decidir pelo bem ou pelo mal (pelo certo ou pelo errado). Podemos dizer “sim” ou “não”. O preço que pagamos por contarmos com essa liberdade reside na responsabilidade. Pelos atos que praticamos devemos ser sempre responsáveis. E nesse caso nem a ordem externa nem a tradição nos absolve. A ética nos vincula para toda a vida? Sim. Nos concretos atos da nossa vida, quando em jogo está o (superior) plano ético, você não tem que perguntar a ninguém o que deve ser feito: pergunte a você mesmo. E mais, não vale ser ético somente durante um trecho da sua vida. Por quê? Como bem disse, com toda sabedoria e sensatez, a ministra do STF, Cármen Lúcia: “A vida é igual a uma estrada. Não adianta você dizer que foi na reta certinho, mil quilômetros, e depois você entra na contramão e pega alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira. Independente do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a estrada. Se você estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser mais fácil. Isso no serviço público muito mais”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Alagoas, Espírito Santo e Paraíba: estados mais violentos em 2011

Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do Datasus – Ministério da Saúde, apontou que, em 2011, houve uma leve queda no número de homicídios no Brasil, mantendo, no entanto, a estabilidade da taxa de mortes. Em 2010, foram registradas 52.260 mortes por homicídio em todo o país; em 2011 essa taxa foi de 52.198, uma leve queda de 0,12%. A média de crescimento anual de 2001 a 2011 foi de 1,34%. No mesmo período, houve uma evolução de 8,8%. Até 2008 a taxa de homicídios vinha decrescendo, a partir desse momento começou a haver um novo crescimento até 2011, ano em que permaneceu estável. Foram registradas 27,1 mortes a cada 100.000 habitantes, com uma estimativa populacional de 192.379.287 habitantes, segundo o IBGE. Alagoas foi o estado que registrou o maior número de mortes, foram registradas 71,4 mortes para cada grupo de 100.000 habitantes. Em termos absolutos, o número de homicídios chegou a 2.244. Em 2010, essa taxa foi de 2.087 mortes, o que resultou em um aumento de 7,5% no período. O Espírito Santo foi o segundo estado que mais contabilizou mortes violentas em 2011: foram registradas 1.672 mortes. Em uma população de 3.547.055 habitantes, isso significou que 47,1 indivíduos a cada grupo de 100.000 foram mortes de forma violenta. Em 2010, o número de mortes tinha sido de 1.792, uma queda de 6,7%. A Paraíba foi responsável pelo terceiro maior número de mortes violentas. Foram registradas 1.614 mortes no ano de 2011. O que significa uma taxa de 42,6 mortes por 100.000 habitantes no estado, que teve estimada pelo IBGE em 2011 uma população de 3.791.315 habitantes. Entre 2010 e 2011 houve um crescimento de 10,9%, já que no ano anterior, o número de mortes tinha sido de 1.455. No Brasil continuamos com mais de 52 mil mortes por ano. Isso significa uma morte a cada 9 minutos. Essa insegurança criminal também está presente nos movimentos de protestos, que se descarrilharam dos R$ 0,20 centavos da passagem dos ônibus.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Bônus para reduzir criminalidade: missão quase impossível

De duas maneiras o Estado “combate” a criminalidade e a violência: (a) por meio da repressão e (b) por meio de prevenção. No Estado de São Paulo a opção, historicamente, sempre foi pela repressão. Aliás, essa é uma tendência nacional. Está decretado o abolicionismo da prevenção. De prevenção verdadeira não se fala. A população é iludida com a prevenção decorrente da repressão (da punição). Ocorre que a política puramente repressiva é extremamente limitada (veja nosso livroPopulismo penal midiático: Saraiva. 2013), porque a repressão só incide sobre pouquíssimos crimes (não mais que 3% deles são apurados e processados). Quanto aos homicídios, a taxa não passa de 8%. O Estado, falido e combalido, em razão da política econômica neoliberal e, ainda, acentuadamente escravagista, não conta com meios e recursos para atender a demanda punitivista. De vez em quando muda a lei, agravando as penas, e isso surte um efeito sedativo na população (que de engano e engano, chegou ao auto-engano). Depois de assumir que o índice de criminalidade está altíssimo (o primeiro trimestre de 2013 é o segundo mais violento em 6 anos) em São Paulo, o governo Geraldo Alckmin acaba de lançar uma medida que bonifica policiais que conseguirem reduzir o índice de violência na sua região. Chamada de “São Paulo contra o crime”, o pacote oferecerá bônus de R$ 4 mil semestrais para cada policial, mas poderá chegar a R$ 10 mil. Alckmin anunciou ainda que haverá aumento do efetivo da Polícia Civil e da Polícia Técnico-Científica. A Polícia Civil deverá ganhar cerca de 3 mil novos agentes. Já a Polícia Técnico-Científica terá um incremento de 62%. Só em 2011 e 2012 o investimento aplicado a Segurança Pública no Estado de São Paulo foi de R$ 23,5 bilhões. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, foram R$ 11,82 bilhões em 2011, ante R$ 10, 49 bilhões em 2010. E, de acordo com o Sistema de Gerenciamento Orçamentário do Estado de São Paulo (Sigeo), entre 2001 e 2005 os investimentos realizados na Polícia Militar somaram R$ 285,7 milhões, contra R$ 8,5 milhões para a Polícia Civil e R$ 1,9 milhão para a Superintendência Técnico-Científica. A política de repressão há muito tempo vem sendo colocada como o grande trunfo para a queda da criminalidade no país, recebendo altos investimentos e programas. Contudo, sua efetividade é extremamente questionável, já que apesar de diversas leis e crimes terem sido agravadas nos últimos anos (de 1940 a 2012 foram 136 reformas penais), a violência jamais parou de crescer (em 1980 tínhamos 11 mortos para cada 100 mil pessoas; em 2010 passamos para 27.4 óbitos, para 100 mil). O sistema carcerário paulista está, comprovadamente, num dos seus piores momentos. Com mais de 190.000 presos até junho de 2012, e pouco mais de 100.000 vagas, abriga quase o dobro de sua capacidade, sendo que grande parte é de presos provisórios. Os presídios contam com péssimas instalações, quase nenhum incentivo na reinserção social, como trabalho e educação, o que resulta, em boa parte das vezes, na reincidência. Apenas 22% estão exercendo algum tipo de atividade laboral dentro dos presídios e, 7% em atividades educacionais. As instalações são péssimas e não há incentivos contra a ociosidade. Enquanto países europeus, como a Holanda, estão fechando prisões (e alugando espaço para detentos estrangeiros) por falta de presos, o Brasil segue na direção contrária, construindo mais presídios em lugar de escolas em período integral, das 8 às 18h, para todas as crianças e adolescentes desde tenra idade até os 18 anos. As prisões, há mais de 200 anos, nasceram (conforme Foucault) para criarem corpos dóceis e úteis. Dóceis do ponto de vista disciplinar e úteis do ponto de vista econômico. Nem uma coisa nem outra elas conseguiram. Os que passam pela prisão saem mais embrutecidos e economicamente anulados. Os presídios brasileiros, no entanto, priorizam a animalidade, em detrimento da civilização. O que manda nos presídios é a animalização do ser humano. Ou seja: vence a barbárie, não a civilização. Fora isso, o nosso sistema judiciário, sobrecarregado, não consegue lidar com a gigantesca demanda. O estado de São Paulo conta, em 2013, de acordo com a Secretaria de Designação, com um total de 2371 magistrados, entre juízes e desembargadores. E, apesar de esse número ser o maior do Brasil, o setor não consegue solucionar o problema da demora em se julgar um determinado caso, causando lentidão e a cooperando para a superlotação e ineficiência do sistema carcerário. Diante de tantos dados que comprovam a ineficiência do sistema carcerário brasileiro, seria mesmo a melhor opção bonificar policiais, incentivando-os a alimentar um sistema que não funciona? Esse tipo de ação só ganha legitimidade porque vivemos em uma sociedade que não está em busca de justiça, e sim de vingança. Bônus para Policiais – material de leitura complementar: Algumas opiniões: Valor Econômico. Cristiane Agostine[1]. Para especialistas, a medida poderá levar à subnotificação de crimes e à maquiagem de estatísticas. Já policiais questionaram a inclusão de benefícios temporários à remuneração, em vez do aumento salarial. A falta de definições gerou dúvidas. Para o coordenador do Núcleo de Estudo da Violência da USP, professor Sérgio Adorno, é preciso ter mais clareza sobre como a política de meritocracia será executada. “Isso precisa ser muito bem explicitado. Corre-se o risco de não haver registro de casos”, disse. “É uma medida conjuntural importante, mas é preciso pensar a médio e longo prazo”. Representante dos policiais no Legislativo, o deputado estadual Major Olímpio (PDT) disse ser “muito difícil” avaliar o desempenho de policiais, já que a estrutura da corporação é muito hierarquizada. “E quem não está nas ruas, como os que fazem segurança do governador? E quem está na parte administrativa, ou na Rota, na Tropa de Choque? Como vão avaliar?”, questionou. Olímpio reclamou ainda que o piso policial “está entre os piores do país”. Para a Associação dos Oficiais da Polícia Militar de São Paulo, Alckmin deveria investir em salários maiores e não no pagamento de bônus. Folha de São Paulo. Rogério Pagnan[2]. Para Luís Sapori, ex-secretário de Segurança Pública de Minas Gerais que participou da implantação de um sistema de bônus a policiais naquele Estado, há pontos positivos e negativos na medida. Por um lado, diz, trata-se da criação de um incentivo que costuma dar bons resultados na iniciativa privada. Mas ele ressalva que a premiação por grupos pode criar rivalidade entre os policiais. “Isso pode criar um competitividade muito perniciosa e evitar até a cooperação, troca de informações”, afirmou. “O risco é a manipulação de estatísticas para atingir as metas”, disse ele, defensor de um bônus para a polícia inteira -como ocorreu em Minas. “É extremamente positivo que se comece essa cultura [de avaliação]. Precisa ter uma auditoria permanente dos dados para que homicídio não vire encontro de cadáver”, disse o sociólogo Cláudio Beato. O governo diz que haverá um acompanhamento externo permanente dos dados. A presidente da Associação dos Delegados de São Paulo, Marilda Pinheiro, questiona a iniciativa. “Vão premiar o policial para cumprir sua obrigação. Acho um absurdo. Não trabalhamos por produção”, diz. Ela também afirma temer pela maquiagem de estatísticas e defende reajuste dos salários, em vez de bônus. Exame. Amanda Previdelli[3]: O discurso agora é de que haverá um período de estudos de 18 meses antes que as metas sejam definidas. Só então serão definidos planos concretos para diminuir a violência urbana em São Paulo e qual sistema de meritocracia será aplicado. Assessoria de Imprensa e Comunicação da Secretaria da Segurança Pública[4].Uma das medidas é a celebração de um convênio com o Instituto Sou da Paz com o objetivo de elaborar um sistema de metas para as polícias paulistas, com base principalmente na redução dos indicadores criminais, em especial os relativos aos crimes de homicídio, latrocínio, roubo e furto de veículos. Além disso, o secretário e o governador anunciam que será aberta uma licitação internacional para contratar um sistema de informática que permitirá a integração dos bancos de dados das polícias Civil e Militar e dotá-los de ferramentas de inteligência para um planejamento estratégico mais eficiente. Folha de São Paulo. Marcos Augusto Gonçalves[5]. O pacote para a área de segurança anunciado na semana passada pelo governador Geraldo Alckmin faz sentido e tem boas chances de dar certo. Não se trata apenas de reforçar efetivos e premiar o trabalho policial através de um sistema de metas, ideia que despertou justificadas apreensões. Na realidade, a proposta lançada por Alckmin e pelo secretário Fernando Grella Vieira é mais abrangente e envolve setores relevantes da sociedade – empresários, organizações não governamentais, especialistas e pesquisadores ligados à universidade. O objetivo é reformular conceitos de gestão, redefinir prioridades, aperfeiçoar indicadores e traçar estratégias para mudar a qualidade desse serviço público essencial, que no Brasil costuma ser tratado como guerra. O principal instrumento para dar início à mudança é o convênio firmado entre o governo e o Instituto Sou da Paz, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) com reconhecidos trabalhos prestados na área. Rádio Bandeirantes. Da Redação[6]. A estratégia de beneficiar os policiais com bônus faz parte de um plano de metas que, segundo o secretário de Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, terão como objetivo não só reduzir a criminalidade, como também aproximar as polícias que atuam em São Paulo. O pacote também prevê o aumento no efetivo da Polícia Civil (com a adesão de cerca de 3 mil novos agentes) e da Polícia Técnico-Científica (1,6 mil novos profissionais). As contratações serão feitas por meio de nomeações e concursos aprovados pelo governo. Além disso, o DEIC (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado) passará a apurar casos de latrocínio – roubo seguido de morte. O DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), que até então cuidava desse tipo de crime, passará a apurar casos de chacinas ocorridos em São Paulo. Extra – Globo.com. Djalma Oliveira e Andrea Machado[7]. Defendido pelo governo e criticado por sindicalistas, o pagamento de gratificações a policiais civis e militares é uma política adotada há, pelo menos, 17 anos no Estado do Rio. O governo Marcello Alencar criou, em 1995, a premiação por pecúnia para quem participava de grandes operações. Ela acabou após três anos de polêmica, já que o número de homicídios subiu no estado, o que fez o bônus ser apelidado de “gratificação faroeste”. Observatório de Favelas. Noticias e Análises[8]. Muitas foram às notícias e a comoção pública acerca das Chacinas da Baixada, de Vigário Geral, de Acari e da Candelária, que esta semana, completa 18 anos. Muitos destes crimes foram cometidos com o aval do Estado. No início de seu mandato, em 1995, Marcelo Alencar criou, por decreto, uma premiação em dinheiro para policiais por atos “de bravura”. A medida, que ficou conhecida como “gratificação faroeste”, estimulou mortes em supostos confrontos, como apontou o estudo Letalidade da Ação Policial no Rio, do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Muitas foram as críticas e o decreto foi revogado, mas as mortes continuaram num patamar inaceitável. Em 2009 foram 1.048 registros de deste crime, ante 855 em 2010. Só no primeiro trimestre de 2011, já foram registrados 168 homicídios por parte de agentes do Estado. Uma média de 56 mortos por mês. Em São Paulo, guardadas as devidas proporções, a média mensal é de 20 mortos a menos: 36, ainda alta. Aliada a esta situação, já critica, soma-se o baixíssimo índice de elucidação de crimes: 8%. Vale ressaltar ainda que dentro deste índice estão os crimes elucidados “na hora”, com prisões flagrantes, e que não exigiram os esforços tradicionais de uma investigação que comece do zero. Continue lendo o artigo e veja a bibliografia em: www.atualidadesdodireito.com.br/lfg

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Brasil e a governança do caos (2)

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou noblogdolfg.com.br Qual é o melhor modelo de governança de uma nação? Berggruen e Gardels (Governança inteligente para o século XXI, 2013, p. 50 e ss.) sugerem a combinação entre umademocracia esclarecida [criticam duramente o atual modelo democrático liberal com economia de mercado livre dos EUA] e a meritocracia que presta contas [a China é governada pela meritocracia, não pela democracia – não existem eleições -, mas falha na prestação de contas, ou seja, o regime é extremamente autoritário e fechado]. Os autores citados chamam a combinação das duas de governança inteligente, que se caracteriza pela transferência de poder assim como pela participação e divisão da tomada de decisões (p. 50). Em relação aos EUA a sugestão dos autores, que pode ter valia para a realidade brasileira, é a (parcial) despolitização da democracia (não o fim da democracia), ou seja, criação de um Conselho de Pessoas reconhecidamente Capacitadas (que comporiam uma espécie de Câmara Alta, norteada pela meritocracia), que revisaria toda legislação aprovada pela Câmara Baixa (eleita diretamente pelo povo) e ainda teria influência nos principais assuntos relacionados com a governança do país. Tanto nos EUA como no Brasil necessitaríamos de uma espécie de democracia que fosse regida por projetos de longo prazo e de interesse geral (os partidos políticos têm sido incapazes desse desafio) e que conseguisse se afastar dos populismos de curto prazo (exigências populares e midiáticas que postulam soluções imediatas e urgentes para os problemas sociais graves do país), que constituem uma “doença dos sistemas eleitorais atuais” (Ferrajoli), onde o eleito, enganando a população, se compromete com irresponsáveis políticas de curto ou curtíssimo prazo, sem tocar no âmago do problema enfocado. A velha democracia representativa (ou liberal) está perdendo, a cada dia, o seu vigor, diante das novas configurações democráticas: democracia de opinião (consumista) e democracia vigilante (redes sociais). Democracia representativa ou liberal (veja a Wikipédia, com observações minhas entre colchetes) equivale à democracia por eleição. Por votação (“cada cabeça, um voto”) o eleito representa [formalmente] o povo que o elegeu. Ele atua, fala e decide “em nome do povo” [nossa constiuição federal, no parágrafo único do seu artigo 1 , diz:”Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Nesta regra foram contempladas duas formas de democracia: a representativa e a direta]. O conceito moderno de democracia (veja a Wikipédia, com observações minhas entre colchetes) “é dominado pela forma de democracia eleitoral e plebiscitária majoritária no Ocidente, a que chamamos democracia liberal ou democracia representativa“. Apesar de sua aceitação generalizada – sobretudo no pós-Guerra Fria [Francis Fukuyama, diante da derrota do comunismo e da queda do muro de Berlim, declarou o “fim da história”, em 1989, enaltecendo o triunfo da democracia liberal do Ocidente; a história, no entanto, não tem fim e o modelo democrático liberal vem apresentando muitos defeitos] – a democracia liberal é apenas uma das formas de representação balanceada de interesses, compreendida num conceito global de isonomia [essa isonomia é puramente formal; a representação nem sempre é dos interesses gerais, como imaginava Rousseau; o poder econômico compromete normalmente o mandato do eleito; grupos de pressão possuem grande poder de veto etc.]. A moderna noção de democracia (Wikipédia) se desenvolveu durante todo o século XIX[daí o seu nome de liberal, porque coincide com o nascimento do Estado liberal burguês] e se firmou no século XX e está ligada ao ideal de participação popular, que remonta aos gregos, mas que se enriqueceu com as contribuções da Revolução Francesa [de 1789], do Governo Representativo Liberal inglês e, finalmente, da Revolução Americana, que foram experiências de libertação do Homem [do ser humano] e afirmaram a sua autonomia [essa autonomia, no entanto, é mais formal que substancial]. Das democracias de opinião (consumista) e vigilante (redes sociais) cuidaremos em outras postagens.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Clientelismo

O Globo de 8/9/13, p. 10, informa que José Dirceu, quando ministro da Casa Civil, teria feito gestões administrativas em favor da Vale do Rio Doce e da empresa Prensas Schuler, para beneficiá-las junto ao CADE e à Receita Federal, respectivamente. Ele negou qualquer tipo de favorecimento. A notícia não estarrece porque isso, lamentavelmente, ocorre, no Brasil, desde 1822, quando nasceu o (falso) Estado brasileiro. A origem do malfeito reside no parasitismo (que significa sugar indevidamente alguém ou o Estado, com a finalidade de enriquecimento ou obtenção de alguma vantagem). O parasitismo é um verdadeiro câncer econômico, social e moral. Uma das mais graves doenças do nosso país. Pior: ele pariu na nossa cultua um mundo de filhotes como o clientelismo, o patrimonialismo, o nepotismo, o fisiologismo etc. No site da InfoEscola, Emerson Santiago faz a distinção entre o clientelismo eleitoral clássico (político que atende o pedido do eleitor para alcançar o voto dele; uma variável é o coronelismo) e o clientelismo moderno, que objetiva a conquista de “favores” do Estado. Na visão mais contemporânea, o clientelismo se traduz em um tipo de relação entre atores políticos, envolvendo a concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, permanecendo a sua forma básica, que envolve a negociação do voto. “Os intermediários dos favores, prestados às custas dos cofres públicos, são os chamados clientelistas, despachantes de luxo ou ainda traficantes de influências. O grande objetivo dos intermediários é o voto do beneficiado ou dinheiro, componentes básicos do que identificamos como corrupção. A partir deste ponto de vista, temos que o clientelismo é a porta da corrupção política, sendo o sistema que dá origem à maioria esmagadora das irregularidades políticas e institucionais, assim como proporciona o mal uso da “máquina administrativa”, que passa a ser direcionada apenas a finalidades estritamente perversas, sendo os prejudicados, no final, a grande maioria dos cidadãos que desejam seguir cumprindo com seus deveres”. Sempre que os “favores” alcançados forem indevidos (injustos e/ou imorais), estamos diante do parasitismo, que é o grande mal de origem do Brasil. Seu combate se faz pela educação de qualidade para todos.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Brasil e seus mistérios: quem matou PC Farias?

Na bandeira brasileira o retângulo verde simboliza nossas matas e riquezas florestais, o losango amarelo traduz a ideia de que possuímos ouro (hoje muito menos que antigamente), o círculo azul estrelado é o nosso céu abençoado por Deus e a faixa branca simbolizaria o que imaginamos que somos: um povo ordeiro em progresso, bom, pacífico e conciliador. São essas as representações que criamos para nós mesmos. Mas se a bandeira brasileira fosse retratar o Brasil do século XXI, duas outras faixas teríamos que lhe agregar: uma vermelha, para simbolizar o sangue jorrado com as quase 100 mil mortes anuais, entre assassinatos intencionais e acidentes de carro, e outra preta, que representaria o luto de milhares de famílias cujos entes queridos desapareceram abrupta e antecipadamente. O mais grave é que a população brasileira não está sendo informada que tudo isso vai piorar bastante nos próximos anos, em proporção estarrecedora: em 1980 tínhamos 11 mortos para cada 100 mil pessoas, contra 27,4 óbitos em 2010. No lapso de 30 anos os assassinatos intencionais quase triplicaram.São inúmeros os fatores responsáveis por essa tragédia. O primeiro diz respeito ao modelo capitalista global e selvagem vigente, que nunca conseguirá jamais integrar (na distribuição das suas riquezas) um terço da população do planeta: cerca de 2 bilhões de pessoas se transformaram ou estão se transformando (com o desemprego, baixos salários etc.) em lixo humano (Bauman). Situação mais delicada é dos países com forte tradição escravagista (e aristocrata), como os da América Latina, destacando-se o Brasil, que se caracteriza como uma das regiões mais desiguais e discriminatórias do mundo. O quadro se agrava sobremaneira nos países em que jagunços, capitães do mato e coronéis, incluindo-se os da política visceralmente corrupta, matam seres humanos como se estivessem eliminando moscas. Pior é saber que a polícia brasileira, terrivelmente sucateada (tanto quanto os demais serviços públicos), vem conseguindo apurar a autoria de apenas 8% desses crimes brutais. De plano, como se vê, 92% deles ficam impunes. Índice ridículo diante de outros países como EUA (quase 70% de apuração), Espanha (mais de 90%), França e Reino Unido (mais de 85%) etc. Especialmente neste campo da criminalidade impune são incontáveis os mistérios no nosso país. Se os jurados reconheceram que PC Farias e sua namorada Suzana foram assassinados, rejeitando a versão de que ela o teria matado e depois se suicidado, resta o enigma (na linha daquela novela que perguntava quem matou Odete Roitman) sobre quem mandou exterminar PC Farias e sua namorada? Quem os executou, sem que os guardas tivessem notado? Houve queima de (mais um) arquivo? Quem derrubou aquele fatídico armário na cara do Roberto Jeferson, logo após ele ter embolsado alguns milhões de reais e denunciado o caso mensalão, que enlameou gente graúda do PT, marqueteiros, banqueiros etc.? Foi mesmo um armário que o atingiu? Onde foi parar o corpo de Ulisses Guimarães, o pai da Constituição Cidadã? O que aconteceu com Ronaldo na copa da França, em 1998? Qual teoria usou aquele padre que queria cruzar os céus brasileiros com o auxílio de mil balões, indo parar no fundo do mar? Quem teria envenenado o ex-presidente João Goulart (se é que ele fora envenenado)? Que ocorreu com a taça furtada do tricampeonato do Brasil? Onde está o corpo de Eliza Samúdio? Onde estaria o corpo de Dana de Teffé? Onde estão os corpos dos desaparecidos do Araguaia? Por que todos os autores da morte da menina Araceli não foram punidos? … mistérios, enigmas.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Corrupção na educação e a dialética da malandragem no Brasil

A corrupção é fonte de ganância e de ignorância? Sim. Dos 180 municípios fiscalizados pela Corregedoria Geral da União (entre 2011 e 2012), 73,7% praticaram algum tipo de corrupção ou de desvio no uso dos recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação) (O Globo de 01.08.13, p. 3). A danosidade da corrupção, nesse caso, tem tudo a ver com a ignorância a que são “condenadas” todas as crianças que recebem a péssima educação ministrada nas escolas públicas (por falta de estrutura adequada, metodologia correta, estímulo ao professor, que nem sequer tem condições de ser professor como profissão etc.). Com isso o aluno(a) não aprende a pensar e sem pensar ele(a) não desenvolve sua cidadania consciente, por falta de emancipação (depois passa o dia todo, inclusive na internet, fazendo mau uso da sua espontânea vulgaridade). O Brasil perde porque não prepara mão de obra adequada para o seu crescimento. Tudo isso se passa nos nossos olhos e nós não estamos fiscalizando o uso das verbas públicas dentro de uma democracia digital vigilante (que precisamos implantar, urgentemente, no Brasil). O uso da verba pública é fiscalizado? Em grande medida, não. Em 58% dos Conselhos de Acompanhamento do Fundeb (Fundo da Educação) visitados, os conselheiros não tinham recebido qualquer tipo de capacitação. Ou seja: fiscais que não fiscalizam. Conselheiros que não vigiam. Conselhos de fachada. Alguns mecanismos de controle já estão criados na lei (como se vê). Consoante a forma analógica, porém existem. Mas isso, no final, muitas vezes, não passa de um órgão fantasma. A população, na democracia direta, deve ser a primeira a querer fiscalizar o bom emprego da verba pública (é o que queremos que aconteça no Fórum Cidadão, que é a plataforma da democracia digital, que deve ser aprovada o quanto antes pelo legislador). O lado vigilante da democracia direta ainda é incipiente no nosso País. É chegado o momento, depois dos protestos de junho, de repensar e repaginar o Brasil, com o propósito de eliminar das suas entranhas o Brasilquistão que existe dentro dele. Para isso temos que lutar diuturnamente contra seus cinco pilares: (a) ineficientismo do Estado (esse é o lado ruim do Estado); (b) sistema político atrasado e corrupto; (c) dialética da malandragem (Antonio Candido); (d)apartheid (discriminação em razão da divisão de classes) e (d) guerra civil (violência para manter o sistema discriminatório). Poderíamos traduzir em números a má gestão da verba pública na educação? Sim. Das 180 cidades fiscalizadas entre 2011 e 2012, 73,7% têm problemas de direcionamento e simulação de licitações; 69,3% fizeram gastos incompatíveis com o objetivo do Fundo; 25% fizeram contratos irregulares; 32,2% fizeram movimentação de dinheiro fora da conta específica (O Globo de 01.08.13, p. 3). A Polícia Federal têm feito várias operações nessa área? Sim (operações Alien, Geleira, Tabanga etc.). E o resultado? Pífio, pelo menos em termos de recuperação do dinheiro subtraído. Por quê? Por uma série de fatores, mas, sobretudo, em razão da cultura da malandragem, que é generalizada. Ela faz parte da nossa formação história (disse J. E. Martins Cardozo), que “cria a ambiência para esses atos, sem uma reflexão profunda”. Quando tratamos um assunto sério de forma superficial, é evidente que a solução terá essa mesma natureza. De onde vem a “dialética da malandragem”? Antonio Candido (Revista do Instituto de estudos brasileiros, n. 8, SP, USP, 1970, p. 67-89) vislumbrou no romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, o que ele chamou de “dialética da malandragem”, que retrataria a dinâmica dos costumes da sociedade brasileira no começo do século XVIII. Leonardo (personagem do livro) seria o “primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira” (que, depois, foi elevado à categoria de símbolo sem caráter por Mário de Andrade, no Macunanaíma). O malandro (municipal, estadual ou federal) é um aventureiro, astuto e quase folclórico, ao mesmo tempo, que pratica a astúcia pelo gosto da astúcia, em proveito próprio ou para solucionar um problema, mas sempre lesando terceiros. O que caracteriza fundamentalmente a dialética da malandragem é a díade (o par) da ordem e da desordem, que retrataria não somente a sociedade descrita no livro como a atual (se prestarmos bem atenção). Por todos os lados e em todas as partes há sempre, na dinâmica da ambiência histórica brasileira, uma ordem comunicando-se com a desordem. É o tipo de sociedade que faz o bem e também o mal, o certo e o errado, que é egoísta e também altruísta, que é honesta e desonesta, que faz algo admirável ao lado de atos deploráveis etc. A tese é a seguinte: as díades (os pares) marcariam o caráter da sociedade brasileira (daí a generalização da ordem e também da malandragem, da corrupção). Trata-se de um mundo pendular entre o lítico e o ilícito? Sim. Se correta a tese dualista da malandragem, deveríamos afirmar que a sociedade brasileira (pelo menos vários segmentos dela) vive zanzando entre dois hemisférios, o positivo (da ordem) e o negativo (da desordem). Voltando a Antonio Candido: a dinâmica do livro citado (Memórias de um sargento de milícias) pressupõe uma gangorra dos dois polos, que transita da ordem estabelecida às condutas transgressivas. “Tutto nel mondo è burla” seria a expressão legítima desse mundo pendular, diáfano, cujas estruturas morais e éticas habitariam um lugar bem distante de toda rigidez. Vive-se ao sabor do balanceio entre ordem e desordem. Trata-se de uma sociedade “na qual poucos trabalham, enquanto outros flutuam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo. Uma organização fissurada pela anomia, onde se transita entre o lícito e o ilícito, sem muitas vezes podermos dizer o que é um e o que é outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX” [e, com certeza, do Brasilquistãoatual].

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Crise de confiança abala o país

O mundo e o Brasil vivem hoje várias crises (crise do capitalismo neoliberal especulativo, crise do Estado-nação, crise ética e cultural, crise de representatividade política, crise do Estado de direito), mas nenhuma supera a crise de confiança, que constitui a causa primordial das frustrações, insatisfações, iras e indignações populares. Não se confia mais no Estado, nem no modelo capitalista praticado atualmente (em razão das suas injustiças e dos seus desvios), nem nas instituições (políticas, jurídicas, educativas, da saúde etc.). Pesquisa nacional do Ibope, chamada Índice de Confiança Social, feita anualmente desde 2009 e divulgada em 01.08.13 (O Estado de S. Paulo de 02.08.13, p. A8) revela que todas as 18 instituições pesquisadas, ineditamente, perderam (em maior ou menor grau) a confiança dos brasileiros. A média ficou em 47 pontos (contra 54, do ano de 2012, e 58 em 2009). A confiança na presidente da República foi a que mais caiu (perdeu 21 pontos em um ano – baixou de 63 para 42, ou seja, menos 33%), mas nenhuma escapou da insatisfação massiva externada nos protestos de junho. O Congresso e os partidos políticos são as instituições menos confiáveis do País (com 29 e 25 pontos, respectivamente), desde 2009. Bombeiros ficaram com 77 pontos (queda de 7%), Igrejas com 66 pontos (queda de 7%), Governo Municipal com 41 pontos (queda de 9%) etc. Em julho de 2013 foram registradas crise de confiança no governo e na economia (pesquisa da CNT/MDA), queda na confiança do empresário industrial (pesquisa da CNI) e queda na expectativa dos novos empregos (aliás, em junho, o desemprego atingiu a marca de 6% e isso se deve ao desânimo dos empresários para abrir ou ampliar negócios e o consequente temor por menos vagas). A sensação é de que a “era de ouro” do emprego no Brasil está correndo sério risco, seja porque os EUA estão se recuperando, seja porque a China está com seu crescimento estacionado (o que significa menos exportações dos nossos produtos, das comodities). Ambiente externo menos favorável mais os protestos deixam os agentes econômicos mais cautelosos (para não dizer parados, à espera do que virá amanhã). Não falta capital para os investimos privados e ampliação dos negócios, sim, confiança. Em julho o Índice de Confiança da Indústria foi 3,6% mais baixo que junho (FGV – O Estado de S. Paulo de 23.07.13, p. A3). O Índice de Confiança do Consumidor caiu (em julho) 4,1% (segundo a FGV). Grande parcela da população considera que as principais instituições do país são, ademais, corruptas ou muito corruptas: em primeiro lugar vêm os partidos políticos, que são corruptos ou muito corruptos para 81% dos brasileiros, conforme pesquisa Ibope divulgada em 08.07.13, pela Transparência Internacional. Quatro em cada cinco pessoas não acreditam na representação política do País (O Estado de S. Paulo de 09.07.13, p. A4). O Congresso é corrupto ou muito corrupto para 72% dos entrevistados; Polícia: para 70% (é corrupta ou muito corrupta); Sistema de Saúde: para 55%; Judiciário: para 50%; Funcionalismo público: para 46%; Imprensa: para 38%; ONGs: para 35%; Militares: para 30%. A consequência drástica desse grave quadro de desconfiança é a seguinte: em primeiro lugar, rompe-se a coesão social. A fratura gerada pela desconfiança faz desmoronar o contrato social, quebrando os vínculos associativos, dando ao indivíduo a sensação de isolamento, de impotência, o que lhe conduz a lutar pela sua sobrevivência (quando tudo está se desmoronando, especialmente a esperança num futuro melhor, só resta ao cidadão acuado a luta individual pela sobrevivência). De outro lado, é de se presumir que a falta de confiança (no Brasil) possa afetar, no campo econômico, em primeiríssima mão, os investidores estrangeiros (que pensarão duas vezes antes de jogarem mais dinheiro no nosso país), assim como os turistas (em 2012 o Brasil, com 65 bilhões de dólares investidos, ficou em quarto lugar em volume de investimentos estrangeiros, atrás dos EUA – 168 bilhões -, China – 121 bilhões – e Hong Kong – 75 bilhões – Carta Capital de 03.07.13, p. 51). Um outro efeito da crise de confiança diz respeito aos votos nulo e branco. Eles podem chegar a mais de 15% (como fruto da desilusão) (veja a 114ª pesquisa da CNT/MDA, feita em julho de 2013). Todos os que perderem a esperança no futuro do País tendem a anular o voto. Tudo o que acaba de ser evidenciado vai demandar um choque de gestão eficaz dos governantes (ainda que seja uma gestão de emergências), pois do contrário perderão o poder, que jamais se sustenta sem boa reputação, sem gerar confiança na população, nos investidores, nos turistas etc.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Cultura política, ódio e baixaria na internet

R. J. Ribeiro (Valor 30/9/13, p. A8) manifesta desapontamento com nossa cultura política. Com razão. As redes sociais estão, até agora, cumprindo um ridículo e inócuo papel. Ideias e projetos para a sociedade se definham e se perdem em debates estéreis, polarizados e partidarizados (Fla-Flu irracional). Apesar do desencanto, não há como não imaginar a internet como a nova ágora (praça pública, segundo os gregos) onde possam ser discutidas e debatidas as grandes questões políticas e administrativas da nação (a isso estou chamando de Democracia Direta Digital no livro Por que estamos indignados?, Saraiva, que sai dia 4/10/13). É o único caminho que se mostra viável para fortalecer nossa cambaleante e corrupta democracia. Qual o problema? Odiamos discutir nossas ideias. Odiamos expor nossas ignorâncias. Preferimos morrer com elas a ceder um milímetro. Herança do nosso autoritarismo. Temos medo de que o debate sirva de palco para o ignorantismo, na sua forma de exploração da ignorância alheia (o mais astuto pode manipular o ignorante). Demagogias sofistas. Ainda, para nós, o debate público não passa de manipulação. Em geral, é mesmo. Mas temos que mudar. Acreditando que há muitos brasileiros adultos. Um Fórum Cidadão de debates não é uma televisão de entretenimento (veículo de demagogia e de manipulação). Não temos formação cultural para o debate (é verdade). Mas isso se aprende. Custa, mas aprende. O que não se pode é admitir que essa ausência seja preenchida pelo ódio espumante. Papel ridículo esse, às vezes cumprido também pelo brasileiro. O problema da nossa cultura política, conclui R. J. Ribeiro (Valor 30/9/13, p. A8), somos nós mesmos, que não estamos fazendo nossa parte. Sua proposta: “homens e mulheres de boa vontade, empenhados em melhorar nosso quadro político, deveriam assegurar um debate de qualidade. Isto não é abrir mão de convicções políticas, mas é reconhecer que há gente decente dos dois grandes lados de nosso espectro partidário, e que a vitória esmagadora de uma parte não é possível, nem desejável. Isso exige evitar palavras grosseiras como petralha e tucanalha, que desqualificam em bloco muitas pessoas boas que fazem trabalho bom (…) Desde 1985 estamos construindo uma democracia sustentável (…) que ela não fique só nas instituições, que se enraíze nos nossos corações”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Cura gay e a intolerância religiosa

Propostas pouco respeitosas às crenças das pessoas ou à diversidade, em pleno século XXI, como é o caso da “cura gay” da homossexualidade, deveriam ser sumariamente arquivadas (em razão da sua mais absoluta falta de consistência científica). O deputado João Campos (PSDB-GO), autor do texto arquivado, pediu sua retirada da pauta; mas o projeto pode ser reapresentado no ano seguinte. De que maneira devemos enfrentar questões polêmicas como essa? Martha C. Nussbaum (La nueva intolerância religiosa) invoca o auxílio de Sócrates, na antiga Atenas. A cidade de Atenas foi uma grande democracia, porém seu povo, muitas vezes, caia no canto dos demagogos irresponsáveis. Eram frequentes os erros humanos fundados na insensatez, no peso da tradição e na parcialidade egoísta. Foi nesse contexto de falácias coexistentes com as verdades que o filósofo Sócrates desafiou a sociedade ateniense para levar uma “vida examinada”. E o que significava (e significa ainda hoje) isso? O seguinte: que devemos criar uma democracia que seja reflexiva, não impetuosa (voluntarista, vulgar, impensada). Devemos ser mais deliberativos e menos irreflexivos, sobretudo nas questões que dão ensejo a uma confrontação mútua. Toda pessoa, para não ser idiota, deve participar da vida política, mas buscando razões para seus posicionamentos não meras afirmações; temos que ser coerentes em nossas opiniões. Nunca podemos nos considerar exceção aos argumentos que queremos que tenham valor para os outros. E o contrário também é verdadeiro: nunca devemos excetuar os outros em relação aos argumentos que nós achamos válidos para nós mesmos. Se a liberdade de crença é sagrada e todos nós temos que respeitá-la, indefectivelmente, o que vale para ela tem que valer para as crenças e formas de vida das outras pessoas. Ainda consoante Martha C. Nussbaum (La nueva intolerancia religiosa), para evitar a nefasta tendência de encurtar nossa visão sobre as coisas, sobretudo quando nos concentramos em nós mesmos, esquecendo-se do mundo, necessitamos assumir, antes de tudo, o compromisso socrático (que também é cristão e kantiano) de “examinar” as eleições que fazemos e verificar se são, ou não, egoístas e unilaterais. Não podemos nos converter em exceções privilegiadas aos princípios que queremos que sejam aplicados para todos os demais. Não podemos nunca ignorar o pleno e igual reconhecimento dos direitos de todas as pessoas, respeitando suas eleições de vida, enquanto elas não afetem interesses concretos de terceiros. Não podemos nunca dispensar o espírito interior que nos conduz à coerência, que nunca pode ser um propósito vazio. Necessitamos do espírito de progresso, de evolução, porém, antes de tudo, de boa convivência. Porque isso é civilização e não barbárie!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Donadon: síntese do Brasil que deu errado

Padre Antonio Vieira, no seu livro e Sermão do Bom Ladrão dizia: “O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (…) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administraçãoAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. – Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam” [eu agregaria: e se apoiam, e se absolvem, e se confraternizam, e se degradam juntos, e não se envergonham, e se horrorizam eticamente, e se igualam no parasitismo, se rivalizam na baixa estatura moral, se lixam para a população…]. Anexo 5 para a carceragem da Câmara dos Deputados Donadon retrata com perfeição uma das possíveis sínteses do Brasil parasitário, que é o Brasil que deu errado. Dizem que o problema (da preservação imoral do seu mandato) foi a votação secreta. Na verdade, o problema é muito mais profundo: é a falta de ética! Dizem que tudo foi engendrado pelo baixo clero: em matéria de moralidade está difícil distinguir (no Congresso Nacional brasileiro) o baixo do alto clero. Na hora da malandragem (“que rouba as cidades e os reinos”) todos se unem (salvo raras exceções). Se o Parlamento não viu quebra de decoro no comportamento corrupto e imoral de Donadon é porque o seu critério de decoro conta com elasticidade infinita. Para ser coerente a Câmara dos Deputados deveria construir o anexo 5 para a carceragem da Casa e aí pelos menos não gastaríamos mais com o transporte do parlamentar corrupto já condenado até o local do seu “honroso trabalho”. Parasitismo: um dos males de origem do Brasil Donadon não é apenas o primeiro deputado (depois da redemocratização) que se transformou em preso, sim, o primeiro preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos, por força do art. 15, III, da CF, que continua sendo deputado. Vergonha nacional e internacional! Com os direitos políticos suspensos (em razão de condenação criminal definitiva) não pode votar nem ser votado, mas continua sendo deputado federal! Incongruência absoluta! É a culminância da vulgaridade que marca o homo democraticus do século XXI, a confirmar que o nosso mal de origem, o parasitismo, continua mais presente do que nunca: “O Brasil nasceu sob o signo do arbítrio e foi destinado exclusivamente ao saque de suas riquezas: primeiro do pau-brasil, depois do açúcar, depois do café, depois dos seus minerais, da sua agricultura etc.: tudo isso feito pelos índios ou escravos, os parasitados, sem nenhum custo para o colonizador parasitário” (F. de Oliveira). O saque continua até hoje, sobretudo, do erário público, tendo como protagonistas principais os políticos mancomunados com potentes agentes econômico-financeiros. Pelo fim do voto secreto A solução para o voto secreto (que permitiu a preservação do mandato de Donadon) passa por dois caminhos, que devem ser conciliados: (a) voto aberto no Legislativo (deve ser a regra) e (b) perda automática do mandato em caso de condenação em alguns crimes. As duas coisas devem ser adotadas conjuntamente, ou seja: deve ser acolhida a proposta de Jarbas Vasconcelos que está tramitando no Senado Federal (onde Renan já foi salvo duas vezes em razão do voto secreto): réu condenado definitivamente em alguns crimes (especialmente quando se trata de corrupção) perde automaticamente o mandato e pronto! Fora desses casos (como seria só a falta de decoro, por exemplo), o voto deve ser aberto (para não ocorrer o que ocorreu com a deputada flagrada recebendo dinheiro sujo e mesmo assim foi “absolvida” pela Câmara dos Deputados). Descorporativização do voto O voto aberto, de qualquer modo, não é garantia de moralidade (porque a moralidade é pessoal, não instrumental). Mas pelo menos vamos saber os nomes e apelidos dos que apoiam a malandragem ou a estupidez. Pode haver (e disso muitos parlamentares brasileiros são capazes) voto aberto, porém, totalmente imoral e aético. A elite parasita tem cara de pau suficiente para não se envergonhar quando se trata de manter o privilegiado parasitismo. De qualquer modo, saberemos quem assim procede, com o voto aberto. O problema de todos os votos dentro da Casa Legislativa é que ele continua sujeito ao corporativismo, ou seja, quem é malandro tende a acobertar a malandragem alheia (solidariedade no parasitismo criminoso ou indecoroso). É preciso, então, descorporativizar a questão da perda do mandato (diga-se de passagem, o que já é possível hoje com o uso do art. 15, III, da CF). Basta a condenação penal (naquelas situações do art. 92 do CP). Se queremos mudança, se queremos construir um novo Brasil (esquecendo a pesada herança parasitária que vem do colonialismo português), ela só pode vir com a descorporativização da perda do mandato do parlamentar corrupto. Esse é o caminho correto e definitivo. Nas demais situações, o voto seria aberto, mas acompanhado pari passu pela democracia direta digital (DDD), a ser implantada numa plataforma em rede, que deveria ser chamada de Fórum Cidadão. Democracia direta digital Se a democracia direta digital (DDD) já fosse uma realidade no nosso país, a vigilância permanente sobre os parlamentares não teria permitido tamanha desfaçatez e imoralidade, que só ocorreu porque a causa de Donadon é também a causa de muitos outros políticos, que são frutos de outras gerações de políticos desonestos, que lembram os pais, avós, bisavós, tataravós de todos os que hoje enfocam a ética como coisa abstrata e desnecessária (tal como disse o senador Lobão Filho). Todos se igualam no parasitismo, aqui vigente desde o descobrimento, em 1500, que é a raiz do clientelismo, servilismo, patrimonialismo, feudalismo, nepotismo e fisiologismo. Pena de empobrecimento Donadon, invocando sua fé em deus, orou, implorou, discursou com “emotividade” e conseguiu sensibilizar seus pares, salvando seu mandato. Mais que isso: sem restituição da roubalheira, que é coisa que ninguém fala. Devolver tudo que foi amealhado no exercício do cargo público seria a melhor solução (como já dizia o padre Antônio Vieira no seu Sermão do Bom Ladrão). Porque no Brasil o corrupto é condenado, às vezes até vai para a cadeia, mas continua rico! Seria o caso de se trocar a cadeia pela pena de empobrecimento, destinando o dinheiro e bens para a educação de qualidade da população, com escola obrigatória das 8 às 18h diariamente, até os 18 anos. Parasitismo: um dos males de origem do Brasil atrasado Donadon fez a defesa da imoralidade e encontrou eco em seus pares. Os escrúpulos foram lançados aos escombros da podridão. Nada de construir um novo país, sim, temos que defender o que se transformou em “nosso patrimônio”. E tudo é feito sem nenhum sentimento de culpa ou de vergonha, porque tudo vem de 1500, da cultura e da tradição da espoliação, da expropriação, do aventurismo, do enriquecimento rápido, em síntese, do parasitismo (que é um dos males de origem do Brasil atrasado).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Embargos vão gerar impunidade?

Como cidadão ético também estou reprovando todas as formas de corrupção parasitária no Brasil, seja do PT (mensalão, ministérios podres, ONGs parasitas etc.), seja do PSDB (mensalão, compra de parlamentares para a reeleição, fraude na concorrência do metrô de SP etc.) ou de qualquer outro partido político. De qualquer modo, o Ministro Celso de Mello, em 16/9, disse que vai admitir os embargos infringentes, mas que isso não significa necessariamente redução de pena ou de regime ou mesmo impunidade (Folha, 16/9/13). A Veja,contrariando o ministro, está dizendo que tudo vai virar impunidade. Será? A Veja assustou muita gente neste final de semana a história da total impunidade. Vamos raciocinar: a quantos anos de prisão os doze réus do mensalão foram condenados? 178 anos de cadeia. Caso sejam admitidos os embargos (como o ministro Celso de Mello está dizendo), quantos anos de pena estarão em jogo? 31 anos. O que significa 31 de 178? 17,5%. Então, 82,5% das condenações já estão garantidas e vão significar cumprimento efetivo? Sim. Isso é muito ou pouco? No campo da justiça, depende de valorações de proporcionalidade. No campo minado e contaminado dos julgamentos ideológicos e partidários existem duas correntes: petistas dizem que é muito; os adversários dizem que é muito pouco! Para iluminar o debate: se o “novo jogo processual” acontecer, vai ser discutido menos de 1/5 do total? Sim. Então, mais de 4/5 do total já vão para execução sem nenhuma dúvida? Sim. E quanto significa isso? 147 anos de prisão. Por que estou eu fazendo todas essas contas? Para mostrar que não é verdade que o caso mensalão vá ser “melado” e que “tudo” vai para a impunidade, como a mídia ideologicamente podre está dizendo e assustando todo mundo, sobretudo os que ignoram o funcionamento da Justiça e o que já aconteceu até aqui no mensalão. José Dirceu pode até escapar do regime fechado, mas não vai deixar de cumprir quase oito anos de cadeia (no mínimo). Esse total de 147 anos já é certo? Sim. Logo, é exagero falar em “total” impunidade dos poderosos no caso mensalão (a afirmação é relativamente correta em termos gerais, de Brasil). Nossa escandalosa impunidade não é, no entanto, somente dos poderosos. Também das classes baixas e médias: menos de 2% dos crimes no Brasil são punidos. O Estado brasileiro funciona mal também nesse campo e deixa 98% dos crimes impunes? Sim. É difícil saber se proporcionalmente a impunidade é maior nas classes altas ou nas classes baixas. Não temos estatísticas a respeito. Em ambas existem muitos parasitários que vivem às custas do trabalho alheio, valendo-se para isso de violência, fraude, corrupção e outras tantas formas de parasitismo. Até onde pudermos, temos que procurar nos vacinar contra as idiotices difundidas pelas mídias (tradicional e social). Todo cidadão brasileiro deveria se preocupar com a qualidade das notícias e das informações, para não se converter num idiota: essa palavra grega veio de Idiotes, que “é o sujeito que nada enxerga além dele mesmo, que julga tudo pela sua própria pequenez” (O. de Carvalho). Ninguém pode ignorar que o mundo político e midiático (mídia tradicional ou social) se apresenta hoje, em geral (há exceções honrosas), como algo repugnante. Trata-se de um mundo ideologicamente envenenado, por ideologias e pré-conceitos. A Veja, independentemente do seu posicionamento ideológico e das suas reiteradas mentiras, no entanto, está muito certa em reprovar as malandragens do PT para garantir sua governabilidade. O próprio PT, já que muitas condenações não mais serão modificadas, deveria fazer autocrítica e dizer que não pode concordar com o errado, com o malfeito. Mas ela não tem o direito de manipular de forma tão descarada a opinião pública. O tempo todo, neste final de semana, ela ficou falando em impunidade (“tecnicidade ou impunidade”, “tudo vai virar impunidade”, “a certeza da impunidade para os ricos e poderosos” etc.). Esse tipo de mídia abjeta quando não mente deslavadamente, exagera. Uma vez ou outra produz algo decente. E o que ela faz de decente (informações na área da educação, por exemplo), eu admiro. O leitor apático, que não está bem antenado, acaba acreditando nas suas idiotices e reproduzindo-as (como vários artigos de jornal reproduziram). Pura idiotice! Vamos continuar nos vacinando contra essas idiotices, porque todos temos o direito de não sermos ludibriados pela podridão midiática.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ética, dignidade e esperança manipulam mente do eleitor

O povo brasileiro quer mudanças? Sim. O termômetro da saturação do povo brasileiro chegou ao seu limite máximo (conforme a 114ª pesquisa do CNT/MDA, realizada em julho de 2013, a insatisfação com a corrupção – principal causa dos protestos – chegou a 55%; insatisfação com a qualidade dos serviços de saúde: 47,2%; insatisfação com os gastos da Copa do Mundo: 43,7% etc.). Há, na sociedade brasileira, um profundo mal-estar e, em consequência, o desejo de mudança. Aliás, o mesmo desejo de mudança que levou o PT ao poder em 2002 (apesar de todos os medos que ele representava para a sociedade financista conservadora) passou a constituir o combustível das jornadas de junho. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PSDB não o teria trocado pelo PT. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PT não estaria fazendo protestos nas ruas e nas redes sociais (contra tudo e contra todos). Quais são os desafios do PT e do PSDB para manter ou reconquistar o poder? Eles, juntamente com os seus partidos coligados, têm pela frente uma longa jornada de luta para recuperar a confiança da população (os dois devem ser citados conjuntamente porque é difícil encontrar um desmando no governo petista que não tenha ocorrido também no governo tucano ou em qualquer outro governo precedente). Um exemplo: uso indevido de aviões da FAB – por Renan, Garibaldi, Henrique Alves, Aldo Rebelo etc.-; no tempo do PSDB houve um ministro que chegou a viajar de férias com a família toda para Fernando de Noronha. O PT e o PSDB (dissidente do PMDB de Quércia) nasceram como partidos discursivamente éticos. Por isso conquistaram o poder, mas, antes, o coração e a mente do povo, que depositou confiança neles (do contrário não teriam sido eleitos). Os partidos políticos deixaram de representar a ética, a dignidade e a esperança? Desgraçadamente, sim. Seguindo, em linhas gerais a análise de Renato Janine Ribeiro (Valor Econômico de 29.07.13, p. A6) temos o seguinte: quando o PT conquistou o que Gramsci chamava de hegemonia? Quando sustentou a ética e a justiça social como bandeiras. Como explica M. Castells (Comunicação e Poder), a persuasão é fundamental. Poder só fundado na coação é débil. A manipulação das mentes é mais eficaz que massacrar os corpos. Na nossa mente está parte do poder. Nossa mente se submete à comunicação, ela recebe sinais, que ativam nossas emoções e decisões. O poder não existe sem comunicação. Ele se constrói no espaço da comunicação. Os meios de comunicação não possuem o poder, sim, são meios da conquista e do exercício do poder. Ética, dignidade e esperança são as chaves da confiança? Sim. Voltando a Renato Janine Ribeiro (Valor Econômico, de 29.07.13, p. A6): o PT acertou quando fez da questão social uma questão ética (como efetivamente é). A conquista do poder pelos espíritos (pelas mentes) é mais importante que pela vitória das armas (Gramsci). Isso fez com que PT e PSDB crescessem. Também fez que fossem perdendo forças. Os intelectuais “das mentes” deixaram o PT. O partido deixou de ser a esperança do futuro e se tornou pragmático. O partido perdeu líderes, ganhou gestores. As questões sociais deixaram de ser consideradas éticas (nisso reside um grande erro). Nunca a miséria e a pobreza podem ser desconectadas da ética. Do “País rico é país sem pobres” deveriam estar falando em “País rico é país com ética, país digno”. Ética, dignidade e esperança possuem muito mais poder de manipulação das mentes do que a pragmaticidade dos governos.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – EUA invadem a privacidade do mundo inteiro

No outono de 2013, depois das denúncias de Snowden, confirmou-se (o que todos já sabiam ou pressentiam) que os EUA fazem espionagem do mundo inteiro. Milhões de e-mails e ligações, inclusive de brasileiros, foram captados pelo Guardião do Mundo! Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA dominaram o mundo pelo prazer do consumo (economia neoliberal de mercado livre), transmitindo a mensagem de que o bem estar material de cada cidadão (transformado em consumidor) constitui a finalidade última do ser humano. Quando o consumismo chegou à exaustão, elegeu-se o medo para ancorar a sua dominação. Vivemos a era da dominação pelo medo. O medo é o fator de integração dos EUA (e, em certo sentido, do planeta). Sem população amedrontada não se exerce o domínio autoritário. Um dos meios de manutenção do medo é o massacre. Mas todo massacre (para incrementar o medo) depende da eleição de um inimigo. Na Idade Média a Igreja católica elegeu como inimigo as bruxas. Nunca se achou uma bruxa. Mas a guerra contra elas aconteceu (cerca de 100 mil mulheres foram massacradas). Nos anos 60 e 70, o inimigo dos EUA era o comunismo (marxismo). Foi derrotado (o momento espetacular ocorreu em 1989, com queda do muro de Berlim). No final dos anos 70 o inimigo passou a ser o Estado de Bem-Estar social (Wellfare State). Foi derrotado, pelo capitalismo neoliberal de mercado livre (o desemprego ou sub-emprego, instabilidade salarial, destruição da natureza etc., são expressões dessa “vitória”). Concomitantemente a essa guerra contra o Estado providência eclodiu a guerra contra as drogas (1971, Nixon). Esta nunca foi vencida (nem nunca será). Depois vêm guerra do Golfo pérsico, guerra contra o Afeganistão, guerra contra o Iraque (as armas químicas estão para Sadam Hussein como as bruxas estavam para a Inquisição católica), guerra contra a Líbia, guerra contra Bin Laden, guerra contra o terrorismo islâmico etc. Sob o pretexto de que é preciso atacar o terrorismo, as ações do Tio San se estendem por todo planeta. Com ameaças e ataques contínuos mantém-se a estratégia da submissão da cidadania por meio do medo. O direito internacional não vale para os EUA, violações constantes aos direitos humanos são ignoradas, Guantánamo e suas humilhações estão mantidas, está justificada a tortura, paraísos de ilegalidades estão espalhados pelo mundo todo. Loïc Wacquant chama isso de “Era Torturante” (quem passou por algum aeroporto internacional nos últimos anos sabe bem o que é isso: humilhação e sensação de um perigo iminente; perante seus escâneres, toda nudez nunca será castigada). Nossos pertences (cintos, sapatos, carteiras, relógios, celulares, líquidos etc.), tal como ironiza Carlos París (Ética radical, p. 150), “são portados numa bandeja como se fosse uma oferenda ao deus protetor dos ameaçados cidadãos do globo terrestre”. São truques para a manutenção do medo. Todo mundo, nos aeroportos, deve recordar que existe uma ameaça planetária. O objetivo das encenações, claro, consiste em manter a cidadania amedrontada, porque é assim que se conquista sua submissão.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Fábrica de leis a todo vapor

O Congresso Nacional, mais uma vez, comprovou o vaticínio de Ulisses Guimarães: “O que mete medo no político é o povo na rua”. A máquina de fabricação de leis entrou em operação “full time”. Do legislador pode sair coisa boa assim como coisas indecentes, demagógicas e enganadoras. Temos que estar de olho neles e no produto feito por eles (e isso se chama “democracia vigilante”, sobretudo pelas redes sociais – a maior mudança na democracia brasileira). A Câmara dos Deputados aprovou ontem o projeto de lei 5.500/2013″que destina 75% dos royalties do petróleo para a educação e os 25% restantes para a área da saúde. Correta a medida, visto que educação e saúde são, dentre outras, duas prioridades absolutas no nosso país de 513 anos de desconsideração e abandono dos integrantes das “senzalas” nessas duas áreas. Medida de justiça social acertadíssima. Já o Senado aprovou projeto (do sen. Pedro Taques-PDT-MT) que torna a corrupção, o peculato, o excesso de exação, concussão e o homicídio simples crimes hediondos (aumentando também a pena dos primeiros crimes, porém, de forma a permitir penas alternativas – pena mínima de 4 anos) (o projeto agora vai para a Câmara dos Deputados). Pode dar a sensação de que todo mundo vai para a cadeia: não é bem assim. A pena mínima de 4 anos admite penas alternativas (substitutivas). E não há dúvida que aqui os juízes vão fazer isso, porque crime cometido sem violência não é nunca hediondo por natureza (por mais repugnante que seja, como a corrupção é). Pode ser por força de lei, mas não é na realidade. Mas temos que (sensatamente) prestar atenção num detalhe importante: de 1940 a 2012 o Congresso reformou o Código Penal 136 vezes e nunca jamais nenhum crime reformado diminuiu. Nunca, jamais! Todos os crimes reformados aumentaram, porque o Estado falido somente atua em pouquíssimos casos. Pode ser que os 20 centavos representem, para o trabalhador e o estudante, algo muito mais concreto e palpável! Se você tem uma casa que não lhe agrada e você a reforma 136 vezes e continua não gostando dela, o que seria melhor: mudar de casa ou reformá-la mais uma vez? Cabe ao sensato leitor verificar se, de todas as medidas conseguidas até aqui com os protestos nas ruas, essa não seria a de eficácia mais questionável (veja nosso livroPopulismo penal midiático: Saraiva, 2013). O sen. Wellington Dias (PT-PI) disse: “Não se pode ficar só nos três ´pês´: pobre, preto e puta”. Essa trilogia hoje, dentro dos presídios, já mudou: são 5 pês: preto, pardo, pobre, puta e policial. Aliás, agora, com a prisão do deputado Natan Donadon (determinada hoje pelo STF), passaremos a 6 pês: pobre, preto, pardo, puta, policial e político. Mais um dilema (que o equilibrado leitor deve refletir): é melhor o corrupto na cadeia, mas rico (com toda bufunfa na mão, porque é assim que funciona o sistema penal brasileiro), ou fora da cadeia e pobre (pena de empobrecimento, mais proibição de participar da política etc.)? Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Homicídios estão diminuindo… nos países desenvolvidos

De acordo com artigo da The Economist (20/7/13), uma pesquisa americana mostrou que os países desenvolvidos, ao contrário do que se previa na década de 90, tiveram uma considerável (impressionante até) queda na criminalidade nos últimos anos. Segundo a publicação, na década de 1990, John Diulio, um acadêmico conservador americano, afirmou que uma nova geração de “superpredadores”, (crianças que sem nenhum respeito pela vida humana e sem sentido de futuro), iriam aterrorizar os americanos por tempo indeterminado. E ele não era o único. Muitos especialistas estavam convencidos de que o crime iria continuar crescendo. Era um momento em que o neopunitivismo (ultraliberal) estava começando a ser implantado, logo, ideologicamente, havia necessidade de colocar muito medo na sociedade (porque, como se sabe, pelo medo se domina a população). As previsões alopradas da década 90 não se confirmaram. O crime caiu vertiginosamente… nos países desenvolvidos. Dizia-se em 90 que os cidadãos “cumpridores da lei” (ou nem tanto, em razão da quantidade enorme de canalhas que cometem crimes do colarinho branco como sonegação, lavagem, fraudes em licitações, compra de congressistas etc.) retirariam-se das cidades para comunidades fechadas, patrulhados por guardas de segurança. Políticos e chefes de polícia pouco poderiam fazer, exceto barulho e tentar manipular as estatísticas. Dr. Diulio retratou-se posteriormente, junto com os pessimistas que concordaram que estavam errados. Como ele mesmo escreveu, a onda de criminalidade da América estava vindo abaixo. As cidades estavam tornando-se muito mais seguras, e o resto do mundo desenvolvido seguiu a o mesmo modelo. A publicação da revista The Economist (20/7/13) mostra que do Japão até a Estônia (neste país os homicídios caíram 70%), as propriedades e as pessoas estão mais seguras hoje do que em qualquer outro momento desde a década de 1970. Confundindo as expectativas, a recessão não interrompeu a tendência de queda. Mesmo com o debate acirrado da América sobre os atiradores, novos dados mostram que a taxa de homicídios de jovens norte-americanos vem caindo nos últimos 30 anos. Alguns crimes estão desaparecendo. Muitos diminuíram 90% (sobretudo em Nova York, Chicago e Los Angeles). Manhattan tinha 29 assassinatos para cada 100 mil pessoas. Esse número caiu para 1,5, em 2012. Na contramão dos países desenvolvidos, o Brasil (e a América Latina) continua apresentando crescimento em diversos tipos de crimes, como os homicídios, estupros, latrocínios. De acordo com levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do Datasus – Ministério da Saúde, em 2011 houve uma leve queda no número de homicídios no Brasil, mantendo a estabilidade da taxa de mortes. Em 2010, foram registradas 52.260 mortes por homicídio em todo o país e, em 2011, essa taxa foi de 52.198, uma leve queda de 0,12%, que não compensou a média de crescimento anual de 2001 a 2011, que foi de 1,34%. No mesmo período, houve uma evolução de 8,8%. Até 2008 a taxa de homicídios vinha decrescendo, a partir desse momento começou a haver um novo crescimento até 2010-2011. Foram registradas 27,1 mortes para cada 100.000 habitantes, com uma estimativa populacional de 192.379.287 habitantes, segundo o IBGE. A média europeia é de 3 mortes para cada 100 mil. Brasil, 27,1! Apesar de atingir certa estabilidade, vivemos há décadas uma epidemia de homicídios no país, com taxas superiores a 10 mortes por 100 mil habitantes, que são consideradas como epidêmicas pela ONU. O mais terrível é saber que nossa “cegueira moral” (Peter Singer) não nos permite ver essa chocante realidade, que tem origem na cultura do parasitismo, trazida para cá em 1500! *Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Menos crimes… nos países desenvolvidos

A matéria de capa da revista The Economist (20/7/13), que mostra a redução dos crimes em todos os países desenvolvidos, evidencia o quanto o parasitismo depredador, praticado pelos criminosos pobres assim como do colarinho branco, faz toda a diferença na questão da violência e da corrupção. Quanto mais parasitas tem o país, mais crimes acontecem. Porque o parasitismo depredador vive de delitos. Diante da inexistência de uma política preventiva primária (melhores condições socioeconômicas), é grande a quantidade de jovens marginalizados que ingressam no crime por falta de oportunidades ou por ser a opção mais fácil (mais parasitária). Por falta de uma política preventiva secundária, que crie obstáculos ao crime do colarinho branco (corrupção, fraude em licitações, sonegação fiscal, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, compra de congressistas etc.), é muito grande a quantidade de parasitas sociais engravatados, incluindo-se aí, evidentemente, quase toda classe política, que se dedicam ao crime (à corrupção), como estilo permanente de vida. Ganham a vida parasitando, sobretudo as tetas do governo. Conclusão: no Brasil e na América Latina todos os crimes estão aumentando. Até dezembro de 2012, segundo o InfoPen, mais de 20 mil pessoas cumpriam pena no Brasil por estupro e atentado violento ao pudor. Desses, 20.426 era do sexo masculino e 197 do sexo feminino. Isso significa 3,7% da população carcerária, ou 3752 a cada 100.000 presos. Somente de janeiro a abril de 2013, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República recebeu 46.111 denúncias, sendo 28% delas (ou seja, 12.856) para relatar a ocorrência de violência sexual. Os crimes sexuais estão tendo aumento a cada ano (especialmente no Estado de São Paulo). Milhões são gastos anualmente na construção de presídios e unidades para adolescentes em conflito com a lei, investimentos que ultrapassam de longe a construção de escolas, centros esportivos e recreativos para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. A repressão tem mais atenção que a prevenção primária. Segundo o IPEA, estima-se que os gastos com segurança e com a violência no Brasil girem em torno de R$ 200 bilhões a cada ano para suprir os custos exigidos ao país pela escalada da criminalidade. Algo em torno de 5% de toda a riqueza gerada internamente. Um cálculo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que somente o segmento segurança representou quase R$ 50 bilhões em despesas em 2010, enquanto em 2003, significava menos da metade deste valor, R$ 22,6 bilhões. O problema é que grande parte desse investimento é destinado a ações de punição, como por exemplo, campanhas de bônus para policias que prendem mais. Falta polícia técnica para solucionar os crimes, juízes e tribunais para que os milhares de processos parados possam ser julgados, motivo pelo qual quase 40% da população carcerária brasileira é de presos provisórios, causando superlotação e condições precárias de vida para esses presos. Dentro dos presídios, são poucos os que exercem alguma atividade laboral ou educacional, dificultando sua reinserção na sociedade ao final da pena. Não há políticas eficientes no que tange as drogas, e milhares de usuários são presos por porte de drogas, quando poderiam estar reabilitados socialmente, se houvessem mais programas de reabilitação. Assume-se que aquele que está em privação da liberdade pagará pelos seus crimes enquanto lá estiver, mas não possibilitamos que esses presos sejam realmente reabilitados a voltar para a sociedade, ao contrário, nossa sociedade acredita que quanto pior o tratamento ao preso, melhor. Situação que pode levar, como já divulgado anteriormente, a um índice de reincidência que gira em torno de 70% no Brasil. Ao contrário do que vem acontecendo em diversos países, jamais vamos conseguir reduzir as altas taxas de criminalidade enquanto priorizarmos a punição em detrimento da prevenção, enquanto jovens crianças e jovens estiverem fora das escolas e com a ideia, típica de quem não tem escolaridade, de que bandido bom é bandido morto. Com essa mentalidade, os países desenvolvidos diminuem os crimes. Nós, fechamos escolas e abrimos presídios e cemitérios. *Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Mensalão e conchavos políticos corroem a confiança do cidadão

Em tempos de mensalões envolvendo vários partidos (PT, PSDB, PTB etc.), alguns como pagadores, outros como receptores, vale a pena uma reflexão de toda sociedade pensante, tendo como base noções elementares de política e de Ética. A política está no plano do ser (do que é). A Ética mora no plano do dever ser (como as coisas deveriam ser). Fazer política (no bom sentido) é, por exemplo, ir para as ruas e protestar civilizadamente contra as injustiças sociais e individuais. Fazer política no mal sentido é, por exemplo, usar o cargo público para “roubar” o dinheiro de todos. A Ética diz: não se comprometa com o erro, com o desvio, com o malfeito, com o tratamento desumano das pessoas. Em suma: não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você! Todos nós, que admiramos a Ética e os valores republicanos, gostaríamos que a política seguisse os princípios éticos citados. A desgraça é que, na prática, isso não acontece. Não existe coerência entre a teoria e a prática. Quem explicou tudo isso há 500 anos? Maquiavel. Ele disse que (a política) não é (ou nem sempre é) assim (em O Príncipe). O traço mais característico da política (diz Maquiavel) consiste na sua radical autonomia frente à ética e à religião. Entre o “ser” e o “dever ser”, o realismo político (Realpolitik) faz uma clara opção pelo “ser” (pelo que é). Quando coincide a prática com a Ética, tudo bem. Se não coincide, fica valendo o realismo político (porque está em jogo o poder, que deve ser conquistado, mantido e expandido, muitas vezes a qualquer preço, fazendo “o diabo”, se o caso). Ocorre que o exercício do poder, quando não é feito em nome dos interesses da nação, sim, dos ganhos privados ou partidários, entra em rota de colisão com a Ética. Um exemplo: quando Lula, para facilitar sua governança, forjou consenso com Sarney para livrá-lo da cassação no Senado (Marcos Nobre, Valor Econômico de 18.06.13, p. A8), pisoteou na Ética. Pode não parecer, mas isso vai minando as ligas de coesão da sociedade; vem daí um sentimento de revolta e de impotência, que costuma desaguar em manifestações populares. Enquanto a política não se adequar à Ética e enquanto a economia não se subordinar a uma política ética, de justiça social, o planeta terá pouca chance de evolução sustentável e de convivência pacífica (lá na Declaração de Filadélfia, de 1944, já estava escrito: “A pobreza, em qualquer lugar, constitui um perigo para a prosperidade de todos”). A podridão da política, de qualquer modo, não pode nos contaminar. As parábolas são sempre fontes de reflexão. São narrativas breves que explicitam ocorrências da cultura de um povo, que nos levam a raciocinar sobre questões morais, às vezes muito complexas. Conta-se (cf. Alexandre Rangel, As mais belas parábolas de todos os tempos) que um velho mestre vivia com seus discípulos em um templo muito arruinado. Viviam de esmolas e doações. Num determinado dia o mestre disse para seus discípulos: “Cada um de vocês devem ir à cidade e roubar bens que serão vendidos e, assim, arrecadaremos dinheiro para reformar nosso templo. Vocês não podem ser vistos por ninguém”. Os discípulos ficaram espantados, pensaram no quanto isso poderia manchar suas reputações. Foram orientados para praticar atos ilegais e imorais. Roubar é uma coisa muito errada! A causa é boa, mas o ato é extremamente imoral. No final, todos foram para a cidade, menos um deles. O mestre perguntou: – Por que você ficou para trás? O discípulo respondeu: – Eu não posso seguir as suas instruções para roubar onde ninguém esteja me vendo. Não importa aonde eu vá; sempre estarei olhando para mim mesmo. Meus próprios olhos irão me ver roubando”. O sábio mestre o abraçou e disse: “Eu estava testando a integridade dos meus discípulos e você é o único que foi aprovado”. Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Mensalão, embargos infringentes e duplo grau de jurisdição

Na seção de hoje (5/9/13) o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a possibilidade de embargos infringentes, contra decisão do STF, em caso de competência originária (casos julgados originariamente em razão do foro por prerrogativa de função). Fomos honrados, Valério Mazzuoli e eu, com a citação por ele da nossa doutrina a respeito do duplo grau de jurisdição (aliás, trata-se de citação feita originalmente pelo min. Celso de Mello, que foi reproduzida no voto do min. Joaquim Barbosa). Duas observações importantes: (a) eu, particularmente, apesar de todos os argumentos contrários, discordo do min. Barbosa e entendo que os embargos infringentes são cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande); (b) Valério Mazzuoli e eu afirmávamos na terceira edição do nosso livroComentários à CADH (RT) que o sistema europeu (europeu!) não admite o duplo grau de jurisdição quando o caso é julgado pela máxima corte do país. Vamos aos nossos argumentos e fundamentos: (a) Por que entendendo cabíveis os embargos infringentes? De acordo com a minha opinião, não há dúvida que tais embargos (infringentes) são cabíveis. Dois são os fundamentos (consoante meu ponto de vista): (a) com os embargos infringentes cumpre-se o duplo grau de jurisdição garantido tanto pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (art. 8 , 2, “h”) bem como pela jurisprudência da Corte Interamericana (Caso Barreto Leiva); (b) existe séria controvérsia sobre se tais embargos foram ou não revogados pela Lei 8.038/90. Sempre que não exista consenso sobre a revogação ou não de um direito, cabe interpretar o ordenamento jurídico de forma mais favorável ao réu, que tem, nessa circunstância, direito ao melhor direito. Haveria um terceiro argumento para a admissão dos embargos infringentes? Sim. A esses dois fundamentos cabe ainda agregar um terceiro: vedação de retrocesso. Se de 1988 (data da Constituição) até 1990 (data da lei 8.038) existiu, sem questionamento, o recurso dos embargos infringentes (art. 333 do RISTF), cabe concluir que a nova lei, ainda que fosse explícita sobre essa revogação (o que não aconteceu), não poderia ter valor, porque implicaria retrocesso nos direitos fundamentais do condenado. De se observar que tais embargos, no caso de condenação originária no STF, cumprem o papel do duplo grau de jurisdição, assegurado pelo sistema interamericano de direitos humanos. Pelos três fundamentos expostos, minha opinião é no sentido de que o Min. Joaquim Barbosa (que já rejeitou os embargos infringentes de Delúbio) não está na companhia do melhor direito. O tema vai passar pelo Plenário, provavelmente na próxima seção (de 12/9/13). A controvérsia será imensa (ao que tudo indica). (b) Cabimento do duplo grau de jurisdição Dentro de poucos dias sairá a 4ª edição do nosso livro Comentários à CADH(RT). Nela, sobre o cabimento do duplo grau de jurisdição no sistema interamericano de direitos humanos, esclarecemos (Valério Mazzuoli e eu) o seguinte: “As duas exceções ao direito ao duplo grau, que vêm sendo reconhecidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais europeus [europeus!], são as seguintes: (a) caso de condenação imposta em razão de recurso contra sentença absolutória; (b) condenação imposta pelo tribunal máximo do país. ([1]) Mas a sistemática do direito e da jurisprudência interamericana é distinta [agregamos essa parte na 4ª edição, porque agora sabemos o que pensa a CIDH]. Diferentemente do que se passa com o sistema europeu, vem o sistema interamericano afirmando que o respeito ao duplo grau de jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que se trate de condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas no sistema interamericano em relação ao duplo grau de jurisdição”. “A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF, ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Pacta sunt servanda: ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos”. “De forma direta a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão), porém, de forma indireta sim. No famoso “caso mensalão” o tema foi amplamente discutido. Pediu-se, no princípio do julgamento, a separação dos processos em relação aos réus que não contavam com foro especial por prerrogativa de função. Por maioria e contrariando sua própria jurisprudência, deliberou o STF não separar os processos. Todos foram julgados em instância única (no STF). E agora vão questionar essa decisão no sistema interamericano, com grande chance de sucesso. Por quê?” “Porque não é verdade que Corte não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF ou que as sanções da Corte seriam basicamente indenizatórias. Nada mais equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas, que revelam formação jurídica eminentemente legalista”. “No caso Barreto Leiva contra Venezuela a Corte, em sua decisão de 17.11.09, apresentou duas surpresas: a primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa”. “Esse precedente da Corte Interamericana encaixa-se como luva ao processo do mensalão. Mais detalhadamente, o que a Corte decidiu foi o seguinte”: “Se o interessado requerer, o Estado (Venezuela no caso) deve conceder o direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade. No segundo julgamento, caso se verifique que o anterior foi adequado ao Direito, nada há a determinar. Se decidir que o réu é inocente ou que a sentença não está adequada ao Direito, disporá sobre as medidas de reparação em favor do réu.” “A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função”. “A parte mais enfática da decisão foi a seguinte: “A Corte, tendo em conta que a reparação do dano ocasionado pela infração de uma obrigação internacional requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento da situação anterior, decide ordenar ao Estado que brinde o senhor Barreto Leiva com a possibilidade de recorrer da sentença citada”. *Texto longo. Continue lendo em: www.atualidadesdodireito.com.br/lfg

[1] . Cf. Jugo, Gabriela. El derecho de recurrir la sentencia penal condenatória… Los derechos humanos en el proceso penal. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2002, p. 249 e ss.(especialmente p. 290).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Mensaleiros vão ganhar, mas apanharão muito

Com placar empatado (5 a 5) o voto decisivo sobre o cabimento (ou não) dos embargos infringentes no caso mensalão será do ministro Celso de Melo, para quem tais embargos são cabíveis: “A garantia da proteção judicial efetiva acha-se assegurada, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal (…) pela possibilidade que o art. 333, inciso I, do RISTF [Regimento Interno do STF] enseja aos réus, sempre que o juízo de condenação penal apresentar-se majoritário. Refiro-me à previsão, nosprocessos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, de utilização dos ’embargos infringentes, privativos do réu, porque somente oponíveis a decisão ’não unânime’ do Plenário que tenha julgado ’procedente a ação penal’”(voto proferido em 2/8/12). Não há impedimento para ele mudar de opinião, mas esse não é o perfil do decano do Tribunal, ministro Celso de Mello, um dos mais brilhantes de toda a história do Judiciário brasileiro. A lei 8.038/90 revogou o art. 333, I, do Regimento Interno do STF? Veja o que o ministro escreveu:Entendo, não obstante a superveniente edição da Lei n 8.038/90, que ainda subsiste, com força de lei, a regra consubstanciada no art. 333, I, do RISTF [Regimento Interno do STF], plenamente compatível com a nova ordem ritual estabelecida para os processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal“. Em resumo, os mensaleiros devem ganhar os embargos infringentes, mas podem não levar nada, porque uma coisa é a forma, outra o conteúdo. Na forma Celso de Mello, ao que tudo indica, vai garantir os embargos infringentes. No conteúdo, no entanto, vai bater duríssimo no esquema organizado pelo PT, com a conivência de políticos sanguessugas, marqueteiros e banqueiros, que são (segundo as palavras do citado ministro) “quadrilheiros da república”, “bandidos que dilapidam a coisa pública”, “bandoleiros que confundem o partido com o Estado” e por aí vai. Que se preparem os réus já julgados como parasitários da coisa pública, que a governam para satisfação dos seus interesses partidários ou privados. Todo massacre contra suas desonestidades ainda não foram nada. Não se pode esquecer que 2014 é ano eleitoral. As novas sessões de tortura moral serão deprimentes para os réus, inequivocamente contundentes, verdadeiras devassas públicas, em pleno pelourinho televisado, porque essa é a maneira moderna de ritualizar a velhíssima cerimônia do “bode expiatório”, em seu significado original. Tratava-se de um ritual religioso do antigo povo de Israel, que consistia no seguinte: para purificar a nação, os pecados que todos cometemos, dois bodes eram levados ao sacrifício, anualmente. Um era sacrificado pelo sacerdote, junto com um touro, como oferenda a Deus; o outro (o “bode expiatório”) era sacrificado para descarregar todas as culpas do povo judeu. Era entregue ao Diabo e abandonado no deserto, mas acompanhado de insultos e pedradas. Ele carregava todos os pecados da comunidade, ou seja, carregava todos os desvios e malfeitos da população. A cerimônia do “bode expiatório” até hoje é vista como purificadora e necessária, para nos livrar das culpas que carregamos ao longo do ano pelos nossos pecados. Quanto mais massacrantes forem as novas sessões do STF (e o serão), mais sensação de purificação acontece (a mídia, claro, para “lavar a alma do povo”, cumprirá seu papel nessa profunda devassa moral, só iniciada ontem no plenário pelo Ministro Gilmar Mendes). Quais benefícios os mensaleiros podem obter com os embargos infringentes? Nenhum, se todas as condenações forem mantidas intactas. Absolvição, naqueles crimes em que foram condenados, mas com quatro votos favoráveis. Também pode haver mero ajuste da pena, sem nenhuma consequência maior (diminuição da pena em alguns meses) ou com a consequência da prescrição (se a pena for rebaixada para 2 anos ou menos). A chance de absolvição no crime de quadrilha ou bando, no entanto, é grande. Por quê? Porque aos quatro ministros que já votaram pela absolvição nesse crime (Lewandowsky, Toffoli, Cármen Lúcia e Rosa Weber) dois votos outros podem formar maioria: Teori Zavascki e Luís Barroso. Essa chance existe. Eliminando-se o delito de quadrilha, José Dirceu, Delúbio e João Paulo Cunha cumprirão suas penas em regime semiaberto. Todos os demais, mesmo com a absolvição nesse crime, cumprirão e pena em regime fechado. A perda do mandato dos parlamentares será mantida. Mas será automática ou depende de ato da Mesa da Casa Legislativa? Esse ponto vai ser muito debatido. Deve preponderar a mera declaração da Mesa da Casa da perda do mandato (voto último do Barroso).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Minirreforma eleitoral e novos protestos

Se nos faltassem motivos para retornar às ruas, o que não é o caso num país em que a confiança nas instituições está se desmoronando a cada dia, bastaria dar uma olhada na minirreforma eleitoral que está tramitando na Câmara dos Deputados. Já para as próximas eleições pretende-se flexibilizar as prestações de contas dos candidatos e das suas legendas e, ao mesmo tempo, liberá-los da demonstração detalhada dos gastos. Objetiva-se ainda mudar as regras da apresentação das contas para a Justiça, liberar as propagandas na mídia impressa, admitir propaganda paga na internet, imunizar o máximo possível os candidatos dos crimes eleitorais, a Justiça eleitoral só poder ver aspectos “formais” das contas apresentadas, dispensar da apresentação dos programas eleitorais, reduzir a multa para as doações ilegais etc. Tudo está sendo feito para favorecer a perpetuação do abuso do poder econômico-financeiro, isto é, para que ele continue instrumentalizando (manobrando) o poder político, com patente violação da sagrada regra da igualdade de oportunidades eleitorais. A desfaçatez das propostas constitui estímulo mais do que suficiente para irmos às ruas novamente, como reconheceu editorial do O Estado de S. Paulo de 02.08.13, p. A3. Um dos mais graves problemas dos países em processo de modernização (emergentes), como o Brasil, é que neles não faltam somente “alimentos, alfabetização, educação, riqueza, renda, saúde, produtividade e uma comunidade política forte assim como um governo com eficiência, autoridade e legitimidade” (Huntington, A ordem política nas sociedades em mudança, p. 14), sim, sobretudo, a emancipação moral e ética, que conte com força suficiente para reconquistar a confiança dos cidadãos. Nos tempos modernos, falta exemplaridade e sobra vulgaridade. A consequência nefasta do apagão ético dos políticos, que mina os tecidos unificadores das relações sociais, conduz inevitavelmente à inexistência do senso de comunidade política, o que leva cada dirigente, cada indivíduo, cada grupo, cada partido político e cada um dos políticos a buscar atingir apenas os seus próprios objetivos materiais imediatos, e a curto prazo, sem qualquer consideração pelo interesse público comum. Como adeptos do individualismo da tradição filosófica liberal, não veem a sociedade senão como resultado de átomos sociais, regidos pelo condutor egoísta do “cada um para si e Deus para todos”, perseguindo-se exclusivamente seus interesses particulares, que seriam suficientes para integrar e desenvolver a “polis”. Já com os primeiros sinais de refluxo dos protestos, os políticos começam a abandonar a agenda positiva (a que atende os clamores sensatos das ruas) para retornarem à tendencial negatividade da sua rotina frequentemente trambiqueira, ou seja, votação de privilégios e benefícios para eles mesmos. Alguns dirigentes políticos não estão entendendo que o termômetro da saturação do povo brasileiro chegou ao seu limite máximo (conforme a 114ª pesquisa do CNT/MDA, realizada em julho de 2013, a insatisfação com a corrupção – principal causa dos protestos – chegou a 55%).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ministro Barroso caiu numa armadilha e virou legislador

O passado do ministro Barroso não permite qualquer tipo de questionamento sobre sua competência e honorabilidade. Mas ele é um ser humano, logo, também pode se equivocar. Na verdade, ele se meteu numa grande enrascada ao decidir que o poder de decretar a perda do mandato, no caso de parlamentar corrupto condenado criminalmente, competiria ao próprio Parlamento (e não ao STF). No século 6 a.C., Esopo escreveu incontáveis fábulas morais. Dentre elas, esta (veja Folha de 1/9/13, Ilustríssima, p. 8): “Uma lebre sentiu sede e desceu num poço para beber da água. Após haver-se fartado da deliciosa bebida, ia sair de lá quando se deu conta de que estava confinada, pois não tinha como galgar a subida, e começou a ficar apreensiva. Nisso, uma raposa veio ter ali também e, ao deparar com ela, disse: ’Realmente você se meteu numa grande enrascada! Pois devia primeiro resolver como iria sair do poço e, só depois, descer dentro dele”. O ministro Barroso não podia imaginar que sua decisão geraria a confusão que gerou no caso Donadon, tendo a Câmara dos Deputados, malandramente, mantido o mandato do deputado que está preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos. Ou seja: não pode votar nem ser votado, mas continua deputado federal. Mais uma singularidade que só se encontra no Brasil, ao lado das jabuticabas, claro. O corporativismo, que é filho do parasitismo, não encontra limites éticos quando corruptos devem julgar malandros! Mas o ministro Barroso não é a lebre do conto de Esopo. A lebre não tinha como sair da enrascada que se meteu, salvo se se transformasse em raposa. O ministro, acuado pela imoralidade ímpar do Parlamento brasileiro, achou uma saída: assumiu as funções legislativas e passou a legislar. Vejamos os detalhes da sua técnica e construção legislativas: A competência para decretar a perda do mandado de parlamentar malandro já condenado criminalmente pelo STF é da Casa Legislativa respectiva (aqui o ministro já caminhava fora do melhor direito, mas ainda estava dentro dos binários interpretativos do ordenamento jurídico). Porém (agora vem a nova regra legislativa saída da cabeça do ministro), “quando se tratar de deputado cujo prazo de prisão em regime fechado exceda o período que falta para a conclusão do seu mandato, a perda se dá como resultado direto da condenação”. Onde está escrito isso no ordenamento jurídico brasileiro? Em lugar nenhum. Quem inventou essa nova regra jurídica? O ministro Barroso. Por que ele fez isso? Porque chegou no fundo do poço a imoralidade do Parlamento brasileiro ao manter o mandato de Donadon. Podia fazer isso? Jamais, porque ministro não é legislador. Houve ativismo judicial positivo ou substitutivo? Claríssimo. Mas tudo foi feito para se corrigir uma injustiça brutal? Sim. Mas os fins justificam os meios? Eis a questão. Qual a consequência da nova regra jurídica inventada por Barroso? A seguinte: se sua regra só vale para quem está em regime fechado, ela teoricamente beneficiaria José Genoíno, Valdemar Costa Neto e Pedro Henry, porque foram condenados ao regime semiaberto. Só teoricamente (porque eles perderam o mandato). Só para raciocinar: como pode casos substancialmente idênticos (dos mensaleiros, do senador Cassol, de Donadon), onde todos foram condenados criminalmente por desvio de dinheiro público, com violação grave de dever funcional, receber tratamentos diferenciados? Há alguma saída inteligente para tudo isso dentro do STF? Sim. Qual? Recolocar o assunto em pauta e redefinir a posição majoritária do STF, nos termos do que ficou decidido no caso mensalão (que coincide, em linhas gerais, com a proposta de emenda constitucional do senador Jarbas Vanconcelos, que tramita pelo Senado). A melhor coisa que um juiz deve fazer no exercício da jurisdição é seguir o ordenamento jurídico vigente e não ficar inventando regras novas, posto que trazem muita insegurança.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ministro Marco Aurélio e a opinião pública

Ao apelar para o quase consenso da opinião pública, no seu voto contra os embargos infringentes, o Ministro Marco Aurélio gerou muita polêmica no meio jurídico. Fora do mundo jurídico o apoio popular e midiático ao seu argumento foi generalizado. O problema é que a Lei Orgânica da Magistratura e a Constituição brasileira não autorizam que o juiz decida de acordo com a opinião pública. Com frequência o que ele decide está em consonância com a vontade da maioria. Mas pode ser o contrário. Quando o STF admitiu o aborto anencefálico ou a utilização de células tronco ele contrariou boa parte da população. E por que essas duas normas jurídicas (Lei Orgânica e Constituição) assim procedem? Porque a legitimação do juiz, como diz Ferrajoli (Derechos y garantias – La ley del más débil), “não deriva da vontade da maioria, cujas leis são dela expressão. Seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. Nisso reside a legitimidade democrática do juiz, derivada da sua função de garantia dos direitos fundamentais, sobre a qual se ancora a chamada ’democracia substancial’”. Nenhum debate jurídico no Estado democrático de direito, sob pena de grave ofensa aos próprios fundamentos da democracia evoluída, pode descambar para a desabrida argumentação política e populista (essa impossibilidade também está no nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013). Somente no sistema político tendencialmente demagógico, dizia Aristóteles, “a soberana é a massa, não a lei”. Todo o poder emana do povo, é verdade, mas a Constituição brasileira não aceita sua opinião como argumento jurídico porque o povo nem sempre é homo sapiens (o julgamento de Jesus Cristo basta como prova disso). Quando o juiz invoca a opinião popular como fundamento do seu voto ele necessariamente, nesse caso, considera o povo como totalidade, como se fosse uma realidade homogênea. Quando um juiz submete seu julgamento à opinião pública resta sempre saber a qual parte dela está se referindo, porque a opinião pública nunca é unânime (sempre fracionária, fragmentada). No caso mensalão formou-se quase um consenso contra os mensaleiros (que, na minha opinião, devem mesmo ser condenados, em razão do parasitismo que praticaram), mas no caso concreto da admissibilidade dos embargos infringentes cabe notar que o tema é extremamente polêmico, tanto que a votação chegou a 5 a 5. De acordo com a visão jurídica predominante, os regimes totalitários e populistas é que consideram a vontade da maioria mais influente como a opinião do “todo”. Os “chefes” despóticos é que falavam e ainda falam em nome do povo inteiro (como se o povo inteiro concordasse com ele): assim procederam, por exemplo, Hitler, Mussolini, Franco, os militares na ditadura brasileira etc. Quando um juiz invoca a vontade popular (a famosa “opinião pública”) como fundamento de um voto ele consegue “a homologação dos condescendentes” (sobretudo as primeiras páginas dos jornais alinhados), mas isso avilta a inteligência dos dissidentes, que não pensam como ele e que passam a ser vistos como inimigos e traidores do “consenso forjado” pela momentânea maioria (Ferrajoli, Poderes selvagens). Essa é a razão pela qual a Constituição brasileira não permite que nenhum juiz, na discussão de um processo sob sua jurisdição, fuja das estreitas margens do ordenamento jurídico, aprovado pelos representantes do povo. Nisso está sua legitimação democrática. Do contrário, comporta-se o juiz como um político e discursa como tal, correndo o risco de se enlamear na falta de credibilidade e de honorabilidade inerente a esta desqualificada classe, o que pouca gente no Brasil contesta (81% dos entrevistados pelo Ibope acham a classe política brasileira corrupta ou muito corrupta).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – No circo econômico há faíscas, mas ainda não está pegando fogo

Normalmente os protestos massivos, inclusive em rede, nascem para derrubar um ditador (luta pela liberdade: foi isso que ocorreu no Egito, por exemplo, contra Mubarak; isso também ocorreu no Brasil contra a ditadura militar) ou por causa de uma grave crise econômica local (luta pelo pão, pela sobrevivência imediata). Nossos protestos (na jornada de junho) não se encaixam nesses figurinos (nesses leitos de Procusto). Quem não captar a singularidade da nossa indignação massiva terá muita dificuldade em pensar nas soluções para nossos problemas. Considerando que minha preocupação é entender e desvendar todas as nuances dos protestos massivos de junho, não tenho intenção nem interesse em defender os petistas, mas, neste ponto, uma análise isenta e sincera nos conduz a afirmar que não parece correto (ou totalmente correto) assinalar que estamos vivendo uma séria crise econômica. Há problemas vários (sendo muito acertadas algumas críticas contra a condução da economia: muito centralizadora, intervencionista em excesso, protecionista, eleitoreira, populista, clientelista etc.), mas ainda não atingimos o estágio de uma grave crise econômica (como a do Egito, por exemplo). Luís Eduardo Assis (O Estado de S. Paulo de 08.07.13, p. B2), desde uma perspectiva prudente e sensata, foi ao ponto: “A economia brasileira não está em crise [ao menos não está em crise aguda; a prova disso é que ninguém saiu às ruas para pedir a queda do ministro da economia; nem a queda do governo pela ingovernabilidade econômica]; a inflação não escapou do controle [está sob sério risco de descontrole, visto que os mais pobres já sentem o seu peso no bolso, mas ainda está dentro dos patamares previstos]; não existe ameaça imediata de recessão [pode ser que o PIB não cresça o que se esperava – 3% -, mas ninguém está afirmando que o trem da economia, que está lento, vai começar a andar para trás]; Nem mesmo o economista mais infausto deixa de admitir que o PIB de 2013 crescerá mais do que no ano passado [por ora, esse é o quadro; o PIB baixo, aliás, não foi o alvo central dos protestos]; a taxa de desemprego aberto (5,8% em maio) é uma das mais baixas da história e causa inveja aos países ricos [mas os sinais de maio indicam que vamos ter complicação nesse item]; A inflação mensal acumulada nos últimos 12 meses é alta (6,5%), mas nos últimos dez anos ela superou esse patamar nada menos que 32 vezes. O saldo líquido de contratações e admissões com carteira assinada aponta a criação de 533 mil novos empregos em 2013. O custo da cesta básica em São Paulo representava 50% do valor do salário mínimo em maio, a mesma proporção registrada para a média dos últimos cinco anos. O rendimento médio real das pessoas ocupadas em 2013 ficou em R$ 1.864,44 nos primeiros quatro meses de 2013, 5,5% maior que o rendimento médio de 2010, ano de forte crescimento do produto. A inadimplência das pessoas físicas vem caindo sistematicamente depois de ter alcançado 6% dos empréstimos em maio do ano passado. O trem da economia não parou, mas está andando devagar Conclusão do articulista (Luís Eduardo Assis): “Devidamente torturados, portanto, os dados recentes da conjuntura confessam que não estamos diante de um quadro agudo de crise econômica. Mas isso não significa que tudo vai bem. Desde 2012 estamos vivendo uma forte reversão de expectativas. O trem continua andando para frente, mas a velocidade se reduziu drasticamente, forçando as pessoas a reagendarem seus compromissos. O PIB no período Dilma crescerá cerca de 6%, contra 43% na primeira década deste século. É muito pouco. A evolução do produto per capita desde 2010 está em 1,2% ao ano. Nesse ritmo demoraremos 60 anos para alcançar a renda per capita da Grécia, país que pouco serve para o imaginário do brasileiro”. A falta de confiança no futuro, em razão das baixas perspectivas de crescimento, sobretudo das classes D e C, constitui um dos fortes motivos dos protestos. O país do futuro, de repente, mostra uma roupagem de país sem futuro. Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – O novo paradigma da polícia conciliadora

Em um artigo anterior escrevi o seguinte: se alguém quiser conhecer uma polícia conciliadora de primeiro mundo já não é preciso ir ao Canadá, Finlândia, Noruega, Dinamarca ou Suécia. Basta ir a Bauru, Lins, Marília, Tupã, Assis, Jaú e Ourinhos (todas no Estado de São Paulo) (veja meu blog: blogdolfg.com.br). A polícia conciliadora está sendo desenvolvida pelo Necrim, que significa Núcleos Especiais Criminais. Pertencem à polícia civil do Estado de São Paulo. Paralelamente à clássica função judiciária (de investigação), foram instalados vários Necrims nas cidades mencionadas. É uma revolução no campo da resolução dos conflitos penais relacionados com os juizados especiais criminais (a conciliação é feita nos casos de infração de menor potencial ofensivo que dependa de ação privada ou pública condicionada). Os percentuais de sucesso são alvissareiros: Assis: 73,23%; Bauru: 90,28%; Jaú: 89,20%; Lins: 90,88%; Maríalia: 90,68%; Ourinhos: 92,79%; Tupã: 82,30% (veja monografia de L. H. Fernandes Casarini). Diante das profundas mudanças sociais ocorridas nas últimas três décadas, seria um erro crasso (das instituições públicas e sociais) continuar fazendo as mesmas coisas do mesmo jeito o tempo todo. Na atual sociedade pluralista, multiétnica, da informatização e das comunicações assim como das diversidades, impõe-se pensar em novos paradigmas, inclusive para as funções policiais. À velha cultura da investigação e da repressão, urge que se agregue (às polícias) a cultura integradora, que consiste em buscar solução para os conflitos de forma pacificadora e reparadora (restaurativa). Esse novo paradigma se distancia claramente dos outros, que são: (a) paradigma dissuasório (confiança de que a pena seja suficiente para prevenir delitos); (b) paradigma da ressocialização (prisão, com finalidade de readaptação do preso) e (c) paradigma do populismo penal (confiança no incremento das penas e do sistema penal como solução para problemas sociais – veja nosso livroPopulismo penal midiático: Saraiva, 2013). Vários países e organizações policiais já captaram os sinais dos novos tempos e estão utilizando a mediação ou a conciliação como método de gestão de conflitos (veja Rosana Gallardo e Elene Cobler, Mediacion policial, Valencia: Tirant lo blanch, 2012). Por que a adoção (ou o incremento) de um novo paradigma na função policial? Em primeiro lugar e desde logo porque a polícia conciliadora abre novo horizonte para a profunda insatisfação das corporações policiais, que já começam a perceber que a repressão não pode ser a única resposta para a gestão dos conflitos penais. Impõe-se descobrir as virtudes do “direito ao melhor direito”. A prevenção é muito mais eficaz que a repressão. “É melhor prevenir os crimes do que puni-los” (Beccaria). O que se pretende? É uma polícia eficaz que, paralelamente às suas clássicas funções, adote também (em relação a alguns crimes) a linha pacificadora, e que, por esse caminho, se legitime para a resolução dos conflitos. Com isso vai ser restaurada, antes de tudo, a autoestima do próprio policial, que precisa, desde logo, ter coragem para promover a mudança. “É insanidade ficar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes” (Einstein). A polícia conciliadora, feita sempre sob o acompanhamento de um advogado: ganha respeito da comunidade que, ao mesmo tempo, passa a colaborar mais com a função policial; ela está integrada na comunidade (sendo expressão da polícia comunitária); promove a interação entre as pessoas, ou seja, busca a paz, a pacificação social; dessa maneira consegue prevenir futuros delitos, cuidando-se, assim, de uma polícia de prevenção especializada; permite um melhor funcionamento da polícia judiciária (investigativa); alivia a sobrecarga da Justiça e do Ministério Público; restaura a força do controle social informal; inaugura um novo serviço de qualidade para a cidadania, difundindo valores éticos; não destrói a velha polícia investigativa e, mais importante, rompe o velho paradigma militarizado e hierarquizado da polícia que, muitas vezes, em lugar de uma conciliação olho a olho, continua seguindo o parâmetro da obediência cega. Polícia conciliatória, no entanto, existe tempo (exige boa formação, boa capacitação profissional), dinheiro (não muito), um espaço adequado para seu funcionamento (respeito às pessoas envolvidas no conflito), sólida estruturação jurídica e, sobretudo, mudança de mentalidade. Com nova mentalidade podem ser vislumbrados novos horizontes. Temos que ter uma postura otimista em relação aos projetos nos quais confiamos. Nenhum deprimido triunfou no mundo todo. Num mundo tão desencontrado, não há como não buscar algo melhor, mais compreensivo e mais dialogante. Vale aqui repetir uma história bastante conhecida: perguntaram a um velho e sábio índio de que maneira são compostos os seres humanos. Ele respondeu: “de um lado bom e de um lado mal”. Qual vence? “Aquele que você mais alimenta”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – O que leva um adolescente a matar sua família e se suicidar?

Quando imaginamos já ter visto tudo no campo da violência, eis que um adolescente, de 13 anos, surge como suspeito de ter matado os pais (policiais militares), a avó e uma tia-avó. Depois pegou o carro da mãe e foi à escola. Mais tarde retorna para sua casa e se mata. Tudo feito com uma habilidade que muitos adultos não possuem. A tendência primeira, de praticamente todo mundo, é não aceitar que tudo isso tenha ocorrido. Contraria a natureza imaginar que um filho possa matar seus pais. As investigações prosseguem, mas agora encontraram no carro um par de luvas, que pode fechar o item do exame residuográfico (nas mãos do adolescentes nada foi achado). As luvas podem ajudar a explicar os fatos. Caso tenha mesmo sido o menor o autor da tragédia, fica a pergunta: como pode um adolescente ser capaz de tamanha violência. Os psicólogos e criminológos têm um amplo campo de trabalho. Nós só temos condições de levantar hipóteses. A primeira: havia uma abundância enorme de armas de fogo na casa em que ele habitava. Se ele tinha contato frequente com essas armas, isso pode começar a nos oferecer pistas explicativas. Uma segunda tese: o mal está banalizado em toda América Latina (continente mais violento do planeta). Nossa sociedade é tida por alguns como a sociedade pós-moral. Não se ensina ética mais em praticamente lugar nenhum: nem em casa, nem nas escolas, nem nas instituições e muito menos nas televisões e na internet. A quantidade de informações que qualquer criança hoje possui não era comum nem sequer em adultos de 50 anos, há três décadas. As crianças estariam ficando adultas antes do tempo? O discurso do ódio teria tomado conta de praticamente todos os lares? Que importância tem na formação de uma criança esse discurso do ódio, se e quando praticado pelos pais? As polícias, no Brasil, diante da nossa guerra civil, são treinadas para matar. Antigamente esse era um apanágio do exército. Agora, todas fazem o discurso da morte (o Bope, inclusive, sai pelas ruas cantando suas canções do caveirão). Esse tipo de discurso teria influenciado o adolescente? A morte está banalizada na TV, na internet e, muitas vezes, na própria família. Os velhos valores da autoridade, da religião, da pátria, do coletivismo estão fora de moda. Não falamos mais em valores em praticamente lugar algum. Ao contrário. O que as TVs mostram, por exemplo, pode estar influenciando as crianças? Se vivemos na era da comunicação e da informação (Manuel Castells), faz todo sentido perguntar se grande parte da programação da mídia, destacando-se a policial e a sanguinária, poderia (ou não) estar concorrendo para o incremento da violência. Quanto dessa (muitas vezes nefasta) programação interfere na formação da personalidade das crianças? A criança que vê (muita) violência na TV será um adulto violento? Nos países mais avançados (ou seja: nos países em que “a besta humana já está se transformando num animal domesticado”, como dizia Nietzsche (A genealogia da moral, p. 46), tudo isso está sendo discutido diuturnamente: fala-se em “código deontológico”, respeito à ética, legislação dura, controle estatal etc. Nos países menos evoluídos e, em consequência, mais violentos e menos controlados (em que a “besta humana” ainda está longe de se ter transformado num “animal domesticado”), a polêmica raramente é posta em pauta, não tendo a população em geral muita consciência da problemática. Para se saber se a programação violenta interfere ou não na personalidade das crianças vale a pena ler o livro “Handbook of Children and Media”, de Dorothy Singer e Jerome Singer (org.), que é uma extensa coletânea de artigos sobre a relação da Criança com as Mídias. Gilka Girardello (veja no google “mídia e criança”) sublinhou (em relação ao livro), dentre outros aspectos, os seguintes: a) a relação das mídias com os medos, ansiedades e percepções de perigo das crianças, que é discutida por Joanne Cantor no capítulo 10. A autora conclui que de acordo com a somatória das pesquisas recentes, os conteúdos das mídias podem, sim, ter efeitos prejudiciais consideráveis sobre o bem-estar emocional das crianças. Ela lista as implicações disso para pais e educadores, e aponta a necessidade de medidas institucionais mais fortes para a proteção das crianças quanto aos efeitos adversos das mídias; b) os efeitos da violência televisiva sobre a agressividade das crianças,que é o tema do capítulo 11, escrito por Brad Bushman e L. Rowell Huesmann. Para eles, a violência nas mídias não é a causa central da agressividade e da violência social, nem mesmo sua causa mais importante. Eles afirmam, porém, que “as evidências cumulativas de pesquisa revelam que a violência nas mídias é um dos fatores que contribui significativamente para a agressividade e a violência em nossa sociedade” (223-4). No capítulo 12, Jo Groebel relata um estudo realizado pela UNESCO sobre aviolência nas mídias de uma perspectiva transcultural, a partir de um questionário proposto a 5 mil crianças de 12 anos de idade, em 23 países. O objetivo do estudo era identificar possíveis diferenças culturais, assim como a influência de diferentes experiências agressivas no ambiente real (guerra e criminalidade) e de diferentes ambientes midiáticos, sobre a relação entre as mídias e a violência. Dentre as muitas e importantes conclusões deste estudo, que é um dos mais amplos e profundos sobre o tema, destacam-se as seguintes: a) 91% das crianças da amostra tinham acesso a um aparelho de TV; a televisão é ainda a fonte de informação e entretenimento mais importante para as crianças do mundo, se desconsiderarmos a interação face-a-face; b) as crianças do mundo passam em média 3 horas por dia diante da TV; c) quando solicitadas a indicar o nome de um adulto exemplar, a maioria das crianças (26%) citaram heróis de filme de ação, seguidos por astros pop e músicos (18,5%). Cerca de 90% das crianças disseram acreditar em (um) deus; d) o maior desejo de 40% das crianças era ter uma família (…) estável; e) cerca de um terço das crianças entrevistadas viviam em contextos sociais problemáticos e com altos índices de agressividade. Cerca de 1/3 das crianças que viviam nesses ambientes disseram acreditar que a maioria das pessoas no mundo é má (em comparação com pouco mais de 1/5 das crianças das áreas menos violentas); f) um efeito unidirecional entre as mídias e a violência “real” não pôde ser determinado a nível global, nem poderia ser testado empiricamente. Mas o estudo focalizou o papel das mídias “no complexo sistema da cultura e das experiências pessoais” (p. 265). As crianças das áreas mais violentas relataram uma maior semelhança entre sua realidade e o que veem na televisão; g) um herói tipicamente transcultural é “O Exterminador”, vivido por Arnold Schwarzenegger: cerca de 88% das crianças do mundo – a julgar pela amostragem da pesquisa – o conhecem. Das crianças em contextos violentos, 51% gostariam de ser como ele; nos contextos menos violentos, apenas 37% das crianças gostariam de ser como ele. Em suma, concluem os autores, “Combinada com a violência real que muitas crianças experimentam, existe uma alta probabilidade de que orientações agressivas e não pacifistas estejam sendo promovidas. Mas mesmo em contextos de baixa agressividade o conteúdo violento das mídias é apresentado em um contexto que o valoriza. Apesar de as crianças lidarem de formas diferentes com esse contexto em diferentes culturas, a presença transcultural do problema reflete o fato de que a agressão é interpretada como uma boa solução para os problemas em diversas situações.” (p. 267) As programações violentas da mídia brasileira, incluindo-se a exploração dramatizadora dos seriados policiais, transmitem “orientações agressivas e não pacifistas”, ou seja, não pregam a cultura da não-violência, ao contrário, incrementam a cultura da violência. Se isso já é muito sério em países mais pacíficos (que adotam a cultura do “tabu do sangue”, como é o caso da Europa onde a taxa de homicídios é de 3 para cada 100 mil habitantes), é de se imaginar algum tipo de efeito negativo turbinado quando se trata de um país como o Brasil (27,3 mortes para 100 mil habitantes), que desde sua origem é extremamente violento – veja F. Weffort, Espada, cobiça e fé, que afirma: “Herdeiros da última Idade Média, somos fruto de um dinamismo renascentista ibérico cuja peculiaridade foi a de se expressar na conquista do mundo mais do que nas obras de arte. Nos primeiros tempos deste novo mundo nascido da violência, da cobiça e da fé, o que mais surpreende é o quanto sua história ajuda a compreender os tempos atuais” (p. 11).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – O tsunami dos protestos massivos não foi captado antecipadamente

Na presidência da República o serviço de inteligência não antecipou absolutamente nada sobre as manifestações populares de junho de 2013 (J-13). O serviço de inteligência não funcionou (O Estado de S. Paulo de 23.06.13, p. A4). A jornada de junho tampouco foi prevista pelos meios de comunicação, partidos, instituições governamentais ou privadas. “A multidão, como sublinhou Suzana Singer, com seus gritos de protesto, deu um ’looping’ nessas certezas – de que o país estava bem – e deixou evidente que os canais de imprensa são insuficientes para captar as mudanças de humos na sociedade. Os jovens se sentem mal representados na mídia tradicional; há um abismo geracional” (Folha de S. Paulo de 30.06.13, p. A8). Ou seja: ninguém antecipou a revolta popular mais contundente e eletrizante, depois da redemocratização (1985). Por quê? Porque os órgãos de pesquisa encarregados de fazer flutuar o modelo econômico-financeiro injusto e desigual, que tomou conta de praticamente o mundo inteiro, mostravam, à primeira vista, um cenário favorável para os países emergentes. Pesquisa divulgada no dia 23.05.13, pela Pew Researcher Center, que é um instituto de pesquisa americano especializado em temas políticos, econômicos e sociais, apontava o seguinte: a maioria dos países centrais (com algum grau de desenvolvimento) estava insatisfeita com a sua economia; já os países emergentes se mostravam satisfeitos com os rumos que as suas economias vinham tomando. Foram aplicados questionários em 39 países, separados por três diferentes categorias – economias avançadas, mercados emergentes e países em desenvolvimento econômico, baseado nos grupos de renda do Banco Mundial, tipo de economia e classificação de especialistas. Em maio de 2013 a pesquisa dizia que, em média, 53% dos países com mercados emergentes acreditavam que suas economias iam bem, em comparação com 33% dos países pouco desenvolvidos e 24% de países com economia avançada. Estão particularmente negativas (as economias) em países Europeus como a França (9% de satisfação positiva), Espanha (4%), Itália (3%) e Grécia (1%). Participantes em mercados emergentes como China (88%) e Malásia (85%) disseram que a economia vai especialmente bem. No Brasil, 59% dos participantes da pesquisa se disseram satisfeitos com o país em termos econômicos. A Espanha foi o país entre os de economia avançada com maior diferença entre os anos de comparação. Em 2007, 65% dos entrevistados consideravam que a economia ia bem, já em 2013, apenas 4% tinha a mesma opinião, uma variação de 61 pontos percentuais. O Reino Unido que em 2007 tinha 69% de entrevistados satisfeitos com a economia, em 2013 teve uma queda de 54 pontos, registrando apenas 15% de satisfação. Já a Itália teve uma queda de 22 pontos, passando de 25% de satisfação para apenas 3%. A média de satisfação entre os países Entre os países em desenvolvimento também há um pessimismo. O Paquistão que em 2007 teve um nível de satisfação da economia em 59% apresentou uma variação de 42 pontos, registrando em 2013 apenas 17% dos entrevistados satisfeitos. O Egito, que teve uma diferença de 30 pontos, passou de 53% de satisfação em 2007, para 23% em 2013. Gana passou de 57% para 37%, registrando queda de 20 pontos na satisfação. Entre os países em desenvolvimento a média de satisfação foi de 49%, em 2007, e 25% em 2013, uma variação negativa de 24 pontos. Entre os países de mercado emergente, a maior variação foi do México, que registrou uma variação negativa de 13 pontos, passando de 51% em 2007 para 38% de satisfação em 2013. A Argentina passou de 45% em 2007 para 39% em 2013, quando registrou uma diferença de 6 pontos. A Rússia teve uma queda de 5 pontos na satisfação, passando de 38% em 2007 para 33% em 2013. Contudo, a China que teve o maior índice de satisfação, 82% em 2007 e 88% em 2013, teve um aumento de 6 pontos. Turquia, Malásia, Chile e Indonésia também tiveram alta. A Indonésia registrou o maior crescimento, 14 pontos entre 2007 e 2013. O Brasil registrou um índice de 59% de satisfação da economia em 2013, porém, foi impossível fazer uma comparação, já que não houve dados do país para 2007, assim como África do Sul que registrou 44% de satisfação em 2013. Embora tenha tido uma queda de 2 pontos, a média atual de satisfação dos países emergentes é a mais alta, 48% em 2013.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Organização criminosa: um ou dois conceitos?

Hoje (19/9/13) entra em vigor no Brasil a Lei 12.850/13, que cuida do crime organizado, que consiste em integrar, promover, participar ou financiar uma organização criminosa. Esta lei trouxe também o conceito de organização criminosa e a primeira polêmica é a seguinte: ela revogou ou não o conceito dado pela Lei 12.694/12? Que se entende por organização criminosa? Por força da Lei 12.850/13 a organização criminosa foi regrada da seguinte maneira (veja as primeiras considerações de Rômulo de Andrade Moreira, Fabrício da Mata Corrêa, Eduardo Cabette, Cezar Bittencourt e tantos outros no especial organizado pelo portal atualidadesdodireito.com.br; veja ainda os livros de R. Sanchez e Guilherme Nucci): “§ 1 Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. Está atendido o princípio da legalidade (porém, com reservas, em razão das expressões vagas que utiliza; o descumprimento da garantia da taxatividade parece evidente). De acordo com nosso entendimento esse novo conceito revogou o da Lei 12.694/12. A primeira definição de organização criminosa veio com a Lei 12.694/12? Sim. O art. 1 da Lei 12.694/12 criou a possibilidade de julgamento colegiado em primeiro grau, nos crimes praticados por organizações criminosas. No seu art. 2 está contemplada a definição de organização criminosa: “Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.” Esta lei não cominou nenhum tipo de sanção penal, logo, não criou o crime organizado. Deu o conceito de organização criminosa, para fins processuais, mas não criou o crime respectivo. O conceito de organização criminosa dado pela Lei 12.694/12 continua válido? Não. Num primeiro momento cheguei a imaginar o contrário (que os dois conceitos continuariam vigentes, tal como pensa Rômulo Moreira). Refletindo um pouco mais, estou concluindo que houve revogação do primeiro pelo segundo. O conceito dado pela Lei 12.694/12 visava a permitir o julgamento colegiado em primeira instância. Essa possibilidade (de julgamento colegiado em primeiro grau) continua. Mas, agora, o juiz tem que se valer do conceito de organização criminosa da Lei 12.850/13, pelo seguinte: é com esta nova lei que veio, pela primeira vez no Brasil, o conceito de “crime” organizado. O processo (julgado por juiz singular ou por juiz colegiado) existe para tornar realidade a persecução de um crime (ele é o instrumento da persecutio criminis in iuditio). O julgamento colegiado em primeiro grau é instrumento, não a substância. É a forma, não a matéria. Se o instrumento processual existe para tornar realidade o material, o substancial (o essencial), claro que esse instrumento deve estar conectado ao principal. O acessório segue a sorte do principal. Quando os juízes se reúnem coletivamente é para apurar e julgar um “crime organizado”. Eles não se reúnem para julgar a organização criminosa, isoladamente, que constitui apenas uma parte do crime organizado. O que importa para fins penais e processuais é o crime (não a parte dele). Se o conceito de crime organizado está dado pela nova lei, aos juízes competem seguir a nova lei, respeitando o seu conceito de crime organizado, que nada mais é que a soma dos requisitos típicos do art. 2 com a descrição de organização criminosa do art. 1 . Em síntese: doravante, somente pode haver julgamento colegiado em primeira instância quando presentes os requisitos do crime organizado dado pela nova lei (Lei 12.850/13). Desapareceu do ordenamento jurídico válido o conceito dado pela Lei 12.694/12. Concordamos com a tese de Cezar Roberto Bittencourt, Márcio Alberto Gomes da Silva, Sydney E. Dalabrida etc. A nova lei regulou a matéria (organização criminosa) de forma integral. Essa é uma das formas de revogação da lei anterior. Dois conceitos sobre a mesma essência só gera confusão. Também por esse motivo é melhor a interpretação do conceito único: o novo. Agregue-se um outro argumento, de política criminal: se o legislador, por razões de política criminal, optou na nova configuração legal pelo número mínimo de 4 pessoas, é preciso respeitar essa decisão política. E se ela integra o conceito de crime organizado, não como o juiz aplicar o conceito anterior da Lei 12.684/12, que foi construído sob a égide de outras escolhas de política criminal. A posterior derroga a anterior. Quais seriam as diferenças principais entre os dois conceitos de organização criminosa? Três se destacam: a Lei 12.694/12 fala em associação de três ou mais pessoas; a Lei 12.850/13 exige quatro ou mais pessoas. A primeira é aplicável para crimes com pena máxima igual ou superior a 4 anos; a segunda é aplicável para infrações penais superiores a 4 anos. Note-se: a primeira fala em crimes (que não abarcam as contravenções penais). A segunda fala em infrações penais (que compreendem os crimes e as contravenções penais). De qualquer modo, morreu o conceito da Lei 12.694/12. Mas essas diferenças perderam sentido na medida em que o conceito da Lei 12.850/13 revogou (de acordo com nosso entendimento) o dado pela Lei 12.694/12.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Origens dos protestos massivos

O Brasil e o mundo capitalista/consumista/neoescravagista estão enfrentando várias crises (do capitalismo radical e aético, do Estado-nação, da cultura e da ética, de representatividade, do Estado de direito e de confiança). Cada uma da sua maneira prestou sua contribuição para a eclosão do mais expressivo movimento social no Brasil, depois da redemocratização (o movimento está sendo batizado de jornada de junho). Como nos ensina M. Castells, (Redes de indignação y esperanza, p. 29), as raízes mais profundas desses movimentos globais estão na injustiça fundamental de todas sociedades, que são frustrantes da expectativa de justiça das pessoas, expressadas na “exploração econômica, pobreza desesperada, desigualdade iníqua, política antidemocrática, estados repressores, justiça injusta, racismo, xenofobia, negação cultural, censura, brutalidade policial, belicismo, fanatismo religioso (com frequência contra as crenças religiosas dos demais), negligência em relação ao nosso planeta (que é nossa única casa), indiferença pela liberdade pessoal, violação da privacidade, gerontocracia, intolerância, sexismo, homofobia e outras atrocidades presentes na extensa galeria de retratos que representam os monstros que somos (…) cabe agregar a dominação absoluta dos homens sobre as mulheres e crianças como base fundamental de uma injusta ordem social”. Quem está por detrás dos protestos massivos? Pessoas de carne e osso, e no plural (Castells), porque cada uma tem suas razões para ir às ruas. Pessoas com diferentes visões de mundo, crenças, filosofias, mas que, de repente, encontraram algo em comum. O quê? Na tentativa de buscar um eixo comum entre todos os manifestantes das ruas ou, pelo menos, uma explicação para essa surpreendente fenomenologia de massa, talvez nos ajudem palavras como insatisfação, frustração, indignação, ruptura, impotência, falta de esperança, ira, ansiedade, medo etc. Saem às ruas (falo daqueles que lutam por uma causa justa, não dos vândalos) os indignados (com sua situação pessoal, com o momento em que vive o país, com a economia local e mundial, com o péssimo funcionamento dos serviços públicos, com a descrença nas instituições, com a falta de futuro etc.) que querem exteriorizar sua ira, sua insatisfação, ainda que assumindo riscos enormes de um enquadramento penal – muitas vezes injusto – ou de uma violência policial descomunal e bárbara. Os protestos massivos são movimentos emocionais? Sem sombra de dúvida, sim. Como todos os movimentos sociais, o nosso tanto pode se arrefecer (perder força) como pode ganhar contornos progressivos inimagináveis (no campo político, social, econômico, trabalhista, institucional, cultural, educacional, jurídico etc.). De qualquer modo, não há como deixar de reconhecer que ele somente se tornou realidade porque sentimentos e emoções foram transformados em ação. Saiu da teoria e se transformou em algo prático (protestos nas ruas). Precisamente porque esses movimentos espontâneos constituem manifestações de sentimentos e emoções, no seu princípio, não existe mesmo um programa ou uma estratégia política (Castells). São movimentos apartidários, porque refutam os partidos políticos estabelecidos (o que não significa anti-partidário). Na verdade, como movimentos de contrapoder, eles tendem a recusar todos os poderes, sobretudo suas barbáries. São movimentos que possuem liderança, porém, sem líderes (ao menos no princípio). Quando surgem os líderes, o normal passa a ser construção de programas e estratégias políticas (porque é assim que as instituições funcionam dentro do estado democrático de direito).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Parasitismo

O trabalho escravo constitui o exemplo mais evidente de parasitismo social. O Brasil, onde a escravidão durou mais tempo (388 anos), continua sendo um país escravocrata (logo, parasita). Desde 1995 (diz o site da PEC do trabalho escravo), quando o governo federal criou o sistema público de combate a esse crime, mais de 42 mil pessoas foram libertadas do trabalho escravo no Brasil. No mundo, a estimativa da OIT é que sejam, pelo menos, 12 milhões de escravos. Não há estimativa confiável do número de escravos no país. Por isso, o governo não usa nenhum número. Na zona rural, as principais vítimas são homens, entre 18 e 44 anos. Na zona urbana, há também uma grande quantidade de sul-americanos, principalmente bolivianos. Nos bordéis, há mais mulheres e crianças nessas condições. Dos libertados entre 2003 e 2009, mais de 60% eram analfabetos ou tinham apenas o quarto ano incompleto. Ou seja, eram adultos que não estudaram quando crianças. Trabalho escravo também é filho do trabalho infantil. O Maranhão é o principal fornecedor de escravos e o Pará é o principal utilizador (sugador). As atividades econômicas em que trabalho escravo mais tem sido encontrado na zona rural são: pecuária bovina, desmatamento, produção de carvão para siderurgia, produção de cana-de-açúcar, de grãos, de algodão, de erva-mate, de pinus. Também há importante incidência em oficinas de costura e em canteiros de obras nas cidades. Uma das formas clássicas do parasitismo é o (parasitismo) social, que ocorre quando uma classe dominante (por exemplo: senhores de engenho), valendo-se dos seus privilégios, de forma indevida (injusta e/ou imoral, seja por meio da violência, seja por intermédio da fraude) suga (se enriquece ou obtém vantagem), mediante a apropriação ou a exploração, o trabalho (por exemplo: dos escravos) ou os bens da classe dominada (parasitada). Há várias outras formas de parasitismo, como o empresarial, o funcionarial, o situacional, o político etc. Sobre este fenômeno é fundamental a leitura de M. Bomfim, A América Latina. Desgraçadamente o parasitismo (em suas várias modalidades) faz parte da nossa formação cultural. É um dos males de origem do Brasil. Enquanto não eliminado ou drasticamente reduzido estamos condenados ao atraso, às barbáries, em suma, à ausência de civilização.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Passe livre para uso dos aviões da FAB

O Sapo e o Escorpião Certa vez, um escorpião aproximou-se de um sapo que estava na beira de um rio. O escorpião vinha fazer um pedido: “Sapinho, você poderia me carregar até a outra margem deste rio tão largo?” O sapo respondeu: “Só se eu fosse tolo! Você vai me picar, eu vou ficar paralisado e vou afundar.” Disse o escorpião: “Isso é ridículo! Se eu o picasse, ambos afundaríamos.” Confiando na lógica do escorpião, o sapo concordou e levou o escorpião nas costas, enquanto nadava para atravessar o rio. No meio do rio, o escorpião cravou seu ferrão no sapo. Atingido pelo veneno, e já começando a afundar, o sapo voltou-se para o escorpião e perguntou: “Por quê? Por quê?” E o escorpião respondeu: “Por que sou um escorpião e essa é a minha natureza.” A Folha de S. Paulo de 04.07.13, p. A11, cumprindo seu papel vigilante, noticiou que Henrique Alves mandou um avião buscar sua família em Natal (RN) para assistir ao jogo do Brasil no Rio de Janeiro. Renan Calheiros usou um avião para ir a um casamento. O Ministro Garibaldi Alves também foi ao jogo. São escorpiões. É da natureza deles o uso o da coisa pública, como se fosse bem privado. Patrimonialismo. Grande parcela do Brasil está mobilizada contra esse tipo de malversação do dinheiro público. Mas nada adiantou. É da natureza dos escorpiões políticos cravar o seu ferrão nas contas públicas, para satisfação de prazeres privados. Por conta disso tudo, não podemos esmorecer. No livro Ejemplaridad pública (Madrid: Taurus, 2009), Javier Gomá Lanzón procurou descrever as virtudes do político e do administrador público [para não incorrer em improbidades puníveis pelas leis], sublinhando que o “eu” (o estilo, o desempenho desse gestor da coisa pública) depende (a) dos costumes da polis (das cidades, das urbes) assim como (b) da orientação (de vida, de liberdade) que é dada em direção à virtude: mores (costumes) e virtus (virtudes). De uma certa maneira tudo isso já estava presente na obra de Aristóteles (Ética a Nicômaco), que gira em torno da seguinte ideia: “toda ação está dirigida a um fim, como toda função se inclina para um bem; o fim supremo do homem, perfeito e suficiente, é a felicidade; a ação humana que tem como finalidade a felicidade é a virtude perfeita ao longo de toda vida”. Se é dos costumes que nasce a ética, não se pode esperar do homem público vulgar um comportamento ético (e exemplar) se o seu meio, se o seu ambiente vital e profissional, respira maus costumes (corrupção, malandragem, apadrinhamento, patrimonialismo, nepotismo, fisiologismo, ganhos por fora, enriquecimento ilícito, compra de votos etc.). Como esperar virtuosidade [probidade] do homem público vulgar se a virtude não reside num só ato, sim, num estilo de vida, numa forma de “viver e de envelhecer”? A “polis” (para Aristóteles), mais que local para se assegurar a sobrevivência, seria o lugar para se viver bem e para praticar a virtude. Mas como esperar virtude de quem não é favorecido por um ambiente são, reto, correto? Uma das maiores crises da moderna democracia reside justamente na ausência (quase total) de costumes sãos, virtuosos, na “polis”. Diante da ausência de costumes moralizadores, que por si sós poderiam gerir a vida em comunidade, surge a necessidade da elaboração das leis, regidas pela lógica da coerção, da sanção (não porém da observância espontânea, que derivaria de um conjunto de bons costumes). Houve uma época em que não havia direito escrito (ius non scriptem, sine litteris). Hegel afirmava a superioridade dessa época, em relação à atual (onde abundam as leis). Rousseau afirmou: “Licurgo estabeleceu costumes que quase dispensavam agregar a eles leis. As leis (…) contêm os homens, sem mudá-los”. O que muda (ou orienta) o comportamento humano em profundidade não é a lei, sim, o costume (a ética). Faltando os costumes (a moralidade social) só resta esperar que a lei cumpra o papel de punir (coerção) as desviações assim como a de irradiar entre a população a sua força (“pedagógica”) moralizadora. Os costumes retos são muito mais profundos porque, mais que orientar o comportamento individual ou coletivo, “educam o coração”. Houve um período histórico em que os costumes chegavam a derrogar as leis (“vincere rationem et legem“, como afirmava o Imperador Constantino). Mas não é esse o momento que vive o direito na atualidade, sobretudo depois do Iluminismo (século XVIII), que deu ênfase à legalidade (todo direito está fundado na lei) e à codificação (esta sendo obra, sobretudo, de Napoleão). Pouco espaço ficou reservado para os costumes, como fonte do direito, depois da eclosão do legalismo estatal (ou estatalismo legalista), que foi secundado por Kelsen (que identificava a lei com a democracia, a lei com o direito, a legalidade com a legitimidade). A função pedagógica que a lei (com pretensão de durabilidade) deve desempenhar, agora mais que nunca (tendo em vista as sociedades complexas que vivemos), inclusive nas democracias modernas, só se consegue quando os seus termos estão em consonância com as aspirações (razoáveis) arraigadas da população. Neste caso a lei desenvolve pautas de conduta louvadas por todos, sendo suas desviações não só juridicamente senão, sobretudo, moralmente reprovadas. Se a lei de improbidade administrativa no Brasil não atingiu ainda seu potencial máximo de efetividade seguramente é porque, dentre tantos outros fatores, falta-lhe uma sólida base consuetudinária. “As leis são sempre vacilantes quando não se apóiam nos costumes; os costumes formam o único poder resistente e duradouro do povo” (dizia Tocqueville). “As leis, sem os costumes, são vãs”, dizia Horácio. Mas que tipo de costumes deve orientar a boa aceitação das leis? Claro que os costumes genuinamente democráticos (construtivos, cívicos, civilizadores). No que diz respeito à virtude, Javier Gomá Lanzón propõe, como hipótese de trabalho (como tese), a sua redefinição: de “virtude-participativa” (de Aristóteles) para “virtude-exemplaridade”. Não lhe parece correto separar a vida privada da vida pública, a casa e o trabalho da gestão pública. Cícero inseria, dentro do conceito de honestidade, quatro componentes: (a) sabedoria, (b) magnanimidade, (c) justiça e (d) decoro – decorum. Javier Goma propõe dar ao decoro o sentido de exemplaridade, como “uniformidade de toda vida e de cada um dos atos” (como dizia Cícero). Do administrador público (eleito ou concursado) o que se espera hoje, no mundo moderno e complexo que vivemos, é que seja sábio, magnânimo, justo e honesto, ou seja, exemplar. Quem foge deste padrão não só quebra a confiança que lhe foi depositada (pelos titulares da soberania democrática), como incorre em desviações sancionadas pela lei (pena que a lei, no nosso país, não tenha a eficácia que se espera dela).

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – PEC 37 foi rejeitada. E o que fazer com o crime organizado S.A.?

A rejeição da PEC 37 representa mais uma vitória histórica do movimento pró-moralização do nosso país, mas muitas lacunas continuam. Apesar do oportunismo do legislativo, o certo é que o povo unido, em torno de propósitos sensatos (não aloprados), tem uma força insuperável (nos estados democráticos). Ulisses Guimarães (pai da Constituição cidadã) disse: “o que mete medo em político é o povo na rua”. Estamos saboreando, prazerosamente, mais uma vitória. Primeiro foram os 20 centavos. Depois foi a vez do governador de SP cancelar o aumento dos pedágios. Agora chegou a vez da rejeição da PEC 37. É grande a emoção que muita gente está sentindo, mas, coisas muito sérias ficaram pendentes: (a) hoje o MP investiga por meio de uma resolução e resolução não é lei. É isso que sempre defendi, inclusive naquele meu artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 2012. Eu penso que, hoje, sem lei, o MP não pode presidir investigação. No Estado de Direito, a lei é uma garantia de todos. Logo, a rejeição da PEC 37 exige a elaboração urgente de uma lei que discipline com clareza essa investigação pelo MP, de forma a evitar todo tipo de abuso por parte dele, a começar pela falta de controle no arquivamento (acabar com o crime, na medida do possível, sim, porém, não de forma abusiva ou criminosa; não se pode matar um mostro e criar outro; todos que contam com poder tender a abusar dele; logo, limites, contenção, lei); enquanto não aprovada lei nesse sentido os advogados vão continuar contestando as investigações do MP (e, hoje, sem lei, com forte chance de anular tudo): (b) é imprescindível que todos os órgãos investigativos (Polícia federal, Polícia estadual, polícia científica, Coaf, Ministério Público, Banco Central, agentes da receita federal etc.), todos, estabeleçam (assim que possível) um consenso, bem como parcerias de esforços (complementares ou concomitantes) para combater o crime organizado, que está enraizado no poder público brasileiro corrupto até o último fio de cabelo. A CPI do Cachoeira, arquivada com um documento indecente de 2 páginas, é a prova inequívoca de que grande parcela dos políticos (bem grande mesmo) não é parte da solução do problema da corrupção, sim, parte do problema, porque está comprometida até à medula com o crime organizado, que é a fonte direta do indecente serviço público prestado para a humilhada e indignada população. É político desse tipo, ainda que tenha votado contra a PEC 37, que tem que ser varrido do Congresso Nacional. Constitui um erro sem precedente (no campo das investigações criminais) não ver que todos os órgãos públicos (polícia, Ministério Público, receita federal, Coaf, Banco Central etc.) devem somar suas energias, não se dividir, diante do crime organizado S.A. Todos os esforços de todas as instituições devem ser somados, porque é grande o desafio de combater o crime organizado privado ou público-privado. No mundo da economia submetida (em grande parte) ao crime organizado e à lavagem de capitais, lavagem essa que é feita, sobretudo (mas não exclusivamente), por alguns bancos norte-americanos e europeus, que internalizaram (naturalizaram) seus procedimentos lucrativos por meio de métodos duvidosos ou criminosos, tornou-se difícil distinguir o que é ganho lícito do que é ganho ilícito. Somente uma equipe muito especializada e afinada pode fazer frente a esse imenso poder econômico-financeiro que, sob a égide do capitalismo neoliberal ou de tradição escravagista (como é o caso do Brasil), levou a desigualdade e a desgraça a milhões de seres humanos hoje completamente excluídos da possibilidade de uma vida com mínima dignidade. Avante Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Perfil dos presos no Brasil em 2012

Os ricos também são delinquentes? Se olharmos para as pessoas que estão recolhidas nos presídios brasileiros rapidamente chegamos à conclusão (falsa) de que não. A prisão não é um referencial confiável para se saber quem comete crime no Brasil. Ela serve de referência para se saber quem vai para a cadeia. O mensalão (que envolve o PT), a corrupção na concorrência do metrô em SP (que envolve o PSDB), um milhão de outros casos criminais (que envolvem todos os demais partidos políticos, os políticos, grande parcela dos empresários etc.), as lavagens de dinheiro (que envolvem praticamente todos os bancos do planeta), os governos e ministérios (que envolvem as classes dominantes), o banco do Vaticano, sim, esses casos nos revelam que os ricos também são criminosos, gerando danos incomensuráveis para uma multidão de vítimas. Está crescendo no Brasil a taxa de encarceramento? Sim. Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do Ministério da Justiça, apontou um crescimento de 21,4% na população carcerária brasileira no período de 2008 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para cada 100mil habitantes, em uma população de 190.732.694 habitantes, de acordo com o IBGE. A taxa de presos por 100mil habitantes, que em 2008 era de 238,1 por 100mil habitantes, também apresentou crescimento de 20,6% no período. Há um grande déficit de vagas no sistema prisional? Sim. Muito inferior ao crescimento da população carcerária foi o crescimento no número de vagas no sistema penitenciário no mesmo período. Em 2008 existiam 296.428 vagas, número que em 2012 chegou a 310.687, um crescimento de apenas 4%, resultando em 1,8 presos por vaga. Mais de 240 mil presos estão recolhidos sem a vaga correspondente. Superlotação é o que caracteriza o sistema. Entre 2008 e 2012 houve aumento no número de presos provisórios? Sim. Outra taxa que continuou em ascensão em 2012 foi o número de presos provisórios. Dos 513.713 detentos custodiados no sistema penitenciário, 195.036 eram presos provisórios, ou seja, 37,9% do total de custodiados. Houve um crescimento de 25,1% no número de presos provisórios entre 2008 e 2012. Em 2012, essa população era de 94,5% de presos do sexo masculino e 5,5% do sexo feminino. No que tange o sistema de vagas a situação é ainda pior. Esses 195 mil presos estão distribuídos em 94.540 vagas, cerca de 2 detentos para cada vaga, um déficit de mais de 100 mil vagas. Quem são os presos? Em 2012, o sistema penitenciário brasileiro manteve o mesmo perfil de presos que nos anos anteriores. No que diz respeito à raça, cor ou etnia, os pardos eram, em 2012, maioria no sistema penitenciário com 43,7% de presença nas prisões brasileiras. Os de cor branca 35,7%, os negros 17%, a raça amarela 0,5% e os indígenas 0,2%. Outras raças e etnias apontaram 2,9% de presença. Segundo o próprio relatório do InfoPen, há um erro de cálculo nessa estática, registrando uma inconsistência de 28 mil pessoas no valor automático. Qual é o nível de escolaridade do preso? O nível de escolaridade entre a maioria dos presos, em 2012, era o Ensino Fundamental Incompleto (50,5%). Do restante, 14% eram alfabetizados, 13,6 tinham Ensino Fundamental Completo, 8,5 haviam concluído o Ensino Médio, 6,1% eram analfabetos, 1,2% tinham Ensino Médio Incompleto, 0,9% haviam chegado a universidade mas sem conclusão, 0,04 concluíram o Ensino Superior e 0,03 chegaram a um nível acima de Superior completo. Os jovens são a maioria dos presos? Sim. Os jovens de 18 a 24 anos eram maioria nas penitenciárias brasileiras em 2012 (29,8%). Entre a faixa etária dos 25 a 29 anos essa taxa foi de 25,3%. Do restante, 19,1% tinham entre 30 e 34 anos, 17,4% entre 35 e 45 anos, 6,4% entre 46 e 60 anos, 1% acima de 60 anos e 1,2% não informaram. O perfil do preso brasileiro se mantém há anos entre os jovens, pardos e de baixa escolaridade. Essa situação permanece, pois não são apresentadas políticas públicas realmente eficazes de inserção do jovem na atual sociedade, ao contrário, economiza-se em escola para construir presídios. É preciso trabalhar a base da sociedade ampliando as possibilidades de participação social e no mercado de trabalho, a fim de se evitar que nossas crianças e jovens vejam como única saída, já que quase sempre ela sempre se apresenta como fácil a entrada para criminalidade. Outra dificuldade é a falta de meios, dentro das cadeias, para que o detento que está ali, não volte a reincidir. Mas o cenário, de celas amontadas de gente, presídios em situações precárias e sem acesso ao trabalho e a escola não favorecem a volta do preso ao convívio social. *Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Perda de mandato: vergonha nacional corrigível

No julgamento do mensalão o STF acertou ao determinar a perda do mandato de todos os parlamentares condenados por abuso de poder ou violação de dever funcional. Neste ponto essa é a única interpretação justa e sensata da Constituição Federal. No julgamento do senador Ivo Cassol o STF errou (data vênia) ao não decretar a perda do seu mandato, transferindo essa responsabilidade ao Senado Federal. Sobre o tema há uma regra e uma exceção (ambas previstas nas leis e na CF). Nas leis e na CF, não na cabeça de cada Ministro! A única tarefa interpretativa consiste em saber o que entra na regra (perda decretada pelo STF) e o que vai para a exceção (cassação determinada pela Casa Legislativa). Aos parlamentares condenados no caso mensalão (João Paulo Cunha, José Genoíno, Pedro Henry e Valdemar Costa Neto), o STF (por 5 votos a 4) aplicou a regra (perda do mandato decretada pelo STF). Ao senador Cassol, também condenado pelo STF, diante dos votos dos dois novos ministros (Barroso e Teori), aplicou-se a exceção (perda do mandato a ser decretada pela Casa Legislativa). De acordo com minha opinião, os dois casos entram na “regra” (não na exceção). Dois casos substancialmente idênticos (atos corruptivos praticados no exercício da função), com tratamentos distintos. Errou o STF nesta última decisão. Estão equivocados (data vênia) Barroso e Teori. A regra do jogo já estabelecido pelas leis vigentes é a seguinte: Ao STF, quando condena criminalmente uma pessoa, compete decretar a perda do cargo ou do mandato eletivo em duas hipóteses: (a) quando se trata de crime cometido com abuso de poder ou violação de dever funcional ou (b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos. É o que diz o art. 92, I, do Código Penal. Os réus do mensalão foram enquadrados nessa lei (porque abusaram do poder, violaram dever funcional e ainda foram condenados a mais de 4 anos). É incompreensível que ela não tenha sido aplicada inclusive para o senador Cassol, que também foi condenado por violar o dever funcional (fraude em licitações, que significa corromper o mandato público). Nos casos de agentes públicos ou políticos que atuam contra a administração pública, que corrompem sua função, a decisão sobre a perda do mandato não pode ser corporativa. Esse campo é do controle jurídico, não político. A lógica constitucional já descorporativizou o assunto, que retrocedeu com os votos de Barroso e Teori. A decisão do STF, no caso mensalão, está em conformidade com o art. 15, III, da CF, que prevê a suspensão dos direitos políticos de quem é condenado criminalmente em sentença definitiva. Como desdobramento natural, diz o art. 55, IV, que, nesse caso, a Casa Legislativa apenas declara a perda do mandato, não tendo nada que decidir (visto que a decisão aqui é judicial, ou seja, exógena ou externa). Essa é a regra geral que comanda o assunto. Não se pode deixar por conta do Parlamento a decisão de decretar ou não a perda do mandato (quando há condenação criminal por crimes funcionais) porque ele é capaz das maiores atrocidades morais imagináveis (em incontáveis vezes isso já ocorreu: caso Donadon, caso Renan, caso da deputada filmada com do dinheiro da corrupção na mão etc.). Um covil de malandros parasitas (salvo exceções, claro) não titubeia um segundo para acobertar a malandragem alheia (desde que algum benefício parasitário extra lhe mostre possível). É esse dado relevantíssimo que escapou da percepção dos ministros Barroso e Teori, cujos votos colocaram o galinheiro nas mãos e nas (ir) responsabilidades das raposas. Qual é a exceção? A regra citada comporta uma única exceção: quando o STF condena o parlamentar e ausentes os requisitos do art. 92, I, do CP (por exemplo: quando o condena a pena alternativa ou substitutiva, em razão de um acidente de trânsito), a decisão de decretar ou não a perda do mandato é endógena ou interna, ou seja, exclusiva da Casa Legislativa (CF, art. 55, VI). Essa é a exceção à regra geral dos arts. 92,I, do CP c.c. art. 15, III e art. 55, IV, da CF. Critério da regra-exceção O conflito aparente de normas, no caso da perda do mandato parlamentar pelo STF, se resolve pelo critério interpretativo da regra-exceção. A regra é a prevista no art. 55, IV, c.c. os arts. 15, III, da CF e 92, I, do CP, enquanto a exceção está prevista no art. 55, VI, da CF. O caso mensalão se encaixava na regra, não na exceção. O caso do senador Cassol, que corrompeu o exercício da sua função pública, também entra na regra (não na exceção). O caso Donadon, da mesma maneira, entra na regra e não na exceção (porque estamos falando de crimes graves contra a honorabilidade do cargo, patente abuso de poder e violação de dever). Todos compõem a regra. Todos devem seguir a mesma regra, já pela atual legislação e Constituição brasileira (repita-se: 92,I, do CP, c.c. art. 15, III, e art. 55, IV). Competente exclusivo para decretar a perda do mandato (no caso de condenação criminal por crime funcional) é o STF, não a Casa Legislativa respectiva. Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello votaram acertadamente pela regra. O controle da corrupção na administração pública, em caso de condenação judicial fundada no art. 92, I, do CP, é jurídico, não político. Quando o poder jurídico não faz o devido controle do agente político, fundado no devido processo legal, o poder jurídico convalida a “vulgarização do mundo” e dohomo democraticus. O recado que se transmite é o seguinte: nossa sociedade (pós-moderna) parece estar de acordo com a tese de que devemos prescindir da virtude dos seus cidadãos, especialmente quando agentes públicos. Dá a sensação de que a virtude da honestidade (e exemplaridade) não seria necessária. Claro que o juiz não pode fazer juízos morais para condenação ninguém. Toda condenação tem que ter amparo jurídico. Mas quando há amparo jurídico torna-se uma imoralidade não reprovar quem fez uso indevido da coisa pública, que consiste numa extensão inadequada da liberdade. Quem se presta a praticar e exercer as vulgaridades contemporâneas, no campo político, não pode receber nenhum tipo de aprovação, sob pena de convalidarmos incorretamente as flexibilizações éticas do mundo atual, tal como fez, por exemplo, o senhor Lobão Filho (ao dizer que a ética não é relevante). Essa nos parece a interpretação correta do assunto em debate. É a interpretação, de outro lado, que respeita não só o conteúdo das normas envolvidas (art. 92, 1, do CP, e arts. 15, III, 55, IV e 55, VI, da CF), senão também todos os poderes constituídos. Porque será uma grave ofensa ao STF se ele declarar a perda do mandato (nos termos do art. 92, I, do CP) e a Câmara dos Deputados não acatar (desautorizar) essa decisão. Ficaria uma decisão judicial sob o crivo do Poder Legislativo. Nada mais disruptivo e assistemático. Decisão de juiz se cumpre (depois da coisa julgada, quando então não cabe mais nenhum recurso). Os poderes são independentes e é fundamental que se respeite essa independência, mas devem ser harmônicos. Daí a necessidade de se delimitar com precisão quando o STF decreta a perda do mandato do parlamentar (decretação exógena) e quando essa tarefa é da própria Casa Legislativa (decretação endógena). Ministro Barroso caiu numa armadilha e virou legislador O passado do ministro Barroso não permite qualquer tipo de questionamento sobre sua competência e honorabilidade. Mas ele é um ser humano, logo, também pode se equivocar. Na verdade, ele se meteu numa grande enrascada ao decidir que o poder de decretar a perda do mandato, no caso de parlamentar corrupto condenado criminalmente, competiria ao próprio Parlamento (e não ao STF). No século 6 a.C., Esopo escreveu incontáveis fábulas morais. Dentre elas, esta (veja Folha de 1/9/13, Ilustríssima, p. 8): “Uma lebre sentiu sede e desceu num poço para beber da água. Após haver-se fartado da deliciosa bebida, ia sair de lá quando se deu conta de que estava confinada, pois não tinha como galgar a subida, e começou a ficar apreensiva. Nisso, uma raposa veio ter ali também e, ao deparar com ela, disse: ’Realmente você se meteu numa grande enrascada! Pois devia primeiro resolver como iria sair do poço e, só depois, descer dentro dele”. O ministro Barroso não podia imaginar que sua decisão geraria a confusão que gerou no caso Donadon, tendo a Câmara dos Deputados, malandramente, mantido o mandato do deputado que está preso em regime fechado, com os direitos políticos suspensos. Ou seja: não pode votar nem ser votado, mas continua deputado federal. Mais uma singularidade que só se encontra no Brasil, ao lado das jabuticabas, claro. Mas o ministro Barroso não é a lebre do conto de Esopo. A lebre não tinha como sair da enrascada que se meteu, salvo se se transformasse em raposa. O ministro, acuado pela imoralidade ímpar do Parlamento brasileiro, achou uma saída: assumiu as funções legislativas e passou a legislar. Vejamos os detalhes da sua técnica e construção legislativas: *Artigo extenso: leia o texto completo em www.atualidadesdodireito.com.br/lfg

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Policial mordeu o cachorro

Num acidente de trânsito (BR 174) uma pessoa morreu degolada pelo cinto de segurança. Todos os jornais noticiaram. Não noticiaram quantas pessoas foram e são salvas por ele. Como sempre, notícia não é o cachorro que morde o policial, sim, o policial que morde o cachorro. Para o imprevidente motorista brasileiro (há exceções, claro) seguem dez dados sobre segurança viária (OMS): 1 – Mais de 1,3 milhão de pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito em todo o mundo. 2 – Cerca de 50 milhões de pessoas se ferem ou ficam com sequelas permanentes de acidentes de trânsito em todo o mundo. 3 – Metade das vítimas são os usuários mais vulneráveis das vias: pedestres, ciclistas e motociclistas. 4 – Acidentes de trânsito custam até 4% do Produto Interno Bruto de muitos países. 5 – Quando corretamente utilizados, cintos de segurança podem reduzir o risco de morte em um acidente em 61% (dos ocupantes internos do veículo). 6 – O uso obrigatório de assentos especiais para crianças nos veículos podem reduzir a morte de crianças em 35 %. 7 – Capacetes diminuem até 45% os ferimentos fatais ou severos na cabeça. 8 – Reforçar leis sobre bebida e direção em todo mundo poderia reduzir em 20% os acidentes relacionados ao álcool. 9 – Para 1 km/h reduzido na velocidade média, há uma queda de 2% no número de acidentes. 10 – Medidas simples e baratas de engenharia nas vias, como faixas de segurança, podem salvar milhares de vida. * Fonte Organização Mundial da Saúde.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – População carcerária e trabalho nas penitenciárias

Segundo levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, apenas 17% do total presos brasileiros exerciam algum tipo de atividade laboral dentro do sistema penitenciário, em 2012. Dos quase 550.000 presos cerca de 92.000 trabalhavam em atividades dentro dos presídios, 167 para cada grupo de 1.000 presos. Nos últimos 5 anos, o número de presos que trabalham dentro das prisões cresceu 6%, mas a média ainda é baixa, 164 presos cada 1.000 habitantes. As mulheres, respeitando as proporções dos números, geralmente trabalham mais que os homens, 25% do total de presas estão desenvolvendo alguma atividade laboral dentro dos presídios, enquanto entre os homens a taxa é de 16%. As atividades internas que mais foram desenvolvidas pelos presos em 2012 foram: apoio ao estabelecimento penal (42%), parceria com a iniciativa privada (32%), artesanato (16%), atividade industrial (4%), parceria com órgãos do Estado (4%), parceria com paraestatais (ONGs e Sistema S) (1%) e atividade rural (0,9%). O estado que apresentou um melhor panorama para esse quesito foi Santa Catarina, onde, na média dos 5 anos, 490 presos para cada grupo de 1.000 estavam em atividades laborais internas. No ano de 2012, 39% dos presos estavam trabalhando, 51% entre as mulheres e 38% entre os homens. Já o Ceará foi o estado que apresentou a pior taxa. Em média, de 2008 a 2012, apenas 21,8 em cada 1.000 presos estava desenvolvendo alguma atividade laboral dentro das penitenciárias. Apesar disso, segundo os números apresentados nesses anos pelo InfoPen, foi o que teve maior crescimento, passando de 2 para 26,3 presos para cada grupo de 1.000 habitantes. Apenas 3% do total de presos estavam em atividades em 2012, 4% das mulheres e 3% dos homens. Contudo, se a comparação a ser feita for dos últimos 4 anos, o Rio de Janeiro é o estado com pior desempenho (o ano de 2008 não teve os números disponibilizados). Nesse estado, em média, 17,7 de cada 1.000 presos estava desempenhando alguma atividade laboral dentro dos presídios entre 2009 e 2012. Em 2012, apenas 2% da população carcerário estava trabalhando internamente, 9% das mulheres e 1% dos homens. São Paulo, estado com a maior população carcerária do país (190.818 presos até junho de 2012), apresentou uma média de 234 presos em cada 1.000 que estão desenvolvendo atividades laborais dentro dos presídios nos últimos 5 anos. Em São Paulo, em 2012, do total da população carcerária, 22% estavam em atividades laborais, entre as mulheres esse número era de 31% e entre os homens 22%. Confira o infográfico: http://atualidadesdodireito.com.br/iab/files/info-atividade-laboral-brasil.jpg

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Primeiro trimestre de 2013 é o segundo mais violento em 6 anos

Ao contrário do que foi declarado pelo governador Geraldo Alckmin em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, na qual disse reconhecer que os índices de criminalidade no estado estavam altíssimos, entretanto, vinham apresentando queda mês a mês (Alckmin reconhece que índices de criminalidade estão altos em SP), os números apresentados pela Secretaria de Segurança de São Paulo mostram que no primeiro trimestre de 2013 relação ao mesmo período nos últimos 5 anos, ele vem sim, crescendo. Só no primeiro trimestre de 2013 foram registrados 1.276 homicídios no estado de são Paulo, número quase equiparado aos 1.302 mortos em 2010, ano mais violento desde 2008. Isso significa que de 2008 a 2013 houve um crescimento de 6,6% no primeiro trimestre. Em 2008, foram registradas no primeiro trimestre 399 mortes por mês em média, 13,3 por dia, sendo uma morte a cada 1 hora e 48 minutos. Já em 2013, o estado de São Paulo registrou 425 mortes por mês, 14,2 por dia, ou seja, uma morte a cada 1 hora e 41 minutos. Veja a tabela clicando aqui Efeito um pouco diferente aconteceu, por algum tempo, com a cidade de São Paulo. A cidade, que no primeiro trimestre de 2013 registrou 325 homicídios, em 2008, no mesmo período, havia registrado 336 mortes, obtendo uma queda de 3,2%. Mas, apesar da aparente queda, desde 2011 essas taxas vêm apresentando uma alta considerável. O número de homicídios que no primeiro trimestre de 2011 foi de 236, apresentou, no mesmo período em 2013 um crescimento de 37,7%. A Capital foi responsável, em 2013, por 108 mortes por mês em média, 3,6 mortes por dia, ou seja, uma morte a cada 6 horas e 39 minutos. Esse índice, em 2011 era de 78,7 mortes por mês, 2,6 por dia, ou uma morte a cada 9 horas e 9 minutos. Observe a tabela clicando aqui É preciso rever com urgência as políticas de segurança públicas adotadas pelo governo do Estado de São Paulo. Tomando como base o ano de 2011, percebe-se que é possível sim reduzir o número de mortes. Mas convém entender quais as carências do estado que levaram a um crescimento como o que vem ocorrendo nos últimos anos. De qualquer modo, já se sabe desde a antiguidade que não é com violência que se combate a violência. * Colaborou Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Por que passamos a odiar o serviço público, o Estado, a política e os políticos?

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do portal atualidadesdodireito.com.br. Estou noblogdolfg.com.br Quando um jovem domesticado pelo consumismo contemporâneo conversa com pessoas sexagenárias ele escuta histórias incríveis, como a da boa qualidade da educação nas escolas públicas, que antigamente a polícia e a Justiça funcionavam bem (ou muito melhor que hoje), que os presídios não eram tão deteriorados, que se podia despreocupadamente andar à noite pelas ruas da cidade etc. O serviço público ou, pelo menos, alguns setores do serviço público funcionam bem. O que caracterizava esse bom serviço público? A padronização, que facilita o gerenciamento burocrático assim como a realização do ideal de igualdade (mesmo serviço para todas as pessoas), que está na raiz da distribuição dos bens públicos nos estados com baixa desigualdade. Ocorre que, a partir dos anos 80, para salvar o modelo capitalista que entrava em recessão, desenvolveu-se uma nova cultura, a do consumismo individualista, personalizado, egoísta, que promove a socialização material do indivíduo assim como sua diferenciação, conferindo-lhe “status”; essa nova cultura conflita radicalmente com o serviço público padronizado, generalizador, burocratizado. O serviço público, prestado pelos agentes e autoridades do Estado, caiu em desgraça, porque não atende o desejo (a lei) de diferenciação do consumidor, que passou a ser oferecido pelo mercado (veja W. Streeck, emPiauí, 79, p. 61). A partir do momento em que nossos desejos começaram a se dirigir para o produto ou o serviço personalizado, individualizado, estratificado ou sofisticado, que não é evidentemente prestado pelo Estado, passamos a odiá-lo (ou a refutá-lo), até por uma questão de diferenciação de grupos ou classes (dá “status” ter um carro, especialmente quando personalizado, um atendimento médico distinguido, colocar o filho numa escola cara, frequentar lugares ricos etc.). Primeiro caiu em desgraça o Estado, depois o serviço público (os serviços privados seriam mais eficientes); logo a contaminação alcançou também a política e os políticos (que enfrentam uma brutal senão a pior crise de credibilidade). Tudo que é estatal é visto, hoje, com desconfiança, com descrédito. Isso se passa com a educação, saúde, polícia, Justiça, agências públicas, infraestrutura governada pelo poder público (aeroportos, portos, estradas, hospitais) etc. Não há como não reconhecer que as democracias ocidentais passaram por uma profunda transformação neoliberal, que resultou mais acentuada em países com tradição escravagista (como o Brasil). O que Albert Hirschman escreveu sobre as ferrovias estatais da Nigéria (veja W. Streeck, em Piauí, 79, p. 65), bem sintetiza a nossa atual realidade: “conforme os mais ricos perdem o interesse pelo serviço coletivo, e se voltam para as alternativas privadas – mais caras, mas, para eles, acessíveis -, sua saída acelera a deteriorização dos trens públicos e desestimula o seu uso, mesmo entre aqueles que dependem deles porque não podem pagar por alternativas privadas”. Ou seja: o serviço público (educação, saúde, segurança etc.) consegue manter um certo nível de satisfação enquanto é utilizado também pelos ricos. Aquilo que não é usado pelos ricos se deteriora. Isso explica, adequadamente, a razão pela qual os presídios nunca constituíram um bom serviço público. Quando os ricos (os que podem pagar) deixam de utilizar um determinado serviço ou bem público, em razão da lei da diferenciação do consumidor, vem o colapso. Esse é o motivo pelo qual o BNDES tem vida longa.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Profunda insatisfação do povo

O termômetro da saturação chegou ao seu limite máximo (conforme a 114ª pesquisa do CNT/MDA, realizada em julho de 2013, a insatisfação com a corrupção – principal causa dos protestos – chegou a 55%; insatisfação com a qualidade dos serviços de saúde: 47,2%; insatisfação com os gastos da Copa do Mundo: 43,7% etc.). Há, na sociedade brasileira, um profundo mal-estar e, em consequência, o desejo de mudança. Aliás, o mesmo desejo de mudança que levou o PT ao poder em 2002 (apesar de todos os medos que ele representava para a sociedade financista conservadora) passou a constituir o combustível das jornadas de junho. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PSDB não o teria trocado pelo PT. Se o povo estivesse satisfeito com a governança do PT não estaria fazendo protestos nas ruas e nas redes sociais (contra tudo e contra todos). PT e PSDB, juntamente com os seus partidos coligados, têm pela frente uma longa jornada para recuperar a confiança da população (os dois devem ser citados conjuntamente porque é difícil encontrar um desmando no governo lulista que não tenha ocorrido também no governo dos tucanos. Um exemplo: uso indevido de aviões da FAB – por Renan, Garibaldi e Henrique Alves -; no tempo do PSDB houve um ministro que chegou a viajar de férias com a família toda para Fernando de Noronha). Sendo isentos e honestos, não há como ver nos protestos massivos de junho um movimento contra o capitalismo como sistema. Não é isso que está sendo postulado nas ruas. Ninguém está querendo destruir o capitalismo para colocar no seu lugar o marxismo ou o socialismo real ou o comunismo (praticamente não se viam bandeiras ou cartazes com a imagem do Che Guevara, Fidel etc.). Os protestos, mais propriamente, são contra os excessos e os abusos do modelo econômico-financeiro e político vigentes (seus exageros é que devem ser corrigidos). Note-se que nem sequer foi pedida a destituição de qualquer político (ou governante). Simplesmente se contesta o malfeito, o abuso, a injustiça, a desigualdade de tratamento, a humilhação dos usuários do serviço público (dos transportes, da saúde, da educação etc.). Em suma, não se trata de revolução, muito menos de um movimento de burgueses opulentos. Os manifestantes de junho são pessoas indignadas que estão perdendo a esperança de um país melhor, que querem protestar contra os rumos, a tradição e o dia-a-dia do sistema governamental e político.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – PT mensaleiro, PSDB carteleiro e Joaquim Barbosa “barraqueiro”

Joaquim Barbosa começou o mês de agosto com 15% das intenções de voto para a presidência da república. Deve fechar agosto beirando os 20%. Assim que os políticos (do PT, sobretudo), banqueiros, marqueteiros e adjacentes começarem a ir para os presídios (regime fechado ou semiaberto), vai se aproximar dos 30%. Tudo isso se confirmando, sua candidatura se tornará irreversível (o povo manda e se ele pede…). No mínimo, irá à vice-presidência da república. JB conta com o maior prazo de desincompatibilização do país. Pode deixar o cargo de juiz e se filiar a um partido político somente em abril de 2014. Até lá, tem todo tempo do mundo para armar, da sua maneira, outras confusões, firmar sua personalidade assim como seu louvado personalismo.Self-made man com personalismo forte + apoio midiático = ídolo nacional (assim surge um novo Messias, salvador da pátria). A mídia desancou JB nesta semana: “com seu temperamento instável e agressivo, se tornou um irremediável criador de polêmicas”; “usa palavras inadequadas (como chicana)”; não é um exemplo de serenidade; não mantém o decoro que ele exige dos pares; perde as estribeiras; seu destempero se volta contra ele mesmo e contra seu trabalho (Estadão de 18.08.13, p. A3). Mas ninguém superou uma “amiga” na nossa rede social, que disse: “por meio dos seus frequentes barracos ele não só nos alegra como nos impressiona”. Transmite a sensação de comando, de voz imperativa (aqui quem manda sou eu). Atributos que os brasileiros foram treinados a adorar (desde as donatarias em 1532 e o governo geral de Tomé de Souza, em 1549). Tal como na mitologia grega, das vísceras do mensalão o PT jamais podia imaginar que sairia, contra seus planos de governo eterno, uma víbora de ferocidade incomensurável. O presidenciável Joaquim Barbosa é fruto desse engendramento petista e primo dele é a cartelização do metrô de SP, nos governos do PSDB. União espúria e mancebenta dos donos do capitalismo neoliberal (multinacionais) com os políticos podres locais. Mensalão, cartelização e “barracos”, sobretudo os televisivos (que tanto agradam o canhestro homo videns) protagonizam três maneiras vivenciais do circo da vulgaridade que nos dá o enredo do ser humano do século XXI. A esperança única que nos anima é que, se foi o ser humano que se perdeu em tão nefastas vulgaridades, distanciando-se completamente da ética e da emancipação moral, está nas mãos dele mesmo, não de uma força sobrenatural, corrigir tudo, voltando-se para os interesses da “polis”, entendida como uma nação decente onde se possa viver sem violência, corrupção e extravagâncias.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Que se entende por Estado de Bem-Estar social?

O Estado de Bem-Estar social, tão demonizado pelo neoliberalismo midiático-financeiro, é uma organização ou um sistema político e econômico que vê o Estado como protetor e defensor social e organizador da economia. O Estado, nesse modelo, diferentemente do Estado mínimo postulado pelo neoliberalismo, é o regulador de toda vida e saúde social, política e econômica do país e faz isso em parceria com várias outras forças, sobretudo dos sindicatos e das empresas privadas. O que o distingue de forma clara é que ele assume o papel de garantidor dos serviços públicos de qualidade e de proteção da população. Esse modelo de Estado teve origem na Europa, sob o império da ideologia da social-democracia, que se distinguia antigamente tanto do capitalismo liberal confiante no mercado como do socialismo real (comunismo). Onde esse modelo de Estado foi implantado com mais força? Deu certo? Nos Estados escandinavos (chamados de países nórdicos), como Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia. E quem foi o responsável pela implantação e subsistência desse modelo? Foi o economista e sociólogo sueco Karl Gunnar Myrdal. Os países nórdicos juntamente com alguns outros raros países do planeta (como o Canadá) formam a última “ilha” (no planeta) de resistência e de relativa prosperidade. Nem tanta prosperidade como antigamente (em virtude da crise econômica mundial), mas resistente até hoje (tudo quanto pode) aos excessos do neoliberalismo norte-americano. São os países com menores taxas de homicídio, com melhores colocações no IDH, com menores desigualdades, com melhores índices de bem-estar, com as melhores notas relacionadas com a sua economia etc. Mas diariamente são atacados pelo neoliberalismo, que nasceu para “liquidar” com esse modelo de Estado. No entanto, nada melhor o ser humano inventou do que a forma de governança dos países escandinavos, Canadá e outros poucos territórios. Quando vemos tantas desgraças e crises disseminadas pelo mundo inteiro, marcado pelo progresso, mas também pela injustiça, pela fome e pela miséria, por que não paramos para refletir melhor sobre os oásis remanescentes do Estado de Bem-Estar social? Não chegou o momento de levantar nossa voz, deixando de praticar o delito de silêncio? (Federico Mayor Zaragoza). Que diz o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos? “Que é a aspiração mais elevada do homem o advento de um mundo em que os seres humanos, liberados do medo e da miséria, desfrutem da liberdade de palavra e da liberdade de crença”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Quem é o psicopata/canalha dos nossos tempos?

Convido o estimado leitor a ler o texto abaixo (trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, no prelo, com notas de minha autoria) para bem compreender quem é o psicopata/canalha dos nossos tempos. Trata-se de um perfil mais comum do que parece. Está presente, por exemplo, em todo crime organizado, seja no privado (tipo PCC), seja no misto (que envolve os interesses privados e os públicos, tal como o que acontece nas concorrências públicas). Por detrás do crime organizado sempre tem um canalha, que manipula a vontade de outras pessoas. No campo político a canalhice se apresenta de forma mais sorrateira: é canalha, por exemplo, o político que faz um duro discurso punitivo (chicote em todo mundo), que propala aos quatro ventos a festa da vingança (Nietzsche), com o único propósito de manipular a vontade da opinião pública, muito suscetível a esse tipo de discurso, para ter o prazer de ver outras pessoas castigadas. Vamos ao imperdível texto de Juan Pablo Mollo (O delinquente que não existe, no prelo), observando-se que tudo que está entre colchetes é de minha autoria: “O canalha é aquele que, sabendo captar as crenças e o ponto de satisfação do outro, exerce promessas, ameaças ou expectativas em forma explícita ou implícita por meio das quais consegue o consentimento e a cumplicidade do outro. Por isto, propõe-se como um líder nato para hipnotizar ao neurótico vacilante, que prontamente se converterá religiosamente ao regime do psicopata e suas ambições pessoais. Sem dúvida, o canalha não faz a cooptação de voluntários repressivamente, mas com seu carisma e capacidade de persuasão atrás de seus pretextos discursivos variáveis. O canalha bem-feito não crê em nenhum ordenamento social ou cultural e consegue uma postura de certeza para conseguir sua própria satisfação à custa dos outros”. “Um canalha que sempre encontra justificações para seus atos, sem culpa nem responsabilidade alguma, pode ser perfeitamente compatível com a normalidade social, a política e o poder. Torna-se frequente que o canalha se mascare atrás de uma autoridade em que não crê, e a partir daí comece a exercer uma influência sobre o outro. Certamente, os indivíduos manipuladores do desejo não se correspondem com o delinquente comum nem com o assassino criminoso, mas com pregadores, pastores, dirigentes, terapeutas, líderes, políticos etc. A respeito, pode se distinguir o pequeno e ambicioso canalha imerso numa lógica de êxito e fracasso de um canalha maior que, sobre o império e destruição do desejo próprio e alheio, estrutura-se no exercício do poder para manejar as realidades dos outros. O perfeito grande canalha é um poderoso como Stalin, o homem de aço, intocável, fechado em si mesmo, sem escrúpulos nem decência, sem vacilação nem defeito em vida [nessa mesma linha está Hitler]. O esplendor do canalha e seu brilho maléfico provêm de não aceitar nem o Outro com maiúsculas, que não é mais que uma ficção, nem os outros semelhantes, que não valem nada”. “Assim, o canalha de nossos dias é o líder de organizações criminosas cuja atitude é introvertida, misteriosa e planejada. Portanto, não é o delinquente comum que rouba o automóvel, mas o administrador do desmanche e do dinheiro daqueles que trabalham para ele ou o delegado de polícia corrupto que manipula o delinquente a partir da autoridade estatal. A pessoa de colarinho branco oculta detrás dos ilícitos é o psicopata que não age, senão que faz agir os demais [como se vê, o delinquente comum não é o canalha que está por detrás da organização, que manipula a vontade dos outros]”. “Por outro lado, ofuscado pela ambição, o político corrupto não deixa de camuflar-se nos governos democráticos, nem de delinquir, nem de fingir ser um homem trabalhador e honesto para aprisionar o desejo dos outros. O psicopata de nossos dias é compatível com a figura do homem de negócios, o homem mundano, o cientista, o juiz ou o psiquiatra: sua fachada é normal, porém é a típica máscara do psicopata. A máscara vela o interesse particular oculto. Assim, atrás das sublimes frases ideológicas do líder político, da demonstração objetiva do especialista ou da hipnose grupal do pastor, ocultam-se os interesses ególatras, a violência e as brutais pretensões do poder. O psicopata político, o homem do poder ou o narcotraficante extraem um ganho pessoal sobre o sacrifício dos demais”. “Em suma, e para além das figurações, o psicopata ou canalha é aquele que sabe que o Outro da lei é um semblante e não se detém na manipulação dos outros, nem em seus interesses, ambições ou ações de prazer (Lacan). Um canalha bem-feito realiza suas ações sem sustentar-se em nenhum ideal e sem impedimentos, isto é, não se situa como sujeito de nenhuma lei ou posicionado como culpado/culpável, mas que avança sem obstáculos nem inibições para sua condição absoluta de prazer. É aquele indivíduo que, independentemente de qualquer distinção social, pretende existir por fora de toda lei ou norma, na que não crê, exceto quando ocupa um lugar de poder e impõe as regras para os demais”. “Então, a grande canalhice é a ciência estabelecida totalmente como verdade pelo mercado multinacional, captando o desejo de todos e propondo-se como o novo chefe globalizado sob a forma tecnológica. E não parece existir alguma política que apresente as condições para estabelecer um limite ao desencadeamento da tecnociência e o sistema avaliativo na construção da realidade. Por outro lado, existe a canalhice filosófica como um saber sistemático que se propõe como verdadeira para os demais, e também a canalhice jurídico-penal, que mediante intelectualizações acadêmicas sobre a pena tem ocultado desde sempre a irracionalidade do poder punitivo para sustentar uma ordem desigual e injusta”.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Questão da Esaf enaltece o PT: prática abominável

Num concurso do Ministério da Fazenda, cujas provas foram aplicadas no dia 25/8/13, pela Esaf, cita-se o PT e suas propostas para a reforma política (alternativa correta, segundo o gabarito divulgado ontem). O concurso está sendo acusado de tendencioso, de falta de isonomia e de fazer campanha política através da pergunta proposta. Confira abaixo: 34- Tema recorrente na história do Estado brasileiro, a reforma política ganha destaque no complexo cenário surgido das manifestações de rua que explodiram pelo Brasil afora em junho de 2013. Entre os pontos colocados em debate está a proposta de mudança do sistema eleitoral hoje vigente no país. Relativamente a esse tópico, assinale a opção correta. a) Há consenso entre os membros do Congresso Nacional acerca da adoção do sistema distrital puro, em que cada deputado é eleito por um distrito pelo voto proporcional. b) O Partido dos Trabalhadores (PT), atualmente no comando do Executivo Federal e com forte bancada na Câmara dos Deputados, defende o financiamento das campanhas eleitorais com recursos públicos. c) O voto em lista fechada, em que o eleitor não escolhe candidato a deputado específico do partido, foi unanimemente rechaçado pelos partidos com representação no Congresso Nacional. d) O fim das coligações para eleições proporcionais é tese defendida, sobretudo, por partidos políticos médios e pequenos, que regularmente dispõem de candidatos “puxadores de voto”. e) O fim da suplência no Senado Federal, bem como a proibição da presença de parentes entre os suplentes, foi decisão assumida consensualmente. Nossos comentários: para a banca (ou comissão examinadora), a resposta correta seria a “b”. A pergunta e a resposta estariam enaltecendo o PT. Isso não é recomendável, visto que dá margem para censuras, inclusive sobre a credibilidade da prova. Não importa qual seja o partido político. Em provas públicas que, teoricamente, existem para aprimorar a democracia, por meio da meritocracia, nos parece totalmente desaconselhável vincular respostas às posições assumidas pelos partidos políticos. Com tantas milhares de outras indagações possíveis, para aferir o conhecimento do candidato, porque colocar a credibilidade do concurso em risco, valendo-se de um expediente totalmente evitável? Questões envolvendo política, ideologia, religião etc. são absolutamente desaconselháveis em concursos públicos, que foram inventados há mais de dois mil anos pelos chineses, para seleção dos melhores interessados na carreira pública. Trata-se de um excelente instrumento de seleção dos mais preparados para ocuparem cargos públicos, porém, isso deve ser feito dentro da mais absoluta lisura, impessoalidade, objetividade, moralidade etc. Que não são valores menores, dentro do arcabouço constitucional. Questões que envolvem partidos políticos dão ensejo à alegação de que ou está contra ele ou está a favor dele, fazendo-lhe apologia. Nada mais infeliz do que a iniciativa citada. Dá a impressão de estar usando a instituição séria do concurso público (teoricamente é o meio mais apropriado para cooptação de novos servidores) como forma de difusão de cabresto ou de tendência ideológica. Banca de concurso tem que se comportar igualmente à mulher de César: não basta ser honesta, é preciso mostrar isso. Afinal, ela tem todo tempo do mundo para preparar as questões. Os assuntos são infinitos. Um milhão de questões podemos formular em qualquer área do conhecimento humano. Para que arranhar a seriedade de uma prova enfiando dentro dela temas relacionados com a política partidária (que, diga-se de passagem, é a mais desprestigiada no nosso país)?

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Ricardo Teixeira e o parasitismo nacional

“Eu não me interesso por um clube que me aceite como sócio” (Groucho Marx) O ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, transferiu sua residência (de Miami) para o principado de Andorra, que fica nos pés dos Pirineus (entre França e Espanha). Reportagem do Estadão (Jamil Chade) revelou que um terço da renda dos amistosos da seleção brasileira acabava depositado nas contas (em Andorra) de Sandro Rosell, amigo de Teixeira e hoje presidente do clube Barcelona. A cada ano Teixeira terá de passar 150 dias no principado, que é conhecido por ser um paraíso fiscal, que nada mais é que o ancoradouro daquilo que normalmente é obtido no mundo todo de forma parasitária (mais precisamente, por meio do parasitismo depredador). Para ser aceito no clube parasitário de Andorra é preciso depositar pelo menos 400 mil euros nas contas de um banco do principado. Teixeira negociou sua transferência para o paraíso fiscal depositando no banco AndBank 4,9 milhões de euros (que estão sendo lavados pelo banco citado). Paraíso fiscal não tem acordo de extradição com o Brasil Vivendo em Andorra, Teixeira não teria como ser extraditado ao Brasil caso fosse convocado pela nossa Justiça. Andorra e Brasília não contam com acordo de extradição. O Estadão revelou uma série de informações exclusivas sobre Teixeira e como seus esquemas dentro da CBF permitiam que os amistosos da seleção fossem usados para desviar recursos da CBF para contas de amigos do cartola. Dentre eles está Rosell, presidente atual do Barça. A reportagem também revelou como, em 2010, a Justiça suíça constatou que Teixeira recebeu milhões de euros em propinas de empresas ligadas à Fifa, justamente em contas em Andorra. Bola redonda Com Ricardo Teixeira na presidência da CBF a bola não rolou somente no gramado. Ele não comeu bola em nenhum momento, aceitou-a (ou a solicitou, senão a exigiu). Andorra agora diz que foi a Polícia Federal do Brasil que informou, em 2012, que ele não teria nenhum antecedente. A melhor maneira de encerrar este artigo consiste em parafrasear o diálogo transcrito por Manoel Bonfim em seu livro A América Latina – Males de Origem (p. 75): LADRÃO PEQUENO: (…) E vós mesmos, que tendes feito até hoje? LADRÕES GRANDES: Temos vivido como heróis: os mais bravos entre os bravos, os mais nobres entre os nobres e os mais poderosos dos conquistadores. E tu, ladrão miserável, que andas fazendo? LADRÃO PEQUENO: Tudo que fiz com algumas dezenas, vós o fizestes com centenas de milhares, sobre nações inteiras. LADRÕES GRANDES: Mas nós somos conquistadores. LADRÃO PEQUENO: Mas o que vem a ser um conquistador? Não percorrestes em pessoa toda a terra, como um gênio mau ou astuto, destruindo ou se apropriando dos frutos do trabalho alheio… pilhando, matando, surrupiando, sem lei e sem justiça, simplesmente para satisfazer uma sede insaciável de domínio, de posse, de enriquecimento sem causa? LADRÕES GRANDES: Nós somos pessoas diferentes. LADRÃO PEQUENO: Onde está a diferença, senão no nascimento e nas oportunidades desiguais? A discriminação e o parasitismo fizeram de vós reis, imperadores, presidentes, parlamentares, e, de mim, um simples mortal. Sois ladrões mais poderosos do que eu… Uma outra diferença é que nós vamos para a cadeia e vós não, salvo raras exceções.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Siemens daria aula para procuradores e vai para cadastro ético

O presidente da Siemens (empresa que confessou fraude nas licitações do metrô de São Paulo nas gestões do PSDB), que já foi punida em vários países por atos de corrupção (EUA, Alemanha), foi convidado pelo MPF para dar palestra na Procuradoria-Geral sobre o seu sistema de compliance (observância de regras contra a corrupção). Depois da divulgação do evento (Estadão 30/8/13, p. A9), foi desconvidado. O parasitismo (enriquecimento injusto e/ou imoral, que suga o trabalho escravo ou sub-humano ou o erário público) também se aplica, claro, para o mundo empresarial, sobretudo quando ele se vale da corrupção, da fraude nas licitações, dos conluios nos pagamentos por obras não realizadas, dos reajustes de contratos sem causa, da sonegação etc. Uma das desgraças do parasitismo licitatório (conluios, fraudes, maracutaias) é que se elimina a concorrência, a decantada concorrência da meritocracia pregada pelo neoliberalismo, que tem como consequência o atrofiamento da inteligência, a ausência de criatividade, a desnecessidade de aprimorar diariamente seu serviço ou seu produto (eclipse das inovações), a despreocupação com a oferta de algo inigualável no mercado, a não busca de produtividade, o emburrecimento empresarial; tudo isso sem contar o embotamento moral, a falta de ética, a apologia da “dialética da malandragem” (Antonio Candido) etc. Mas tem coisas mais horríveis nessa história. Há sempre o oculto do aparente (te conto no próximo post). O oculto do aparente na história da Siemens é o seguinte: por ato da Controladoria Geral da União (CGU), do governo PT, a Siemens, que juntamente com várias outras empresas estão sendo investigadas, depois da sua confissão, por atos de corrupção em licitação de trens, sobretudo na administração do PSDB em São Paulo – gestões de Covas, Alckmin e Serra, foi mantida em 6/9/13 no grupo de empresas classificadas como comprometidas com a ética (Cadastro Pró-Ética). Está difícil o poder público brasileiro compreender, mesmo depois das jornadas de junho/13, que grande parcela da população brasileira quer ver algum tipo de progresso moral. Como seres humanos nós ainda estamos no “grande meio-dia” (de Nietzsche), ou seja, nem somos os primitivos do amanhecer, nem ainda chegamos no além-homem ou super-homem (super-ser humano) do anoitecer. Embora no “meio-dia”, em termos evolutivos, é chegado o momento de experimentarmos alguns progressos no campo da moralidade.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – THREE STRIKES AND YOU’RE OUT E (NOVAMENTE) A PROPOSTA MIDIÁTICA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

Luiz Flávio Gomes. Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Coeditor do www.atualidadesdodireito.com.br. Doutor em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha) e Mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me: www.professorlfg.com.br. Débora de Souza de Almeida. Doutoranda em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid – UCM (Espanha). Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Especialista em Ciências Penais pela mesma instituição. Advogada. Autora de livros e de artigos em periódicos especializados em âmbito nacional e internacional. Recentemente foi lançada por um agente midiático nova proposta para o combate da criminalidade juvenil no Brasil: a implementação da Three Strikes and You’re Out (três faltas e você está fora). A proposta, que inclusive será levada à discussão no Plenário do Conselho Federal da OAB[1], consistiria no seguinte: O delinquente tem direito a dois crimes, quase sempre pequenos. No terceiro, vai para a cadeia com penas que variam de 25 anos de prisão a uma cana perpétua. Se o primeiro crime valeu dez anos, a sociedade não espera pelo segundo. O sistema vale para criminosos que, na dosimetria judiciária, pegariam dois anos no primeiro, mais dois no segundo e, eventualmente, seis meses no terceiro. […] Seria o caso de se criar o mecanismo da “segunda chance”. A maioridade penal continuaria nos 18 anos. No primeiro crime, o menor seria tratado como menor. No segundo, receberia a pena dos adultos. Considerando-se que raramente os menores envolvidos em crimes medonhos são estreantes, os casos de moleza seriam poucos[2]. Em razão dos poucos dados estampados na coluna, constata-se que o modelo defendido não é totalmente coincidente com o norte-americano. Diante disso, é necessário esclarecer no que consiste a Three Strikes Law para depois, então, podermos nos posicionar a respeito de sua aplicação. A Three Strikes and You’are Out (que é uma alusão a uma regra do beisebol, que determina a expulsão do jogador no cometimento da terceira falta – na terceira falta o jogador está fora), impõe a retirada de circulação daquele que reitera pela terceira vez na prática criminosa. Continue lendo o texto em: http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/?p=26218

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Uso indevido de aviões da FAB “não é nada”, diz Comissão de Ética

Sobre o uso indevido dos aviões da FAB por ministros, que foram assistir ao jogo do Brasil no RJ, o presidente da Comissão de Ética da Presidência da República disse que “o caso não foi ’muito grave’ nem houve ’agressão ao patrimônio’. Ele reconhece que, na prática, isso “não significa nada”. “O Garibaldi foi advertido pelo uso do avião para ir para o Rio, mas não houve recomendação de demissão coisa nenhuma porque não foi também uma coisa assim muito grave. Mas foi advertido para não fazer mais, levou um puxão de orelha”. “Não houve agressão ao patrimônio público, nada disso. Simplesmente uma imprudência, né, acho que foi advertido”, completou”. É muito grave o embotamento moral de toda sociedade parasitária. Vivendo parasitamente (dizia M. Bomfim, em 1903, A América Latina), “uma sociedade passa a viver às custas de iniquidades e extorsões; em vez de apurar os sentimentos de moralidade, que apertam os laços de sociabilidade, ela passa a praticar uma cultura intensiva dos sentimentos egoísticos e perversos”. É de estarrecer a que ponto de degeneração chegou a classe dominante parasitária no Brasil!

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Vandalismos e violência policial: barbárie infinita

O entusiasmo insuperável (energizante, rejuvenecedor) que nos proporcionaram os protestos civilizados nas ruas (por mais justiça social, ou seja, melhor transporte público, melhores hospitais, educação de qualidade etc., assim como pelo moralização dos poderes públicos e dos políticos), conta com a mesma dimensão e proporção da nossa repugnância à violência, seja privada, seja pública, que é contra a democracia (ou melhor: a violência é inimiga da democracia). Os autores da violência gratuita (desnecessária), de vulgaridade inexcedível, lembram o que escreveu Tocqueville (nobre francês que foi estudar a democracia norte-americana), em 1840: “Vejo [na democracia] uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que giram, sem descanso, sobre si mesmos para procurarem pequenos e vulgares prazeres com os quais preenchem suas almas”. O homo democraticus, quando não comprometido com a ética (a arte de viver bem humanamente – Savater) nem com a causa da democracia (bem geral de todos), resulta mesmo regido pela vulgaridade, que significa duas coisas: mediocridade moral e decadência do bom gosto. Os moralistas, os árbitros da elegância, os aristocratas e os burgueses da elite nunca aceitaram a cultura da vulgaridade, mas não se pode esquecer que ela é coirmã da cultura da igualdade e marca registrada da democracia, quando o ser humano se despreocupa com seus deveres éticos. O Ocidente inventou muitas coisas fantásticas nos últimos três séculos: as ciências, o Estado de Direito e a democracia estão dentre essas inovações (Weber). Democracia (igualdade, liberdade e fraternidade, da Revolução francesa) significou a derrubada da aristocracia e da monarquia. A desigualdade formal e material era a regra, no Antigo Regime. Com a democracia veio a igualdade (formal). Com a cultura da igualdade (formal) eclodiu, paralelamente, naqueles que não cultivam a ética, a cultura da vulgaridade, que ganhou força inigualável com o advento da televisão, em meados do século XX. O ser humano do século XXI tem bons motivos para comemorar a evolução fantástica ocorrida em relação às liberdades (o progresso moral, nesse campo, é inequívoco), mas, com frequência, por falta de uma estrutura ética e moral sólida, cai na tentação de não fazer bom uso dessa liberdade, gerando excentricidades e grosserias típicas do mundo medieval. Nessa descrição se enquadra a violência protagonizada, nos últimos dias, pelos vândalos radicais e alguns policiais, que se mostraram totalmente despreparados para o exercício da função (recordando os jagunços do sertão assim como os capitães do mato do tempo da colônia e do Império escravagista). O pernicioso na violência excrescente (excessiva, desnecessária) é que ela acaba sendo reproduzida (centenas de vezes) na televisão ou mídia impressa. Aliás, quando não tem matéria-prima de boa qualidade de espetacularização, a mídia mesma se encarrega de protagonizar (de inventar) barbáries indescritíveis, como as do News of the World, na Inglaterra, em 2011. Os anunciantes foram os primeiros a tirar o time de campo (marcando distância desse grotesco jornal, de propriedade de Rupert Murdoch, que retrata a podridão do sistema econômico-financeiro aético e nada civilizado). Agora que temos as redes sociais, é chegado o momento de nos emanciparmos de nós mesmos (da nossa democrática e igualitária vulgaridade), buscando o status de cidadãos envolvidos com o destino da polis e da democracia, por meio da exemplaridade (Javier Gomá), dando vida a um novo modelo de democracia, como projeto de uma civilização igualitária, fundada em bases finitas, de cunho ético. Podemos nos valer das redes sociais para nos posicionarmos de várias maneiras: exercício da vulgaridade ou a construção de uma nova paideia (formação cultural), que censure os abusos da liberdade (especialmente a de expressão – esse é o caso da censura deplorável imposta, via judiciário, pela família Sarney ao jornal O Estado de S. Paulo) e que lute pelo desenvolvimento de sentimentos e costumes coletivos fundadores de uma saudável e viável vida comunitária (fundada na ética e na justiça social). O ser humano democrático contemporâneo (como sublinha Javier Gomá) deveria refletir seriamente sobre a necessidade de autolimitação do seu “eu” subjetivo dotado de direitos e liberdades, dominando os seus instintos corporais mais animalescos e eliminando do seu cotidiano as excentricidades e extravagâncias nefastas, dando evidências da sua urbanização, que consiste na eleição da civilização com a recusa, ao mesmo tempo, da barbárie. E tudo isso só ser feito por meio da Ética.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Violência dos “black blocs” e guerra civil

Ufanisteu: O brasileiro, fisicamente, como dizia o conde Afonso Celso (Por que me ufano do meu país?), “não é um degenerado; (…) quanto ao seu caráter, ainda os piores detratores não lhe podem negar afeição à ordem, à paz, ao melhoramento”. Eu acredito piamente nos ensinamentos e ufanismos deste livro; vou invocá-los em todas as partes dos nossos diálogos e procurar difundi-los para o mundo todo! Barbarum: Sempre fiquei impressionado, Ufanisteu, com o quanto você vangloria o seu povo e o seu país, atribuindo-lhes méritos fora do comum, excepcionais. Mas seria bom saber que nem sempre a imagem que fazemos de alguém ou de um território corresponde parcial ou totalmente à realidade. O ser humano erra muito nas suas valorações e convicções. Agathon: Enaltecer as belezas de um país ou o caráter reto de um povo é algo admirável, mas sempre existe o risco dos exageros, que podem ser interpretados como pura vaidade ou jactância. Quando a realidade não se corresponde à imagem criada, esta pode se transformar numa piada (numa basófia). Ufanisteu: Quando falo muito bem do meu povo e do meu país, Agathon, não tenho outro propósito que o de dar exemplos e conselhos que possam ser úteis às famílias, à nação e à espécie humana, tornando-os fortes, bons, melhores e felizes. Barbarum: Lamento informar, Ufanisteu, que o brasileiro, tanto quanto os demais habitantes do planeta, em maior ou menor medida, não é tão pacífico quanto à imagem que lhe fora forjada. Caso você duvide disso, convido-o a ver a atuação dos “black blocs” nas manifestações dos últimos meses. Agathon: O que se descobriu sobre a violência aberrante deles? Barbarum: Dois pesquisadores (Esther Solano e Rafael Alcadipani, Folha de S. Paulo) ouviram todos os envolvidos (manifestantes, policiais, “black blocs”) e chegaram à conclusão de que eles querem chamar a atenção sobre a ausência do Estado, que arrecada como país de primeiro mundo e presta serviços públicos de péssima qualidade. “Protesto pacífico não adianta nada, só com violência é que o governo enxerga nossa revolta” (diz um “black bloc”). Ufanisteu: Passageiros episódios de violência não podem nos impedir de levantar a cabeça transbordante de nobre ufania! Barbarum: A razão da quebradeira geral seria o descaso do poder público. Os integrantes do grupo dizem que não são vândalos, que vândalo é o Estado, que deixa as pessoas morrerem nas filas do SUS, que deixa as crianças na ignorância, não oferecendo ensino de qualidade, que transformou o transporte público em lata de sardinha etc. Agathon: A você, Ufanisteu, digo (com base em Baltasar Gracián, A arte da sabedoria) que não é recomendável se vangloriar ou falar de si mesmo, nem para elogiar-se, o que é vaidade, nem para criticar-se, o que é humildade ultrajante. Qualquer um dos dois é enfadonho para quem ouve. Barbarum: E o que você, Agathon, diz sobre a violência dos “black blocs”? Agathon: Que, invertendo a clássica lição de Maquiavel, os fins, por mais nobres que sejam, não justificam o emprego de meios violentos, especialmente quando colocam em perigo as pessoas. Violência só gera violência. A polícia militar vai reagir, porque foi humilhada (como instituição). É mais que previsível uma espiral intensa de violência. O pior é que esse método, para além de destrutivo, é ineficaz, porque não abre nenhuma negociação para avanços nos direitos individuais ou sociais. Outra coisa: a violência está afastando das ruas os manifestantes do bem, que estão deixando de apoiar os movimentos (que sem força popular não conseguem progressos). Se o enfraquecimento dos movimentos sociais pode trazer benefícios para setores econômicos conservadores e políticos, há quem esteja torcendo pelo incremento da violência. Quanto pior, melhor. Mais ainda: depois da reynaldização da PM (agressões físicas contra PMs, como a ocorrida contra o coronel Reynaldo Rossi), é factível que o revide seja a “amarildização” também das classes médias “black blocs” (ou seja: a eliminação física de alguns deles). Essa é a linguagem (o referencial semântico) que a massa brasileira assimilou e entende (depois de anos e anos de propaganda midiática). O terreno se tornou favorável, após as declarações de guerra (civil) de integrantes da PM e do governador, para tratar os “black blocs” como os inimigos pobres segregados e balcanizados das periferias, cujo destino, nos confrontos com a polícia, é a mutilação decorrente da tortura, o hospital (se sobreviver) ou o cemitério. A situação pode ficar fora do controle estatal, com repercussões internacionais e econômicas incalculáveis.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Vivemos hoje uma reversão de expectativas?

A resposta é positiva. A nova classe média (que não é privilégio do Brasil, sim, de todos os países emergentes), depois da lua de mel com seu novo “status” de consumidor (e de devedor também: a conta do crédito um dia tem que ser paga), agora quer mais, mas sabe que, no atual contexto de crises profundas, pouco poderá ser alcançado. A reversão de expectativas é notória (Marcus A. de Melo, Valor Econômico). Os manifestantes querem qualidade de vida, daí os protestos por justiça social e contra os excessos do capitalismo neoliberal e neoescravagista; querem melhores serviços públicos bem como governantes e políticos honestos, que nunca se dispuseram a enfrentar com determinação e ética as clássicas mazelas decorrentes da nossa formação cultural (corrupção, clientelismo, nepotismo, fisiologismo, patrimonialismo, empreguismo, uso perdulário do dinheiro público etc.). Em suma, querem o fim do ineficientismo do Estado, do fisiologismo (loteamento do Estado), do mau-caratismo de quem atua em nome do Estado ou que se relaciona com ares publica, do consumismo material (visto como horizonte único do ser humano pelo capitalismo neoliberal) e do desenvolvimentismo arcaico (fundado no excessivo controle estatal bem como na proteção de uma parte do empresariado nacional). Mas se acham pessimistas em relação ao futuro, daí a reversão de expectativas (que gera insatisfação, que gera insegurança, que gera medo, que gera ansiedade, que gera ira etc.). Quem busca serviço público de primeiro mundo (educação, saúde, justiça rápida etc.) já sabe que não o encontra no Brasil. Daí a frustração da classe emergente, que se transforma muitas vezes em humilhação, que é a causa da indignação e da sensação de impotência. A nova classe emergente, para além de constituir um forte motor econômico do país, é portadora de novas ideias e quer ter maior protagonismo na construção de uma nova sociedade (mais justa, mais equitativa, menos violenta, em suma, mais qualidade de vida). Mas as atuais expectativas em relação ao Brasil (e ao mundo) se acham em declínio. Houve uma reversão, que é fonte de muita insatisfação. Tudo isso também explica a rebelião de junho.

ARTIGO: Prof. Luiz Flávio Gomes – Voto secreto e democracia no Brasil

Reagindo ao deplorável escândalo da manutenção do mandato do deputado Donadon, a Câmara dos Deputados aprovou o fim do voto secreto, em todas as situações, em todas as casas legislativas. Isso não vai passar no Senado. Algum termos será consensuado. De qualquer modo, já se trata de uma reação da parasitária classe política à reprovação nacional de norte a sul contra seu corporativismo que retrata a dialética da malandragem. Democracia e voto Democracia (desde a antiga Grécia) significa participação do povo nas decisões mais importantes do país (da polis). Essa participação pode ocorrer de forma direta (plebiscito, referendo, iniciativa legislativa popular) ou indireta (por eleições). O voto é o instrumento do cidadão que viabiliza a democracia. Quanto mais livre e consciente o voto, mais democrático o país é (e vice-versa). Em democracias ou conglomerados humanos atrasados, ora falta o voto, ora são poucos os que votam, ora o voto é comprado, ora o voto do legislador é secreto (foi esse voto que beneficiou escandalosamente Donadon). Todos os vícios que maculam o voto contaminam automaticamente o nível da democracia. Ou seja: quando falta ética no voto, conspurca-se a estética da democracia. Para aprofundar: Breve história do voto no Brasil No Brasil Colônia (1500-1821) não havia eleições (nem democracia, nem organização governamental própria etc.). Ninguém votava. Mandava o senhor de engenho, o dono da Casa-Grande, o parasita do trabalho dos índios e dos escravos, que governava seu território como um monarca despótico. A partir do Brasil Imperial (1822) o problema passou a ser “quem pode votar” (veja Laurentino Gomes, 1889). Para a Constituinte de 1823 só podiam participar: homem (mulher não), proprietário de terra ou outro bem de raiz (escravos não, índios não, embora fossem os donos de todas as terras (!), assalariados não, ou seja, brancos pobres não), com idade mínima de 20 anos. Também foram excluídos os estrangeiros e os que não professavam a religião católica. Ou seja: votavam fundamentalmente os parasitas, que são os que não colocam a mão no trabalho duro, gerador original da riqueza, tendo para fazer isso escravos, índios e brancos pobres, sob o chicote do feitor. Voto significa democracia; mas se os votantes são somente os parasitários do país, tínhamos no Império uma democracia liberal parasitária (retrato perfeito dos dois brasis: o parasitante que vota e o parasitado que não vota). A situação se agravou com a Constituição de 1824, visto que ela aumentou a idade do votante para 25 anos e introduziu no Brasil o critério da renda mínima para votar (voto censitário). Ou seja: foi reduzido o número dos votantes parasitários (que são os que vivem do trabalho escravo ou do trabalho assalariado vil, ignóbil e imoral). Para os cargos mais importantes, a renda mínima exigida era maior (é dizer: somente a elite parasitária podia eleger seus pares parasitários para os cargos mais importantes da monarquia constitucional). O voto direto para as eleições legislativas só aconteceu em 1881 (mas somente os parasitários votavam, porque foram excluídos os parasitados analfabetos). Resultado: na eleição de 1886 apenas 0,8% da população votou (Laurentino Gomes, 1889). Nos primeiros anos da Primeira República (a partir de 1889) ainda era baixíssimo o número de votantes. A elite brasileira (agroexportadora) continuava parasitária, mas não mais fundada na escravidão (abolida formalmente em 1888), sim, no neoescravagismo (trabalho assalariado vil, ignóbil e imoral, que foi recusado por muitos estrangeiros que para cá vieram para trabalhar). Neoescravagismo, analfabetismo, concentração de riquezas (nas mãos dos parasitários) e exclusão da imensa maioria da população do processo eleitoral: esse era o sistema eleitoral nos primeiros anos da república, que se caracterizava também (e sobretudo) pelo voto manipulado, fraudado, roubado e comprado. O voto do eleitor, num determinado período, foi aberto. Isso deu margem para a fraude. Também foi (e ainda é) uma prática corrente, nesse período, o voto de cabresto, comandado pelo coronelismo (veja Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto). Nas duas ditaduras (1930-1945 e 1964-1985) não se falava em voto (ao menos para o executivo federal). No período democrático de 1946-1963 continuava o voto roubado, comprado, roubado, fraudado. As eleições, ao longo do século XX, foram se universalizando, mas sem nenhuma garantia de limpeza no processo eleitoral. É dizer: continuávamos sob o império do voto viciado. Já na redemocratização, com a CF de 88, além do abuso do poder econômico (que é generalizado), veio o voto secreto dentro do parlamento, que acaba de contribuir para a “absolvição” do presidiário Donadon (o primeiro presidiário com os direitos políticos suspensos que continua sendo deputado federal). O voto secreto para o eleitor é garantia de boa democracia. O voto secreto do Parlamentar é contra a democracia, porque todos temos o direito de saber o que pensa o nosso representante. A “absolvição” de Donadon pela Câmara dos Deputados (em agosto de 2013), por isso mesmo, entra para os anais da nossa história como uma síntese perfeita do Brasil parasitário (do Brasil que não deu certo), que é produto, como disse Darcy Ribeiro (na apresentação do livro de Manoel Bomfim, A América Latina – males de origem), “da mediocridade do projeto das classes dominantes que aqui organizaram nossas sociedades em proveito próprio, com o maior descaso pelo povo trabalhador, visto como uma mera fonte de energia produtiva, que ele podia desgastar como bem quisesse”. Mas o aspecto mais espetacular da obra do sergipano Manoel Bomfim, escrita em 1903, é o concernente à sua oposição ferrenha contra todos os “pensadores” (muitos europeus) que apoiam as elites atrasadas que mantém o Brasil na rabeira do desenvolvimento, do progresso e da ética. Manifestou toda sua indignação com a injustiça, mas sem perder a esperança de um Brasil despojado dos seus vícios originais. Brasil: futuro sem parasitismo (essa é a saída) O Brasil é um país viável, mas para isso tem que fazer um corte profundo nas suas tradições parasitárias, que transmitem o vírus (de geração em geração) de que podemos, sem nenhuma vergonha, nos enriquecer à custa da corrupção, da malandragem, do trabalho escravo ou da servidão neoescravagista. Não podemos continuar com os olhos fechados para as barbáries parasitárias dos primeiros cinco séculos. Enquanto não colocarmos sobre a mesa nossos graves males de origem nós não conseguiremos evoluir rumo à civilização. O poder de decisão não pode mais ficar nas mãos exclusivas das classes dominantes, muitas parasitárias, visto que elas são infecundas, avaras, conservadoras e crueis. Se já estivesse funcionando a democracia direta digital (DDD), que sustentamos no nosso livro Por que estamos indignados? (no prelo), democracia ancorada numa plataforma em rede, que é o Fórum Cidadão, nós não teríamos de forma nenhuma permitido que a Câmara dos Deputados deliberasse o acobertamento imoral e escandaloso de um dos seus notáveis malfeitores. A votação na Câmara tinha que ter sido acompanhada paralelamente (em tempo real) pela vigilância do Fórum Cidadão (Fórum do Povo), que estaria dialogando com cada parlamentar, narrando, em seguida, nas redes sociais, a postura de cada um (para a devida avaliação de todos os eleitores). Os interesses do país (se é que queremos construir uma verdadeira Nação, com o mínimo e dignidade) não podem mais ficar nas mãos exclusivas das elites parasitárias. Isso é conditio sine qua non para nossa evolução, para nossa civilização.

ARTIGO: Professor Luiz Flávio Gomes – Nova lei seca: “mais rigor, menos violência no trânsito”. Você acredita nessa mentira?

LUIZ FLÁVIO GOMES, 55, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no institutoavantebrasil.com.br Com 43 mil mortes no trânsito em 2010 (cerca de 46 mil em 2012, consoante projeções do Instituto Avante Brasil), 3 país do mundo em acidentes fatais (passamos EUA e Rússia, assim como toda a União Europeia reunida), é evidente que todos queremos que algo seja feito para nos tirar desse buraco trágico e tanatológico. Sou favorável à tolerância zero! Concordo que a última reforma da lei seca era necessária! Mas é chegado o momento de dizermos NÃO aos excessos autoritários da sua despótica interpretação, dada pela Resolução 432/13. É correto punir o infrator que bebe e depois dirige. Alguma sanção ele tem que sofrer. Mas o critério quantitativo (a partir de 0,34 mg/L de ar expelido) para distinguir a infração administrativa da criminal é absolutamente inconstitucional, incorreto e aberrante, porque cada pessoa reage de uma maneira frente ao álcool. O critério generalista é o atalho de que se valem os intérpretes da repressão para se afirmar que estamos diante de um perigo abstrato presumido. Com “x” quantidade de álcool no sangue presume-se a alteração da capacidade psicomotora. Com isso a prisão fica facilitada. O enquadramento como crime de um fato que não passa de infração administrativa mancha o condenado pelo resto da vida, dificultando arrumar emprego bem como passar em concursos públicos. Além de injusta, imagina-se que é com essa interpretação que serão reduzidas as mortes no trânsito. E o governo ainda divulga isso como algo verdadeiro. Fabrica-se uma nova lei e acredita-se que ela faça mágica! O Poder Político (Executivo e Legislativo), no campo criminal, sempre se comporta como nossos ancestrais, que pintavam os bichos nas cavernas e acreditavam que, com isso, já detinham a posse desses animais. Publica-se uma nova lei no Diário Oficial (versão moderna das paredes das cavernas) e acredita-se que esse conjunto de palavras mal escritas e despoticamente interpretadas possa mudar a realidade! Quando apareceu o novo Código de Trânsito brasileiro, em 1997, o Datasus já registrava 35.620 mortes no trânsito. Logo que esta lei parou de surtir o efeito desejado, modificou-se o CTB em 2006 e aí já contávamos com 36.367 mortes. Não tendo funcionado bem essa nova lei, veio a Lei Seca de 2008, quando alcançamos o patamar de 38.273 mortes. De 2009 para 2010, logo depois de passada a ressaca da lei seca de 2008, aconteceu o maior aumento de óbitos no trânsito de toda nossa história: 13,96%. A propaganda enganosa e populista do governo diz: “Mais rigor, menos violência no trânsito”. Os números comprovam essa mentira: houve rigorismo penal em 1997 (quando tínhamos 35.620 mortes), em 2006 (agora já contávamos com 36.367 mortes) e 2008 (quando chegamos a 38.273 mortes). Depois da Lei Seca alcançamos, em 2010, quase 43 mil mortes. Que eficácia é essa da lei penal nova mais rigorosa? Em todo momento produzimos nova lei penal, mas as mortes, logo que a fiscalização fraqueja, voltam a aumentar. Até quando vão continuar nos mentindo, imaginando que não sabemos do fracasso das três leis penais anteriores à nova lei seca, todas no sentido do maior rigorismo penal, como solução para o problema da irresponsável necro-política viária brasileira? O funciona é a fiscalização não o engodo da lei penal mais dura.

ARTIGOS: Prof. Luiz Flávio Gomes – Menores, como os bezerros, jamais abandonados nas ruas

Nos últimos dias a sociedade civil tem se mobilizado publica e midiaticamente para demandar a diminuição da maioridade penal. O fracasso dessa medida é mais do que previsível, porque o Brasil vem com essa política populista desde 1940 e seus problemas sociais só estão agravando (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva: 2013). Tal mobilização se deve a um sentimento de insegurança e de impotência, que se transforma em espasmódica sensação de potência quando se pede “justiça”, depois da morte de um jovem, vítima de latrocínio, por um rapaz de 17 anos. Alimentada (a população) com a programação dramatizadora da mídia que passa a divulgar todos os dias casos e “cruzadas” envolvendo adolescentes, podemos chegar a uma reação emocional (longe da racionalidade). Claro que todas as bestas não domesticadas (Nietzsche) e violentas devem ser punidas duramente, de acordo com cada crime e cada idade, colocando-as (para a tutela da sociedade) em estabelecimentos seguros. Mas a emoção não pode dominar a razão. A solução para o problema consiste em colocar (obrigatoriamente) todas as crianças e adolescentes nas escolas, das 8 às 18h, dos 6 aos 18 anos. Fazer com elas o que a sociedade brasileira faz com os bezerros, que jamais são vistos abandonados nas ruas (porque possuem valor econômico). Tomados pelo sentimento de revolta, o indivíduo (telespectador) comum raras vezes busca informações sobre qual a verdadeira realidade que está por trás da alteração da maioridade penal. Segundo dados da Fundação Casa, a Instituição abriga hoje, em suas 143 unidades, 9.016 internos. Desses internos, 661 têm entre 12 e 14 anos; 6.614 estão na faixa etária dos 16 anos 18 anos e 1.740 já têm 18 anos ou mais. Roubo e Tráfico de entorpecentes são as principais causa de internação com 44,1% e 41,8%, respectivamente, de internos. Ao contrário do que é exposto pela mídia em geral, os número de crimes violentos cometidos por adolescentes até os 18 anos é muito menor do que o alardeado. Os latrocínios são responsáveis por 0,9% das internações, ou seja, 83 internos, sendo que 49 são menores. Já os homicídios são responsáveis por 0,6%, ou 54 jovens internados na Fundação. Pouco mais de 1% dos menores estão recolhidos por crimes violentos com morte. Já entre os adultos do sistema penitenciário, que abriga 549.577 presos segundo informações do Depen, até junho de 2012, o número de homicidas era de 60.792, ou seja, 11% de todo o sistema prisional brasileiro. Os latrocínios eram responsáveis pela prisão de 15.191 presos, ou 2,8%. Quase 14% dos adultos estão recolhidos por crimes violentos com morte. Vejamos:
Adolescentes em conflito com a lei internados na Fundação Casa Presos do sistema carcerário
Tipo de crime Internos % Tipo de crime Internos %
Latrocínio 83 0,9 Latrocínio 15.191 2,8
Homicídios 54 0,6 Homicídios 60.792 11
Total de internos 9016 Total de Presos 549.577
Queremos “combate” feroz e bestial (tal como o propagado pela mídia) justamente contra quem menos mata! Imaginar que a redução da maioridade penal seria a salvação para questão da criminalidade é um grande erro, já que ao misturar jovens que cometeram roubos, furtos e pequenos tráficos com grandes homicidas, estupradores e traficantes comandados pelo crime organizado é transformar a prisão numa escola do crime ainda mais perversa, já que a atual situação das penitenciárias brasileiras está longe de ser reabilitadoras. O problema da criminalidade juvenil tem que ser combatido já, agora, imediatamente (não temos que ficar esperando mudanças legislativas), colocando todas as crianças e adolescentes nas escolas, dos 6 aos 18 anos (e das 8 às 18h). E toda população tem que fiscalizar isso diariamente. Hoje mesmo essa medida pode ser adotada e fiscalizada por todos. Cada criança na escola, um marginal a menos na rua. Cada adolescente educado, um latrocida a menos nos atacando. Investir em educação, lazer e trabalho (imediatamente, prontamente, hoje mesmo!), tirando todas as crianças e adolescentes da rua e fazendo com que esses jovens não sejam compelidos a enveredar pela vida criminosa, dando-lhes oportunidades na vida, com uma educação de qualidade. Cada jovem na escola, um criminoso a menos da rua. Quem topa esse (aparentemente utópico) desafio? * Colaborou: Flávia Mestriner Botelho, socióloga e pesquisadora do Instituto Avante Brasil.

LUIZ FLÁVIO GOMES COMENTA: Garoto de 17 anos que diz ser autor do disparo com sinalizador no jogo do Corinthians prestou depoimento

Veja abaixo o vídeo do professor Luiz Flávio Gomes sobre o caso: http://www.youtube.com/watch?v=oU0FbyZFagM&feature=youtu.be Hoje (25), por volta das 15h, o adolescente de 17 anos que afirma ser o autor do disparado com sinalizador que ocasionou a morte de um menino na partida entre Corinthians e San José foi até a Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos, na Grande São Paulo, e prestou seu depoimento Acompanhado de seu advogado, por cerca de duas horas, foi ouvido por promotores. Em entrevista concedida ao Fantástico, o garoto afirmou ter adquirido o sinalizador naval na Rua 25 de Março, no Centro de São Paulo, ressaltando que queria apenas fazer “uma festa para o Corinthians”. Na mesma entrevista o jovem ainda falou que integrantes da Gaviões da Fiel o instruíram a não procurar a polícia na Bolívia. “O pessoal me recomendou: ’não, é melhor não se entregar porque nós estamos na Bolívia, você veio com a gente, você é nossa responsabilidade’”. A defesa do adolescente acredita que ele irá responder por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Do Portal Atualidades do Direito – Por Mário Luiz Ramidoff

Luiz Flávio Gomes lança livro “Lei de Drogas Comentada”

Novas questões polêmicas foram trazidas e respondidas pelos autores, tais como: a infração do porte de drogas para uso próprio pode ser caracterizada como mau antecedente? Vale para o efeito da reincidência? Luiz Flávio Gomes, em parceria com os juristas Alice Bianchini, Rogério Sanches Cunha e William Terra de Oliveira, acaba de lançar o livro Lei de Drogas Comentada, pela Revista dos Tribunais. A obra versa sobre a Lei de Drogas, publicada no dia 24.08.2006, em vigor desde 08 de outubro do mesmo ano. Lei de Drogas (trecho retirado do livro) Na quinta edição de Lei de Drogas Comentada os autores buscam brindar a comunidade jurídica com a doutrina e a jurisprudência mais atualizadas sobre os temas ali propostos, tal como a questão do princípio da insignificância. Com efeito, no dia 11.11.2010 o Plenário do STF, no julgamento do HC 94.685, reafirmou seu entendimento de que a posse de reduzida quantidade de substância entorpecente por militar, em unidade sob administração castrense, não permite a aplicação do chamado princípio da insignificância penal. Seguindo a linha evolutiva do Direito nacional, o livro acompanha a atual tendência da ciência jurídica, mostrando-se rico em evidenciar a jurisprudência das principais Cortes jurisdicionais do País, em especial decisões do STF e do STJ. Discute-se no RE 635.659 (SP) a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que tipifica como crime (segundo o entendimento espelhado no RE 430.105-RJ) o porte (ou posse) de drogas para consumo próprio. Sugestão de entrevista: Luiz Flávio Gomes – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Prof. Luiz Flávio Gomes – Medo da inflação, da infração e da infusão

Tirando os integrantes do grupo destemido (1%), todos os demais paulistanos possuem algum tipo de medo (Folha de S. Paulo de 01.05.13, p. 1). Repetindo pesquisa feita em 1983, o Datafolha constatou o seguinte: que hoje os paulistanos têm pouco medo da inflação (7%; em 1983, 26% se preocupavam com a alta do custo de vida). O que mais assusta é o medo de que os jovens da família se envolvam com drogas (45% hoje, contra 23%, em 1983). O medo da infusão de drogas é o campeão. Isso sinaliza que as políticas públicas repressivas de “combate” às drogas não estão produzindo o efeito desejado (veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013). Basta compararmos essa política repressiva (norte-americana) com a política socio-educativa de prevenção do tabaco: em São Paulo, os fumantes caíram pela metade em 27 anos (40% em 1986, contra 21% hoje; a média nacional é de 14,8% – Datafolha). Quais são os segredos desse sucesso? Não foi a prisão, sim, a conscientização; não foi a repressão, sim, a educação; não foi o direito penal, sim, medidas de controle e de restrição; não foi o populismo punitivo, sim, a contrapropaganda nos maços de cigarro; não foi a dramatização televisa, sim, o fim da propaganda; não foi o processo criminal, sim, a divulgação dos malefícios do fumo; não foi a reprovação da sentença, sim, a vergonha individual; não foi a política de mão dura, sim, a motivação de parar de fumar. No mundo todo o tabaco está em baixa: EUA: 53% dos homens fumavam em 1960, contra 22% em 2010; Japão: 81%, contra 28%; Reino Unido: 61%, contra 22%; em relação às mulheres (respectivamente): EUA: 34%, contra 17%; Japão: 13% contra 11%; Reino Unido: 42% contra 21%. É a vitória (praticamente mundial) da razão sobre a emoção (da saúde sobre doença, da vida sobre a morte). Em relação às drogas, no entanto, prepondera o contrário: emoção sobre a razão, proibição sobre a conscientização, cadeia sobre a educação, repressão sobre a prevenção. Enquanto seguimos com políticas públicas tendencialmente equivocadas, que não estão produzindo efeitos concretos benéficos para a população, só temos a contabilizar fracassos, dramas, sangue, cadáveres antecipados e narcodólares. No que diz respeito ao medo do crime (da infração penal) a alta é mais do que evidente: medo de ter a casa invadida por assaltantes: 22% em 1983, contra 26% em 2013; medo de ser assaltado na rua: 9% em 1983, contra 16% em 2013. Os dois medos somados chegam a 42%. O alto índice de medo do crime relacionado com as drogas e com os roubos revela que as políticas públicas repressivas (populistas) dão sinais de fracasso a cada dia. Quando pedimos (a sociedade e a mídia) solução repressiva para o problema da criminalidade ao Estado, sobretudo para a delinquência dos menores, caímos na “trampa da diferenciação do consumidor”, porque repentina e equivocadamente imaginamos que um serviço público quebrado, falido e derrotado (pelo capitalismo neoliberal e escravagista), que nós, por razões de “status”, antes de tudo, rejeitamos diariamente (sempre que nossas posses permitem substituí-lo), venha resolver nossa carência coletiva de segurança.

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