A adoção é um tópico de extrema relevância, tanto na sociedade quanto no Direito e no mundo jurídico. Em termos sociais, é importantíssimo tratarmos sobre como a adoção viabiliza novas perspectivas de vida para crianças e adolescentes abrigados. Contudo, existe uma situação inesperada e que precisa ser discutida e conhecida por profissionais da área do Direito: a desistência da ação.
Atualmente, no Brasil, cerca de nove mil crianças e adolescentes esperam por uma família. Na mesma linha, por meio da adoção, muitas pessoas conseguem realizar o sonho da maternidade e paternidade, constituindo uma família de pleno direito com os novos filhos.
No entanto, é preciso tratarmos também do que ocorre quando nem tudo é do jeito esperado. O que acontece quando os pais adotivos querem desistir do processo de afiliação dos menores adotandos ou adotados?
Pensando na seriedade do tópico, elaboramos este artigo para explicar tudo sobre a desistência da adoção, que ocorre quando os adotantes decidem desistir dos procedimentos de concretização da filiação não biológica e optam por “devolverem” a criança.
Continue a leitura e saiba mais sobre a desistência da adoção e a possibilidade de indenização civil em função desta!
Como funciona o processo de adoção?
O processo de adoção no Brasil é regulado por uma série de dispositivos, principalmente o Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei 13.509/2017 (Lei da Adoção).
A Lei da Adoção dispõe detalhadamente sobre entrega voluntária, destituição do poder familiar, acolhimento, apadrinhamento, guarda e adoção de crianças e adolescentes.
Início do procedimento de adoção pelos interessados
Conforme instruções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o primeiro passo para iniciar os procedimentos de adoção é que os interessados se dirijam à Vara de Infância de Juventude de sua comarca, munidos da documentação necessária para o cadastramento como adotantes.
Eles devem apresentar identidade, CPF, comprovante de renda ou declaração equivalente e certidões cível e criminal. Os interessados precisam ter mais de 18 anos e uma diferença de, no mínimo, 16 anos para a criança a ser adotada.
Em seguida, após o envio dos documentos, os interessados devem entrar no processo no cartório da Vara da Infância por meio de uma petição de cadastramento. Se os interessados forem aprovados, eles são cadastrados, local e nacionalmente, nos registros de pretendentes à adoção.
A partir do momento em que o interessado passa a constar na lista de pretendentes à adoção, torna-se mandatório fazer um curso de preparação psicossocial e jurídica e passar por uma entrevista técnica, durante a qual o pretendente vai descrever o perfil da criança desejada.
Nesse momento, é possível definir preferências como sexo, faixa etária, estado de saúde da criança e se gostaria de adotar irmãos.
Fila de adoção
Após a realização do curso de preparação, os pretendentes à adoção realizam uma entrevista técnica. Ao final desta entrevista, é emitido um laudo técnico pelos servidores da Vara de infância, que é entregue ao juiz.
Da mesma forma, o Ministério Público, que atua em defesa dos interesses dos menores enquanto função constitucional, emite um parecer em relação aos pretendentes à adoção.
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Com base no parecer ministerial e no laudo técnico, o juiz decide sobre o pedido dos pretendentes de participarem dos cadastros de adoção (informalmente conhecidos como filas de adoção). A duração do cadastro é de dois anos.
Enquanto estão neste cadastro/fila de adoção, caso apareça alguma criança ou adolescente com perfil compatível com o desejado pelos pretendentes à adoção, eles são avisados, respeitada a ordem da fila. A fila segue a ordem cronológica, com base no marco legal da efetiva habilitação do adotante.
Quando a criança com perfil compatível é identificada, os adotantes recebem o histórico de vida dela e, havendo interesse em prosseguir, a criança e os pretendentes à adoção são apresentados.
A criança ou o adolescente também têm poder de decisão sobre a adoção e transferência da guarda, bem como a constituição do poder familiar: eles são consultados e entrevistados e podem decidir se querem ou não continuar o processo de adoção.
Após regular o procedimento destes trâmites, é determinado um estágio de convivência entre a criança e os adotantes. Este estágio é monitorado pela justiça e pela equipe técnica da Vara da Infância e durante esse período os futuros pais podem visitar a criança na instituição em que ela se encontra abrigada.
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Ação de Adoção
Durante o estágio de convivência, é avaliado como está se estabelecendo o vínculo entre a criança e os futuros pais. Caso o relacionamento esteja se estabelecendo bem, os adotantes ingressam com uma ação de adoção.
Assim que o processo se inicia, os adotantes recebem a guarda provisória da criança, cuja duração se estende até o desfecho do processo de adoção.
Desde o momento do recebimento da guarda provisória, a criança já passa a morar com a família. Enquanto o processo não é concluído, são feitas visitas e avaliações da situação fática daquela família pelos técnicos da Vara, periodicamente.
Após algum tempo, a equipe técnica responsável pelas visitas apresenta um relatório conclusivo com um parecer sobre a viabilidade do prosseguimento da adoção.
Com este laudo em mãos, o juiz decide sobre a finalização do processo de adoção por meio de uma sentença de adoção. Em caso positivo sobre a adoção, o juiz determina a lavratura do novo registro de nascimento, já com o sobrenome da nova família.
A partir deste momento, a criança ou adolescente passa a ser filho dos adotantes, gozando dos mesmos direitos e prerrogativas de qualquer filho biológico. A sentença de adoção é definitiva.
Como se entrega um filho para adoção?
A Lei de Adoção (Lei 13.509/2017) incluiu no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a ação de Entrega Voluntária. Este instituto indica a possibilidade de uma gestante ou mãe entregar seu filho para adoção em um procedimento mediado e assistido pela Justiça da Infância e Juventude.
Apesar de o abandono de recém-nascido ser um crime (conforme art. 134 do Código Penal), a entrega voluntária não caracteriza qualquer tipo de ilícito, haja vista que neste caso a mãe entrega a criança às instituições públicas, preservando os direitos do menor.
As gestantes ou mães que tenham interesse em entregar seu filho para adoção devem ser encaminhadas para a Justiça da Infância e Juventude. Neste momento, a justiça deverá realizar o processo para busca de família extensa (termo utilizado para designar parentes ou familiares próximos).
Se não for encontrado parente apto e com vontade de receber a guarda, a autoridade judiciária competente determinará a colocação do menor sob guarda provisória de quem estiver apto a adotá-la ou em entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.
Lei de Adoção
Conforme a Lei de Adoção, que inseriu o art. 19-A no ECA:
Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
§ 1º A gestante ou mãe será ouvida pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, que apresentará relatório à autoridade judiciária, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal.
§ 2º De posse do relatório, a autoridade judiciária poderá determinar o encaminhamento da gestante ou mãe, mediante sua expressa concordância, à rede pública de saúde e assistência social para atendimento especializado.
§ 3º A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período.
§ 4º Na hipótese de não haver a indicação do genitor e de não existir outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente deverá decretar a extinção do poder familiar e determinar a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.
§ 5º Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1º do art. 166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega.
§ 6º Na hipótese de não comparecerem à audiência nem o genitor nem representante da família extensa para confirmar a intenção de exercer o poder familiar ou a guarda, a autoridade judiciária suspenderá o poder familiar da mãe, e a criança será colocada sob a guarda provisória de quem esteja habilitado a adotá-la.
§ 7º Os detentores da guarda possuem o prazo de 15 (quinze) dias para propor a ação de adoção, contado do dia seguinte à data do término do estágio de convivência.
§ 8º Na hipótese de desistência pelos genitores – manifestada em audiência ou perante a equipe interprofissional – da entrega da criança após o nascimento, a criança será mantida com os genitores, e será determinado pela Justiça da Infância e da Juventude o acompanhamento familiar pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.
§ 9º É garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei.
§ 10. Serão cadastrados para adoção recém-nascidos e crianças acolhidas não procuradas por suas famílias no prazo de 30 (trinta) dias, contado a partir do dia do acolhimento. (Promulgação de partes vetadas )
A mulher pode comunicar seu interesse de entrega voluntária da criança a qualquer órgão (público, particular ou filantrópico) da rede de proteção, incluindo hospitais, maternidades, Unidades Básicas de Saúde, Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), conselhos tutelares, órgãos de defesa e proteção dos direitos da mulher, além do próprio Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública.
É possível retratar a manifestação de entregar o filho para adoção?
Após a manifestação voluntária da mulher que deseja entregar seu filho à adoção, ela deverá ser encaminhada para uma equipe técnica do próprio poder judiciário, que deve contar com profissionais de Psicologia e Serviço Social.
Após o acolhimento, essa equipe deverá elaborar um relatório, o qual será encaminhado ao juízo, para a tomada das devidas providências, tais como encaminhamento da mulher para serviços e programas que garantam os direitos dela e do bebê.
A mulher pode tomar essa decisão devido a inúmeros fatores. Sua decisão deve ser sempre respeitada, e o objetivo desse atendimento é apenas garantir que a tomada de decisão ocorreu de maneira livre, esclarecida e informada.
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Alternativas
Caso ela expresse para a equipe técnica que, na verdade, gostaria de conhecer alternativas à entrega legal, deve ser informada das possibilidades e encaminhada aos serviços correspondentes.
Após todos estes procedimentos, deverá ser realizada uma audiência judicial, na qual a mulher deverá ser assistida por advogado ou defensor. Nesta audiência, perante seu patrono, o juiz e o Ministério Público, a mulher comunicará sua decisão final.
Antes desta audiência, a mulher pode desistir de entregar o bebê a qualquer momento, bastando informar a equipe técnica da Vara da Infância e Juventude. A própria audiência pode ser utilizada para que ela desista de entregar a criança.
Neste caso, a criança é restituída aos pais biológicos, e a família deverá ser acompanhada pela Vara da Infância e Juventude por 180 dias, conforme § 8º do art. 19-A do ECA.
Confirmada em audiência a vontade de entregar o bebê para adoção, o(a) juiz(a) profere uma sentença de extinção do poder familiar da genitora em relação à criança, Isto é, extingue os direitos e deveres da mulher em relação ao recém-nascido.
Depois que a audiência de confirmação da entrega da criança acontece, os genitores têm a possibilidade de desistir da entrega em até 10 dias após ser proferida a sentença, o que costuma ocorrer ao final da própria audiência na qual a entrega legal é confirmada.
Após o transcurso deste tempo de 10 dias, não é mais possível se retratar da decisão, e não há mais possibilidade de a genitora exigir a restituição da criança, conforme art. 166, §5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assim dispõe:
Art. 166, §5.º: O consentimento é retratável até a data da realização da audiência especificada no § 1.º deste artigo, e os pais podem exercer o arrependimento no prazo de 10 (dez) dias, contado da data de prolação da sentença de extinção do poder familiar.
Responsabilidade civil pela desistência na adoção
Aqui, vale citar uma passagem do livro O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe:
“Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade”.
Confira, a seguir, um estudo de caso sobre desistência da adoção!
O Caso Huxley
No final do mês de maio de 2020, sites de notícias e redes sociais revelaram ao mundo o caso do pequeno Huxley, um menino de origem chinesa que passou por um processo de adoção internacional que o tornou, em 2017, aos quase dois anos de idade, filho do casal de americanos Myka Stauffer e James de Columbus, pais biológicos de outras quatro crianças.
Myka, uma influenciadora digital com mais de setecentos mil inscritos em seu canal na plataforma YouTube, documentou boa parte da rotina e das etapas do processo de adoção em 27 vídeos e, segundo divulgado por alguns veículos de imprensa, teria tido um crescimento exponencial no seu número de seguidores em virtude dessa divulgação, o que contribuiu para seu aumento de relevância enquanto influencer.
Ocorre que o casal, quase três anos após a adoção de Huxley, comunicou ao público haver decidido pela “devolução” do filho, em função de não terem conseguido administrar as necessidades especiais decorrentes do diagnóstico de autismo do garotinho.
A revelação chocou internautas do mundo inteiro, e trouxe à tona uma cruel realidade que não é desconhecida dos nossos pretórios, mas cujo debate ainda é incipiente em solo pátrio: a da “devolução” de crianças e adolescentes por seus pais adotivos.
O termo “devolução”, usado frequentemente para traduzir a desistência da adoção, parece muito mais vocacionado a bens, uma vez que seres humanos, dotados de inseparável dignidade, não se sujeitam a um trato que os objetifique, como se fossem coisas defeituosas que frustraram as expectativas do “adquirente” .
Justo por isso, o uso do termo é repleto do significado da dureza que envolve as situações de desistência na adoção, com o retorno a abrigos de pessoas que já estavam acolhidas em seios familiares.
Tudo se torna ainda mais triste se lembrarmos o potencial que essa desistência possui para acarretar uma nova sensação de rejeição naquele que somente foi adotado em razão já haver sido rejeitado, antes, pela família biológica que lhe deu origem.
Segundo dados divulgados pela BBC News, decorrentes de uma pesquisa feita entre onze Estados da federação, num lapso de cerca de cinco anos, foram registrados 172 casos de “devolução” de crianças e adolescentes candidatos à adoção.
Alguns desses candidatos experimentaram mais de uma situação de desistência no seu calvário em busca de uma família substituta.
Ao lado disso, é cada vez mais frequente a divulgação de decisões que versam sobre a possibilidade de compensação de eventuais danos decorrentes desse fenômeno.
Nesse delicado contexto, surgem questionamentos que serão enfrentados aqui de forma bastante objetiva.
No transcurso do processo de adoção, a desistência dos pais adotantes, se já estiverem convivendo com as crianças ou adolescentes, pode atrair a incidência das regras de responsabilidade civil?
Depois de concluído o processo de adoção, haveria hipótese de desfazimento dela e, se houver, essa desistência geraria dever de indenizar?
Diálogo entre o Direito das Famílias e a Responsabilidade Civil
É importante pontuar que nos parece superada a discussão sobre a possibilidade de se aplicar aos danos causados no âmbito de relações familiares as regras da responsabilidade civil.
Ainda que o Direito das Famílias da pós-modernidade, repersonalizado e revolucionado pelos influxos da Constituição Federal de 1988, tenha um dos seus pilares na intervenção mínima do Estado na seara das suas relações, isso não significa que a família é um lócus imune às regras da responsabilidade civil.
Não à toa, é ampla (e por vezes polêmica) a casuística em que o Estado-juiz tem sido chamado a decidir sobre a reparabilidade de danos causados no âmbito da convivência familiar, a exemplo das demandas indenizatórias pelo descumprimento dos deveres conjugais (sobretudo o de fidelidade), pelo rompimento de relações amorosas (como o noivado) e pelo abandono afetivo de filho.
Analisando a questão a partir do prisma dos pressupostos da responsabilidade civil na interface com as relações de família, entendemos que, se demonstrada a existência (a) de conduta antijurídica de um membro da família contra outro, (b) do dano indenizável, (c) do nexo de causalidade e, em regra, (d) da culpa, presentes estarão os elementos centrais do nascimento do dever de indenizar.
Todavia, soa fundamental lembrarmos que há, em nosso ordenamento, danos indenizáveis que excepcionalmente derivam de condutas lícitas, bem como inúmeras hipóteses enquadradas como de responsabilidade objetiva. Ou seja, que prescindem da investigação de culpa para que haja o reconhecimento do dever de indenizar (CC, art. 927), com destaque para o abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil.
Quanto ao art. 187 do CC, escreve, com propriedade, Flávio Tartuce:
“Pontue-se que prevalece o entendimento segundo o qual a responsabilidade decorrente do abuso de direito é objetiva, independentemente de culpa. A propósito da correta conclusão a respeito do abuso de direito, vejamos o Enunciado n. 37, da I Jornada de Direito Civil, de 2004: ‘a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. (destaque nosso)
É possível que a família adotante desista da adoção?
Para analisar as possibilidades de desistência da adoção, precisamos posicionar em que momento a desistência ocorreria. Assim, analisaremos três hipóteses:
- Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito;
- Desistência no âmbito da guarda provisória para fins de adoção;
- Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção.
1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito
O art. 46 do ECA dispõe que:
“A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso”.
O instituto tem por objetivo propiciar um início de convivência entre os candidatos previamente habilitados no Cadastro Nacional de Adoção. Vale observar que o procedimento de habilitação deveria durar no máximo 120 dias (ECA, art. 197-F). Mas, demora, geralmente, de um a dois anos.
Cumpre notar, analisando os parágrafos do referido art. 46, que é possível a dispensa do estágio de convivência, se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante por tempo que o magistrado considere suficiente para avaliar a conveniência da constituição do vínculo (ECA, art. 46, §1º).
Contudo, que a simples guarda de fato não autoriza, de per si, a dispensa da realização do estágio de convivência (ECA, art. 46, §2º).
O prazo máximo de 90 dias é passível de prorrogação por até igual período, e quando os adotantes forem residentes no estrangeiro, será de no mínimo 30 e no máximo 45 dias, prorrogável apenas uma vez (ECA, art. 46, §2º-A e §3º).
Como essa fase tem por característica ser uma espécie de teste acerca da viabilidade da adoção, concluímos que, regra geral, a desistência em prosseguir com o processo de adoção nessa etapa é legítima.
Note-se que aqui estamos tratando do estágio de convivência no sentido estrito, descolado da guarda provisória dos adotandos.
Não desconsideramos, contudo, que possa haver intenso sofrimento psíquico para a criança ou o adolescente se, por exemplo, o estágio de convivência se estender por tempo significativo, se ocorrer majoritariamente fora dos limites do abrigo ou se o laço entre as partes se desenvolver com aparência de firmeza, por meio de atitudes capazes de criar no candidato a filho a sólida expectativa de que seria adotado.
Nesse horizonte, excepcionalmente e a depender das peculiares características do caso concreto, as rupturas absolutamente imotivadas e contraditórias ao comportamento demonstrado ao longo do estágio podem vir a ser fontes de reparação civil.
Em alguns Estados da federação, há a previsão de salutares medidas voltadas para amenizar as consequências dos traumas decorrentes do insucesso do estágio de convivência.
Um exemplo é o que se dá com o Juizado da Infância e da Juventude de Porto Velho (RO), que celebra acordo com candidatos a pais, desistentes na fase do estágio de convivência, para que subsidiem um ano de psicoterapia para as crianças “devolvidas”.
Em síntese, o exercício do direito potestativo de desistir da adoção dentro do estágio de convivência não autoriza o reconhecimento da responsabilidade civil dos desistentes, ressalvadas situações excepcionais.
2. Desistência ocorrida durante o estágio da guarda provisória para fins de adoção
Após uma fase de estágio de convivência em sentido estrito, no qual a criança é introduzida aos possíveis futuros pais no ambiente do abrigo onde já está acolhida, o próximo passo da adoção é a guarda provisória.
A fase da convivência sempre é atrelada a um um acompanhamento por assistente social, que dará o seu parecer e dirá se os candidatos à adoção estão aptos ou não para receber o menor em sua residência.
Caso estejam, inicia-se a fase da guarda provisória, que ocorre após o ingresso dos adotantes em juízo pleiteando a adoção. Portanto, a fase de guarda provisória é uma fase na qual a adoção não está concluída.
Essa guarda muitas vezes é sucessivamente renovada e já atribui aos adotantes amplos deveres parentais para com os adotandos. Quem milita com o instituto da adoção costuma dizer que a guarda provisória funda a relação paterno ou materno-filial, embora ainda não tenha havido a constituição formal do vínculo, que depende da sentença de adoção.
Ademais, durante a guarda provisória, a convivência entre adotantes e adotados não ocorrerá mais no abrigo, e sim no lar dos adotantes.
Por isso, a desistência da adoção, nesse contexto, se afigura muito mais complexa e dura do que o insucesso do estágio de convivência em sentido estrito, uma vez que rompe uma convivência socioafetiva consolidada, atraindo a incidência das regras de responsabilidade civil, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro nacional.
Não se ignora que, enquanto não consumada, por sentença, a adoção, a possibilidade jurídica de desistência existe.
Mas é preciso notar que o seu exercício depois de um estágio prolongado de guarda provisória – que, por vezes, dura anos e promove uma total inserção familiar do adotando no seio da família adotante – pode configurar abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil.
E note-se que, nesse mencionado dispositivo (art. 187, CC), consagrou-se uma “ilicitude objetiva”, vale dizer, que dispensa a demonstração do dolo ou da culpa para a sua configuração.
Jurisprudência
A guarda dos que pretendem adotar precisa ser exercida com plena consciência da grande responsabilidade que encerra.
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
A condenação por danos morais daqueles que desistiram do processo de adoção, que estava em fase de guarda, de forma abrupta e causando sérios prejuízos à criança, encontra guarida em nosso direito pátrio, precisamente nos art. 186 c/c arts. 187 e 927 do Código Civil.
A previsão de revogação da guarda a qualquer tempo, art. 35 do ECA, é medida que visa precipuamente proteger e resguardar os interesses da criança, para livrá-la de eventuais maus tratos ou falta de adaptação com a família, por exemplo, mas não para proteger aqueles maiores e capazes que se propuserem à guarda e depois se arrependeram (TJMG – Apelação Cível 1.0024.11.049157-8/002,
Relator(a): Des.(a) Vanessa Verdolim Hudson Andrade , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/04/2014, publicação da súmula em 23/04/2014).
A partir da análise de todo esse panorama, é inexorável a extração da seguinte conclusão:
A configuração do abuso do direito de desistir da adoção gera responsabilidade civil e esse abuso estará presente se a desistência se operar depois de constituído, pelo adotante, um vínculo robusto com o adotando, em virtude do prolongamento do período de guarda, ante o amálgama de afeto que passa a vincular os protagonistas da relação.
Desta forma, dada a adoção inconclusa, é possível que os adotantes desistam da adoção. A grande maioria dos casos de devolução ocorre justamente neste momento: quando o adotante possui a guarda provisória e o processo de adoção não está finalizado.
No entanto, como apontamos, a esta altura, a criança já mora com os pretendentes à adoção (ainda que em caráter provisório) e já, provavelmente, desenvolveu esperança quanto à concretização do processo.
Assim, a desistência no estágio de guarda provisória, ainda que possível, é inegavelmente intensamente mais traumática para a criança, devendo ser evitada ao máximo.
3. Desistência após o trânsito em julgado da sentença de adoção
Após transitada em julgado a sentença de adoção, é juridicamente impossível a devolução da criança ou do adolescente.
Isto ocorre porque, com a consolidação da sentença, o menor se torna filho dos adotantes de pleno direito, gozando dos mesmos direitos que quaisquer filhos biológicos que, igualmente, não podem ser “devolvidos”.
A tentativa de devolução da criança a esta altura configura ato ilícito civil e, dependendo da situação, também ilícito penal, por abandono de incapaz — art. 133, CP).
Uma vez transitada em julgado a sentença, a adoção se torna irrevogável (ECA, art. 39, § 1o).
Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, “não há nenhuma previsão legal de ‘desadoção’. Uma vez filho, adotado ou não, será para sempre, pois filhos e pais mesmo depois da morte permanecem vivos dentro da gente”.
As palavras do grande jurista mineiro, e todas as reflexões que tecemos até aqui, já nos permitem antever a resposta ao último problema que nos propusemos a enfrentar: e se os pais, depois de findo o processo de adoção, resolvem “devolver” seu filho (a), como aconteceu no dramático caso narrado na abertura deste texto?
A resposta é simples: inexiste, no ordenamento brasileiro, base jurídica para “devolução” de um filho após concretizada sua adoção.
Aliás, a filiação adotiva, diferentemente da biológica, é sempre planejada, programada e buscada com a paciência que o burocrático processo de adoção exige, num contexto de longa expectativa dos envolvidos.
Há toda uma preparação para que uma pessoa ou um casal possa se habilitar a adotar, envolvendo a participação de uma equipe multidisciplinar, que existe para dar suporte aos envolvidos e para que os candidatos a pais tenham ciência das variadas e densas dimensões que o processo de acolher um filho exige.
Também não se pode ignorar que o indivíduo adotado é alguém cuja trajetória costuma estar marcada por uma rejeição original, razão pela qual uma vulnerabilidade lhe é imanente e demanda especial proteção por parte do Estado.
Impende perceber, ainda, que muitos dos casos de rejeição a filhos adotivos parte de um rosário de queixas sobre a dificuldade de trato com o filho, do seu comportamento “indomável” ou da revelação de características ou problemas de saúde que “surpreendem negativamente” a família adotiva.
Com todas as vênias, esse tipo de argumento nos parece dos mais absurdos, pela simples razão de que a Constituição Federal não permite a diferenciação entre filhos em função da sua origem, e, ademais, filhos biológicos podem apresentar os mesmíssimos problemas ou questões, sem que se cogite de sua potencial devolução.
E a quem se devolveria um filho biológico?
Assim, entendemos que a “devolução fática” de filho já adotado caracteriza ilícito civil, capaz de suscitar amplo dever de indenizar, e, potencialmente, também, um ilícito penal (abandono de incapaz, previsto no art. 133 do CP), sem prejuízo de se poder defender, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro, a mantença da obrigação alimentar, uma vez que os adotantes não podem simplesmente renunciar ao poder familiar e às obrigações civis daí decorrentes.
Aliás, a apresentação, em juízo, de um pleito de desconstituição do vínculo de filiação adotiva pode ensejar o proferimento liminar de sentença de mérito, por improcedência liminar do pedido, à semelhança do que se dá com as hipóteses elencadas no art. 332 do CPC.
Tratar-se-ia, nesse caso, de uma hipótese atípica de improcedência liminar do pedido.
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Desistência da adoção: conclusão
O drama da desistência na adoção é agudo e tem desafiado, cada vez mais, os nossos Tribunais.
Partindo da premissa da possibilidade de entrelaçamento das esferas da responsabilidade civil e das relações familiares, investigamos o cabimento de indenização pelos danos derivados das “devoluções” de crianças e adolescentes em processo de adoção ou com a adoção já consumada.
Trata-se de uma indenização que não apenas atende ao escopo compensatório, mas também se justifica em perspectiva pedagógica, à luz da função social da responsabilidade civil.
Se a desistência ocorre dentro do estágio de convivência (ECA, art. 46) no sentido estrito, não se há que falar, em regra, em responsabilidade civil, eis que o direito potestativo de desistência é legítimo e não abusivo.
Se a desistência ocorre, contudo, após o estágio de convivência, durante período de guarda provisória e antes da sentença transitada de adoção, pode se configurar o abuso do direito (de desistir), à luz do art. 187 do CC, daí emergindo a responsabilidade civil.
Após a sentença de adoção transitada em julgado, é juridicamente impossível a pretendida “devolução”, caracterizando, tal ato, se efetivado, no plano fático, ilícito civil (e, a depender do caso, também, ilícito penal, por abandono de incapaz – art. 133, CP).
Ressalte-se que o juiz, inclusive, pode proferir uma sentença de rejeição do pedido de devolução, sem sequer citar o réu (hipótese atípica de improcedência liminar do pedido – art. 332, CPC).
Adotar é lançar ao solo sementes de amor, mas esse ato precisa se dar no terreno da responsabilidade e da consciência de que as relações paterno ou materno-filiais, quaisquer que sejam as suas origens, são repletas de arestas que demandam paciência, resiliência e afeto para serem aparadas.
E, então, gostou do nosso artigo sobre desistência da adoção? Continue no nosso blog. Aproveite para conferir também o conteúdo que produzimos sobre o papel do procurador municipal!
Referências
DIAS, Maria Berenice. O Perverso Sistema da Adoção in PEREIRA, Rodrigo da Cunha, DIAS, Maria Berenice (Coord.) Familia e Sucessões. Polêmicas, tendências e inovações. Editora IBDFAM, 2018, 1 Ed. p. 114.
DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 22ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 740/741.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Aula proferida pelo coautor Pablo Stolze Gagliano, em aula, por videoconferência, proferida no dia 17 de julho de 2020, a convite da ilustre Promotora de Justiça Márcia Rabelo, coordenadora do Caoca do Ministério Público do Estado da Bahia.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 449.
Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Del Rey, 2005, p. 156.
TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil – volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 79-80.
https://istoe.com.br/policia-investiga-caso-de-youtuber-que-devolveu-filho-tres-anos-apos-a-adocao/ acessado em 25 de julho de 2020.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40464738 acessado em 25 de julho de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-mar-08/casal-pagar-indenizacao-desistir-adocao acessado em 25 de julho de 2020.
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