Rafael Barone Zimmaro e André Vinícius Monteiro*
Muito se tem discutido acerca da audiência de custódia cautelar, atualmente instituída no estado de São Paulo por meio do Provimento Conjunto nº 3/2015, impondo a apresentação de pessoa detida em flagrante delito, até 24 horas após a sua prisão[1].
Não se tem por escopo central da presente manifestação a análise minuciosa da controvertida questão acerca da hierarquia normativa dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil anteriormente à Emenda Constitucional nº 45/2004.
Encontra-se na doutrina nacional, ao menos, três diferentes entendimentos a respeito do tema:
o primeiro, a entender que os tratados aprovados sem o requisito formal previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, possuem hierarquia legislativa;
o segundo se posiciona no sentido de possuírem tais tratados status supralegal, porém infraconstitucional; por fim,
a terceira corrente sustenta que, embora não cumprido o requisito formal, os tratados anteriores a 2004 também ostentariam graduação constitucional.
Entretanto, conforme já indicado, não se pretende, por ora, a avaliação desta questão. Busca-se, em verdade, a investigação quanto à validade do mencionado Provimento Conjunto dentro do atual contexto jurídico brasileiro, considerando-se, para tanto, as normas postas e o entendimento jurisprudencial pertinente.
Desta forma, destaca-se o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, em mais de uma oportunidade, assentou possuírem os tratados anteriores à Emenda nº 45 status supralegal e infraconstitucional[2].
Isto posto, não se cuidando de normas constitucionais, não incide o § 1º do art. 5º da Carta da República, ou seja, os tratados não possuiriam aplicação imediata, dependendo, portanto, de prévia regulamentação. Em análise à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), aponta Flávia Piovesan caber “ao Estado-parte adotar todas as medidas legislativas e de outra natureza que sejam necessárias para conferir efetividade aos direitos e liberdade enunciados”[3].
Desta forma, no que tange ao Pacto de São José, ratificado pelo Brasil em 1992, tem-se não ser o mesmo autoaplicável, demandando regulamentação própria com o fito de que os direitos e garantias nele previstos possam ser efetivamente exercidos.
Neste contexto, o presidente do Tribunal de Justiça e o corregedor geral de Justiça, ambos do estado de São Paulo, editaram o Provimento Conjunto nº 3/2015. O dispositivo visa regulamentar o art. 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[4] e, no mesmo bojo, o art. 9º, item 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[5], dos quais o Brasil é signatário.
Especificamente no que tange ao âmbito penal e processual, a regulamentação deve seguir a regra disposta no art. 22, I, da Constituição Federal, pelo qual se infere a competência privativa da União para legislar sobre as matérias de direito penal e processual penal.
O dispositivo constitucional suscitado não só ilide aos estados e municípios disporem sobre as mencionadas matérias[6], como garante seu regramento exclusivamente por meio de lei, assim considerada em sentido estrito, portanto, tarefa atinente ao Poder Legislativo Federal.
Como cediço, decretos, regimentos, provimentos, resoluções, portarias, dentre outras fontes normativas, cujo processo de aprovação não passa por crivo rigoroso ao qual se submete a edição de lei federal, não se prestam como substitutos desta, assim não atendendo à Reserva Legal, ao seu turno, ditame imperativo às searas penal, processual penal.[7]
Com efeito, a edição do Provimento Conjunto nº 3/2015, além de seguir em patente desacordo com preceitos constitucionais – inclusive, no que concerne à competência federativa –, em última análise, ainda representa afronta ao Princípio da Legalidade, posto sequer possuir status de lei.
Partindo de semelhante premissa, a 5ª Câmara do Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que, “se o Código de Processo Penal não previu a apresentação imediata do preso fisicamente ao juiz, a referida apresentação não pode ser criada por ato do Conselho Nacional de Justiça ou do Tribunal de Justiça de São Paulo, já que se trata de matéria processual que só pode ser objeto de deliberação pelo Poder Legislativo Federal”, e, ao final, ainda consignou que, “por mais interessante que possa ser a proposta, cria situação não prevista em lei, não aplicada em todo o território nacional como prevê a Constituição Federal em seu art. 22”[8].
Em franco desrespeito à Reserva Legal, a parceria firmada entre os Poderes Judiciário e Executivo[9], ambos da esfera estadual, avocou função tipicamente legislativa ao deliberar acerca da regulamentação da controvertida audiência de custódia cautelar, sob o pretexto de equacionar pendengas do sistema penitenciário.
Com a devida vênia, entretanto, têm-se inadmissível que, ao arrepio da Carta Magna, possa um provimento usurpar a validade e a eficácia inerentes ao status de lei, como supedâneo ao aludido saneamento da superlotação carcerária.[10]
Tal pretensão, cujo real êxito queda-se duvidoso, certamente ultrapassa as fronteiras do estado de São Paulo, acentuando, portanto, a necessidade de Política Nacional voltada não somente às acomodações do contingente carcerário, mas à reinserção harmônica de egressos ao seio da sociedade, com o fito de desestimular a reincidência.
Não por menos, embora sujeitos a semelhantes adversidades, a Associação dos Magistrados de Goiânia manifestou-se, antecipadamente, em oposição à instituição das audiências de custódia cautelar naquele Estado, batendo-se, inclusive, pela ausência de suporte estrutural para tanto[11].
Verifica-se, portanto, infeliz situação de tentativa de usurpação da função legislativa federal por membros do Poder Judiciário e do Poder Executivo estaduais. Busca-se, em verdade, uma ilegítima antecipação do Projeto de Lei nº 554/2001, o qual tem trâmite regular no Congresso Nacional, seguindo os ditames constitucionais acerca do processo legislativo.
O Provimento nº 3/2015 vem, assim, imiscuir-se em competência alheia. Note-se que, nas considerações iniciais de referido Provimento, há referência expressa ao Projeto de Lei do Senado, sendo, portanto, nítida a competência legislativa federal.
O expediente adotado pelo presidente do Tribunal Bandeirante e pelo corregedor geral de Justiça vem de encontro aos princípios basilares do Estado Federativo e Democrático de Direito, em especial à repartição de competências e tripartição do poder, insculpidos nos arts. 1º, caput, e 2º da Constituição Federal.
A forma arbitrária pela qual se pretende implementar a audiência de custódia cautelar reflete, em verdade, um preconceito quanto à atuação dos demais órgãos envolvidos na atividade judiciária.[12]
Conforme se lê em artigos sobre o tema, alguns apoiam a audiência de custódia pois não acreditam na atividade do Delegado de Polícia, outros apontam não cumprir o Ministério Público, adequadamente, sua função de custos legis, e ainda existem os que se escoram na morosidade da Defensoria Pública em formular pedidos de liberdade provisória ou de revogação da prisão preventiva. O Poder Judiciário surgiria, então, como a única instituição apta a solver a problemática, atuando de forma técnica e célere.
E, ainda, sendo o Poder Legislativo deveras lento para a aprovação de projetos, o judiciário avoca para si não só a atribuição de julgar mas também a de criar os procedimentos pelos quais pretende atuar. Cria-se, assim, uma verdadeira ditadura da toga, onde todos os demais envolvidos são apenas coadjuvantes, e o Poder Judiciário, sempre que entender necessário, ultrapassa os limites constitucionais de sua atividade.[13]
É justamente esta a situação vista com o Provimento Conjunto nº 3/2015. Desta feita, tem-se por inconstitucional o referido Provimento, não podendo surtir qualquer efeito no âmbito jurídico-penal, permanecendo válido o art. 306 do Código de Processo Penal.
Por fim, apenas à guisa de argumentação, ainda que se entenda seja a Convenção Americana de Direitos Humanos norma de status constitucional e de aplicação imediata, permaneceria válida a regra do art. 306 do CPP.
Isto porque, tanto o art. 7º, item 5, do Pacto de São José da Costa Rica, quanto o art. 9º, item 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos preveem, expressamente, ao lado do juiz, a possibilidade de ser o detido ouvido por outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais.
No Brasil, nos termos do art. 144, § 4º, da Constituição Federal, o Delegado de Polícia exerce função de polícia judiciária, órgão essencial à atuação da justiça.
De anotar-se ser o cargo de delegado exclusivo de bacharel em Direito, exercendo função técnico-jurídica, nos termos do § 6º do art. 2º da Lei 12.830/2013, devendo fundamentar de forma técnica o indiciamento do investigado, a representação pela prisão preventiva ou temporária, a representação para a quebra de sigilo telefônico ou bancário, o relatório etc. Outrossim, o próprio Diploma Processual confere ao delegado a possibilidade de concessão de liberdade provisória às infrações cuja pena máxima em abstrato seja inferior a quatro anos.
Evidente, portanto, ser o delegado autoridade com função judicial, embora com campo de atuação mais restrito do que o juiz de direito. Nesse diapasão, percebe-se não estar o custodiado desguarnecido, desamparado ou mesmo desassistido de prestação jurisdicional, sendo sua prisão em flagrante analisada de forma técnica pelo delegado. Ele poderá relaxar a prisão caso verifique alguma irregularidade ou, em algumas hipóteses, até mesmo conceder a liberdade ao detido.[14]
Além disso, é preciso lembrar que, no Estado de S. Paulo, os juízes designados para as audiências de custódia não são juízes naturais da causa. E o princípio do juiz natural (este sim) é claríssimo na Constituição Federal. Mas isso não parece aborrecer os processualistas defensores da referida audiência de custódia.
Outro ponto fundamental, olvidado por inúmeros processualistas garantistas, é que o magistrado realmente preocupado com os direitos fundamentais do preso, ao receber o auto de flagrante (ou o HC no Tribunal), relaxa a prisão ou concede liberdade provisória sem necessidade alguma de ver o acusado em pessoa.
Advogados sabem disso; processualistas, que militam na área criminal, sabem disso. Portanto, devem saber, ainda, que a audiência de custódia tornou-se um modismo, com juízes filmados, fotografados e acompanhados em suas atividades, para provar que o número de solturas é bem maior.
Se – e quando – a poeira assentar, os juízes continuarão as suas atividades jurisdicionais do mesmo modo: quem solta, solta; quem mantém preso, assim o fará. Lutar pelos direitos individuais não é um modismo, mas uma mentalidade. Cremos que, no fundo, todos saibam disso, mas agora é a hora do modismo.
Do quanto acima se expôs, entendemos inexistir qualquer vício na não-apresentação do detido ao juiz de direito, sendo de todo válido e eficaz o disposto no art. 306 do Código de Processo Penal, o qual deverá assim prevalecer até a edição de lei federal tendente a revogá-lo.
* Rafael Barone Zimmaro e André Vinícius Monteiro são mestres em Direito Penal pela PUC-SP e professores da LFG
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[1] Art. 1º do Provimento Conjunto nº. 3/2015.
[2] RE 466.343/SP e HC 87.585/TO.
[3] Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 8ª ed., p. 237.
[4] Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
[5] Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade.
A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.
[6] Nesse sentido: A conclusão exarada pela Corte de origem significaria dar relevância penal a decreto apto a produzir efeitos apenas no âmbito da referida unidade da federação, em flagrante ofensa à competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal, prevista no artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. (RHC 49.221/SC, 5ª Turma, rel. Jorge Mussi, 16.04.2015, v.u.)
[7] Aliás, é interessante observar que o Judiciário Paulista interessa-se por regrar a audiência de custódia – de natureza controversa – mas se omite quanto às várias Resoluções e Regimentos Internos de presídios, prevendo faltas médias e leves para presos, ao arrepio do princípio da legalidade.
Omitem-se ainda, muitos processualistas e advogados criminais, acatando a pseudo legislação penitenciária produzida pelo Poder Executivo. A singela leitura da Constituição Federal diz caber ao Estado legislar (Poder Legislativo) acerca de direito penitenciário (art. 24, I).
[8] Habeas Corpus nº2056556-66.2015.8.26.0000, rel. José Damião Pinheiro Machado Cogan, 14.05.2015, v.u.
[9] Cf. expresso previsto pelo provimento, in verbis: CONSIDERANDO que o Poder Judiciário, em parceria com o Poder Executivo, vem adotando inúmeras providências na busca pelo equacionamento dos problemas sob os quais opera o sistema penitenciário do Estado.
[10] Outro ponto bem interessante é que o referido tratado (Convenção Americana dos Direitos Humanos) já vigora no Brasil há mais de 20 anos e somente agora, num despertar inusitado, parcela da doutrina processual penal, aplaudindo o inconstitucional Provimento, manifestou-se a respeito da indispensabilidade da audiência de custódia.
Teriam ocorrido, então, mais de duas décadas de patente violação dos direitos fundamentais? Nenhum órgão em defesa dos presos levantou tal questão? Ademais, nem o STF a respeito se pronunciou? Eis a incongruência do atual momento de defesa da mencionada audiência de custódia, que está fora das leis brasileiras.
[11] Conferir o artigo Manifestação dos magistrados do Estado de Goiânia, publicado em 27 de maio de 2015, no site da ASMEGO (link: http://asmego.org.br/2015/05/27/manifestacao-dos-magistrados-do-estado-de-goias/).
[12] O mesmo ocorreu, anos atrás, quando o Executivo Paulista tentou implantar, do mesmo modo, ao arrepio do Poder Legislativo, a videoconferência. Várias audiências, em especial de interrogatórios, foram consideradas nulas pelo STJ e pelo STF. Foi necessária a edição de lei federal no início de 2009, alterando o art. 185 do CPP, para que tivessem validade.
[13] Mais uma vez, ilógica é a atuação de certos processualistas, tão afeitos à garantia dos direitos individuais, aplaudir tal medida. Afinal, hoje, é audiência de custódia. Amanhã, alteradas a cúpula do Judiciário e do Executivo, pode-se obter Resoluções contra os interesses dos presos. Ora, se a primeira aufere legalidade, outras também podem adquirir.
Isso tudo sem levar em consideração que o Direito Processual Penal é nacional e não estadual. Aliás, o STF considerou inconstitucional a lei estadual disciplinando a videoconferência. Nem mesmo essa atividade foi acolhida como da competência do Estado de S. Paulo, sempre inovador.
[14] Muito do que se debate faz parte do puro preconceito contra o Delegado de Polícia ou Delegado Federal, pretendendo coibir-lhe, cada vez mais, as funções previstas em lei.
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