Entenda a desconsideração da PJ e LLE – Lei da Liberdade Econômica

Entenda a desconsideração da PJ e LLE - Lei da Liberdade Econômica

Assunto em alta nas últimas semanas, a Lei da Liberdade Econômica – LLE (Lei 13.874/19) trata também da desconsideração da personalidade jurídica. Desta forma, segundo o juiz e professor da Rede LFG, Pablo Stolze, as regras da desconsideração da personalidade jurídica, previstas no CC, experimentaram mudanças.

Para explicar todos os pormenores das mudanças do regramento da desconsideração por força da LLE, o professor Pablo falou com o blog Acontece LFG. Confira.

Blog Acontece: Professor, o que é “teoria da desconsideração da personalidade jurídica”?

Pablo Stolze: Em linhas gerais, a teoria da desconsideração pretende o afastamento temporário da personalidade da pessoa jurídica, para permitir a satisfação do direito violado diretamente no patrimônio pessoal do administrador ou do sócio da pessoa jurídica que praticou o ato abusivo ou dele se beneficiou.

Na preparação para concurso, fala-se muito em teoria maior e em teoria menor da desconsideração. O que é isso?

Boa pergunta! Em torno da desconsideração, gravitam duas importantes teorias:

a. a teoria maior;
b. a teoria menor.

O Código Civil, em seu art. 50, adotou a denominada teoria maior da desconsideração, por exigir, além da insuficiência patrimonial, pressuposto lógico, a demonstração do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Contrapõe-se, pois, à denominada teoria menor da desconsideração, de aplicação mais facilitada, que exige, apenas, a insuficiência patrimonial, consagrada no Direito Ambiental e no Direito do Consumidor, bem como na Justiça do Trabalho.
Em síntese, para relações jurídicas civis ou estritamente empresariais, a desconsideração, regulada pelo art. 50 do Código Civil, tem a sua aplicação mais dificultada, tendo em vista os requisitos exigidos por lei, dispensados na teoria menor.

Muito tem se debatido o impacto da Lei da Liberdade Econômica – Lei n. 13.874/19, no âmbito da desconsideração. O senhor poderia pontuar algumas mudanças?

Posso apontar algumas.
O art. 50 do CC, que regula a desconsideração, sofreu mudança redacional, e recebeu novos parágrafos.
Destaco o caput do art. 50:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Elogiável, no final do texto legal, a expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, porquanto a desconsideração é instrumento de imputação de responsabilidade, não podendo, por certo, sob pena de se ignorar a exigência do próprio nexo causal, atingir sócio que não experimentou nenhum benefício (direito ou indireto) em decorrência do ato abusivo perpetrado por outrem.

O §1º do art. 50 do Código Civil experimentou uma pequena, posto significativa, mudança, em virtude da conversão da Medida Provisória no novo diploma legal:

Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

Este parágrafo, como se pode notar, conceitua o desvio de finalidade.
A versão atual, consagrada pela Lei n. 13.874/19, com razoabilidade, retirou a exigência do dolo para a caracterização do desvio.

A desnecessidade de se comprovar o dolo específico – a intenção, o propósito, o desiderato – daquele que, por meio da pessoa jurídica, perpetrou o ato abusivo, moldou a teoria objetiva, mais afinada à nossa realidade socioeconômica e sensível à condição a priori mais vulnerável daquele que, tendo o seu direito violado, invoca o instituto da desconsideração.
O §2º, por sua vez, definiu o que se entende por “confusão patrimonial”.

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

O inciso III, deste § 2º, ao mencionar, genericamente, que caracterizam a confusão patrimonial “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”, resultou por tornar meramente exemplificativos os incisos anteriores.

O senhor pode dar exemplos de “confusão patrimonial”?

Claro! Podem traduzir confusão patrimonial, por exemplo, a movimentação bancária em conta individual do sócio para as operações habituais da sociedade, o lançamento direto como despesa da pessoa jurídica de gastos pessoais do sócio ou administrador etc.

Houve alguma referência à “desconsideração inversa ou invertida”?

Sim, houve. Veja a redação do §3º, art. 50:

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1o e 2o deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

Em minha visão, acolheu-se, aqui, a desconsideração inversa ou invertida, o que significa ir ao patrimônio da pessoa jurídica, quando a pessoa física que a compõe esvazia fraudulentamente o seu patrimônio pessoal.

Trata-se de uma visão desenvolvida notadamente nas relações de família, de forma original, em que se visualiza, com frequência, a lamentável prática de algum dos cônjuges ou companheiros que, antecipando-se ao divórcio ou à dissolução da união estável, retira do patrimônio do casal bens que deveriam ser objeto de partilha, incorporando-os na pessoa jurídica da qual é sócio, diminuindo, com isso, o quinhão do outro consorte.

Nesta hipótese, pode-se vislumbrar a possibilidade de o magistrado desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, buscando bens que estão em seu próprio nome, para responder por dívidas que não são suas e sim de seus sócios, o que tem sido aceito pela força criativa da jurisprudência.

Há algum outro aspecto peculiar que chamou a atenção do senhor, nessa nova Lei da Liberdade Econômica?

A referida Lei é bastante ampla, há muitos pontos que despertam a nossa atenção acadêmica.
Mas destaco um aspecto importante: a sua vigência.
A vigência de uma diploma normativo é tema que sempre desperta o interesse da doutrina, rendendo ensejo a polêmicas.
Até mesmo a entrada em vigor do próprio Código Civil – ocorrida, segundo firme entendimento predominante, em 11 de janeiro de 2003 – rendeu debates.
Conforme consta no seu art. 20, a Lei n. 13.874/19 (Lei de Liberdade Econômica) entrou em vigor:

I – (VETADO);
II – na data de sua publicação, para os demais artigos.

Ora, se, de acordo com o inc. II, a vigência seria imediata “para os demais artigos”, os artigos contemplados no inciso vetado (arts. 6º ao 19), por consequência lógica, somente começariam a vigorar após a vacatio de 45 dias, conforme preceitua a regra geral constante no art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
Este panorama, todavia, é, no mínimo, esquisito, sobretudo se passarmos em revista as razões do veto ao inc. I:

“A propositura legislativa, ao estabelecer o prazo de noventa dias para a entrada em vigor dos arts. 6º ao 19 do projeto de lei, contraria o interesse público por prorrogar em demasia a vigência de normas que já estão surtindo efeitos práticos na modernização do registro público de empresas, simplificação dos procedimentos e adoção de soluções tecnológicas para a redução da complexidade, fragmentação e duplicidade de informações, entre outros. Nestes termos, deve prevalecer a norma do inciso II do art. 20, que estabelece a vigência imediata do projeto de lei, na data de sua publicação”.

Com efeito, a afirmação, na parte final das razões, no sentido da prevalência da “vigência imediata do projeto de lei”, conduz-me à ideia de que esta foi a intenção do Governo Federal.
E talvez esta linha de entendimento, por ser mais prática, prevaleça, a despeito de a redação do texto legal (art. 20), poder conduzir o intérprete, como visto acima, a conclusão diversa.

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